COLOMBIA

Os resquícios da guerra que seguem no cotidiano da Colômbia

Embora os índices de violência estejam em queda na Colômbia, a lembrança da guerra e do antigo domínio de cartéis de drogas ainda causa sensação de medo no país, fomentando a indústria da segurança privada e dos condomínios fechados.

Cachorros e segurança privada estão por todos os lados nas grandes cidades -  (crédito: BBC)
Cachorros e segurança privada estão por todos os lados nas grandes cidades - (crédito: BBC)
BBC
Daniel Pardo - Correspondente da BBC Mundo na Colômbia
postado em 23/09/2023 16:00 / atualizado em 23/09/2023 22:46

Ao entrar em um shopping center de Bogotá, é bem provável que um segurança uniformizado peça para o cliente desligar o motor e abrir as portas e o porta-malas para uma revista. Um cão farejador treinado participa da ação. O objetivo é verificar se há uma bomba no veículo.

“Isso é necessário?”, perguntou a reportagem da BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, a um segurança do shopping Retiro, no norte da capital colombiana, há poucos dias.

“Bem, você não se lembra que ali na frente (no shopping Andino) a guerrilha plantou uma bomba há cinco anos que matou três pessoas?”

A sociedade colombiana está em estado de alerta. Não está claro se é devido a um trauma herdado de conflitos armados, que teve o seu auge nos anos 1990, ou porque a guerra ainda continua de alguma forma, ou porque a criminalidade tomou conta da sensação de segurança da sociedade. Ou se é um pouco de todas essas coisas.

De qualquer forma, as medidas de segurança que podem ser inusitadas em outros países da América do Sul, também assolados pela criminalidade, não se limitam aos cães de guarda. Na Colômbia, é comum ser inspecionado pelos cachorros ao entrar a pé em um shopping ou mesmo pela polícia.

Também é comum ver soldados armados com fuzis patrulhando ruas e rodovias. E a indústria da segurança privada, que inclui escoltas, guardas e sistemas de monitoramento, é maior do que a polícia.

Hoje a Colômbia não é muito mais violenta do que outros países da região.

Embora os homicídios tenham aumentado no ano passado, o número de 26 mortes violentas por 100 mil habitantes – o principal critério utilizado para medir a violência – não é superior ao do Equador ou do México, e é inferior ao da Venezuela e de Honduras. No Brasil, essa taxa foi de 23,4 por grupo de 100 mil habitantes no ano passado.

Em Bogotá, o número de 12,8 homicídios por 100 mil habitantes, semelhante ao de Medellín, é próximo ao do Uruguai ou do Panamá e inferior ao da Guatemala e do próprio Brasil.

A Colômbia, então, deixou de ser um dos países mais violentos da América Latina. A violência diminuiu principalmente nas grandes cidades.

No entanto, na Colômbia é possível ver medidas que refletem um sentimento forte de insegurança, marcado por uma história traumática e, também, por uma enorme indústria de segurança particular.

‘A guerra acabou, mas o crime não’

É difícil saber quais destas medidas são exclusivas da Colômbia. A segurança pública é um problema em toda a América Latina e as soluções têm sido, em geral, as mesmas.

Cães de guarda e antiexplosivos, que nos casos de shopping centers vivem e dormem no mesmo prédio há anos, surgiram nas décadas de 80 e 90, quando as bombas dos traficantes de drogas, primeiro, e depois dos guerrilheiros, tornaram-se relativamente comuns nas cidades.

Cães de guarda também são comuns no México.

Em 2019, naquele país, foi oficializada e regulamentada a presença de soldados nas ruas para combater o crime. Na Colômbia isso ocorreu na década de 1970, em meio a uma onda de decretos presidenciais de emergência denominados “estado de sítio.”

Há também o exemplo da segurança privada, indústria que tanto no México como na Colômbia representam 1,5% do PIB e são as maiores da região, embora estes números não incluam a segurança privada informal, que pode ser tão grande ou maior que o mercado regularizado.

A indústria, em todo caso, conta com 800 empresas e 400 mil funcionários na Colômbia: seguranças, escoltas, motoristas, treinadores. É um quarto dos funcionários da Polícia Nacional.

José Rivera é dirigente sindical da empresa Fortox, uma das maiores do setor. Ex-militar, trabalha como segurança há 27 anos. Para ele, as medidas são justificadas.

“A guerra acabou, mas o crime não, e o crime também é prejudicial”, diz ele. “Não vejo problema em, por exemplo, ao entrar em um prédio, a pessoa ter de passar por uma revista, com o documento de identidade e registro”.

Na Colômbia é comum que para entrar em um prédio seja necessário se registrar junto a um segurança - isso acontece em muitas cidades do Brasil, também. O procedimento é comum em edifícios de escritórios, universidades e edifícios residenciais.

Mas nada é mais difícil do que entrar como visitante em condomínios residenciais fechados, fenômeno que o arquiteto e urbanista Fernando de la Carrera considera o produto mais “transcendental desta sociedade do medo”.

Eles cresceram em áreas ricas