Os noivos armênios, acompanhados de duas testemunhas, se casaram ante o sacerdote. Antes da fuga de Nagorno-Karabakh — região reocupada por suas tropas, segundo o Azerbaijão —, desejavam oficializar a nova família na terra onde nasceram. Em poucas horas, se uniriam a milhares de civis em fuga, com medo de uma limpeza étnica.
Em Stepanakert, capital da mesma região, crianças deixaram as marcas das mãos pintadas na parede de casa, ao lado de seus nomes: Davo, Alesa, Aren, Narek... Uma forma de eternizar a sua presença em um local onde a guerra se impôs sobre a paz.
Na rodovia entre Stepanakert e Askeran, diante de um depósito de combustível, centenas de pessoas faziam fila para encher galões com gasolina, antes de seguirem viagem até Yerevan, capital da Armênia.
Uma explosão, de circunstâncias não esclarecidas, deixou pelo menos 200 feridos, a maioria em estado grave ou muito grave, segundo as autoridades separatistas de Nagorno-Karabakh. Desde domingo, 6.650 pessoas chegaram à Armênia.
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"Nossas capacidades médicas não são suficientes. Precisamos que aviões com equipes médicas pousem com urgência para salvar a vida das pessoas", afirmou Gegham Stepanyan, encarregado de direitos humanos da república autoproclamada de Nagorno-Karabakh.
Morador de Stepanakert, antecessor de Stepanyan e ex-ministro, Artak Beglaryn disse ao Correio que a situação é "muito crítica". "Ainda não sabemos a exata extensão da catástrofe. Diferentes números nos foram reportados por testemunhas locais. Havia muitos civis na fila, esperando pelo combustível. Por aqui, algumas estimativas citam pelo menos 100 mortos", relatou, com a voz cansada.
De acordo com Beglaryan, a escassez de combustível em outros locais levou as pessoas a se aglomerarem diante do depósito. "Muitos querem fugir com urgência e não conseguem encontrar gasolina. Outro problema aqui é que quase todos os moradores foram retirados da região. Alguns vilarejos ainda têm poucas pessoas. As tropas do Azerbaijão impuseram um bloqueio e um cerco a Nagorno-Karabakh nos últimos dias. Nós apoiamos a presença de forças de paz russas", comentou. "
Se não todos, a maioria dos vilarejos foi completamente esvaziada. Stepanakert também está ficando vazia. Muitos moradores querem fugir, mas não podem, por causa do congestionamento."
Beglaryan explicou que caminhões com alimentos chegaram à região vindos da Armênia, mas o carregamento tem sido insuficiente. "Também há falta de medicamentos, o que afeta a saúde de muitas pessoas feridas na guerra e na explosão (desta segunda-feira)", disse. Em um vídeo divulgado pelas redes sociais, uma médica de um hospital de Stepanakert contou que o estabelecimento não dispõe de antibióticos usados no tratamento a queimaduras. "Precisamos, com urgência, de remover pacientes para unidades especializadas em queimaduras, em Yerevan."
Em Nakhichevan,um enclave do Azerbaijão que por razões históricas foi separado pela Armênia e hoje permanece desconectado do Azerbaijão, o presidente azerbaijano, Ilham Aliyev, se encontrou com o colega turco, Recep Tayyip Erdogan.
Aliyev declarou que "os habitantes de Nagorno Karabakh, seja qual for sua etnia, são cidadãos do Azerbaijão". "Seus direitos serão garantidos pelo Estado azerbaijano", prometeu. "Confio no sucesso do processo de reintegração dos armênios de Karabakh à sociedade azerbaijana", acrescentou Aliyev.
Embaixadores
Em entrevista ao Correio, Rashad Novruz — embaixador do Azerbaijão no Brasil — admitiu que entre 3 mil e 4 mil civis armênios deixaram a região, muitos deles acompanhados das famílias. "Desde 18 de setembro, temos notado que alguma movimentação de armênios de meia-idade partindo rumo à Armênia, por meio da estrada Lachin. Eles se identificaram como soldados em nosso posto de controle. Deixamos que passassem. Assim como permitimos sair aqueles que o desejarem. Nós respeitamos a decisão dessas pessoas", afirmou o diplomata. "Muitos daqueles que saíram são parentes de soldados ou eram soldados até pouco tempo atrás. Talvez por medo de terem participado em combates separatistas ilegais."
Ao ser questionado sobre que tipos de garantias as autoridades do Azerbaijão darão aos armênios que decidirem permanecer em Nagorno-Karabakh, o embaixador lembrou que a Constituição de seu país é bastante liberal e cívica. "Ela dará tratamento supremo à comunidade armênia. Temos muitas minorias étnicas no Azerbaijão. Hoje, como resultado da reunião, em Khojaly, entre a comunidade armênia e autoridades do Azerbaijão, o nosso vice-primeiro-ministro viajará para Karabakh e preparará um roteiro para abordar as necessidades sociais, econômicas e humanitárias da comunidade armênia dali. Haverá mais reuniões nos próximos dias. Nosso presidente, Ilham Aliyev, em seu pronunciamento à nação, dias atrás, foi muito transparente e declarou que as pessoas que decidirem ficar em Karabakh terão todos os direitos constitucionais preservados", acrescentou Novruz.
Por sua vez, Armen Yeganian, embaixador da Armênia em Brasília, disse ao Correio ver o risco de os armênios de Nagorno-Karabakh perderem sua própria identidade, enquanto povo. "Essa é uma tragédia terrível, pois 120 mil armênios terão de abandonar sua pátria ancestral, onde viveram pelos últimos 4 mil anos. A operação militar do Azerbaijão, um país rico em petróleo e em armamentos, faz as pessoas abandonarem sua terra-mãe. É algo incompreensível para mim e para a comunidade internacional", desabafou. O diplomata armênio ressaltou que o Conselho de Segurança da ONU expressou sua indignação com a situação. "Infelizmente, as Nações Unidas nada fizeram para prevenir isso. Agora, essas pessoas têm que sair, porque esse é o último recurso. Caso contrário, haverá uma limpeza étnica, sob a perspectiva de um genocídio puro", denunciou Yeganian.
O embaixador armênio qualificou a explosão do depósito de combustível como "uma tragédia sobre outra tragédia". "Falei com Yerevan (capital da Armênia) há poucas horas. Eles me disseram que houve uma explosão em um dos carros. Há certa suspeita, mas não podemos falar com certeza, pois será preciso uma investigação. O fato é que o carro estava perto do depósito de combustível. É fácil usar uma única arma para detonar uma explosão. Não podemos transportar os feridos de Nagorno-Karabakh para a Armênia. Não há paz, temos bloqueios pelas estradas e congestionamento nas estradas", relatou Yeganian. Ele destacou que a população de Nagorno-Karabakh enfrenta um bloqueio há nove meses.
PONTOS DE VISTA
Por Rashad Novruz
"Não há êxodo em massa"
"Não existe um exôdo em massa na região. Se houvesse e todo mundo estivesse saindo, não haveria um encontro entre a comunidade armênia e representantes de nossas autoridades, em 21 de setembro, em Yevlakh. Também não haveria uma reunião mais ou menos bem-sucedida, na manhã de hoje (ontem), em Khojaly, em Karabakh. Se houvesse um êxodo em massa e uma limpeza étnica, não permitiríamos que forças de paz ampliassem o período de mandato. Os soldados russos das forças de paz estão lá e nos ajudam da forma como podem. Eles não obrigam os armênios a partirem. Se artificialmente apoiássemos um êxodo em massa ou limpeza étnica, não teríamos enviado combustível, como diesel, para a comunidade de Karabakh, ontem. Não teríamos decidido enviar, com urgência, alimentos. Nem organizar estações móveis de distribuição de alimentos e de cuidados médicos, tanto em Stepanakert quanto em áreas rurais. Temos feito muito para que eles saibam que podem ficar ali."
Embaixador do Azerbaijão em Brasília
Por Armen Yeganian
"A limpeza étnica é fato"
"O processo de limpeza étnica da população armênia é um fato. Ele acontece em uma grande escala, em toda a região. Basicamente, afeta diariamente 120 mil armênios. Não estou levando em conta as centenas de crimes de guerra que o Azerbaijão tem cometido desde a guerra de 2020. Mas o que estamos testemunhando, por si só, um fato muito vívido de limpeza étnica. A população de Nagorno-Karabakh, o enclave armênio no território do Azerbaijão, é de 120 mil pessoas, das quais 30 mil são crianças. Desde domingo passado, 7 mil pessoas abandonaram a região, atravessando a fronteira com a Armênia. No entanto, as autoridades de Nargono-Karabakh preveem que 99,9% sairão da região. Tem sido impossível para eles sairem, agora, porque a única estrada que liga a Armênia a Nagorno-Karabakh está congestionada. Muitas pessoas tentam fugir com seus próprios carros ou em ônibus. Eu garanto a você que quase todos os armênios sairão de Nagorno-Karabakh."
Embaixador da Armênia em Brasília
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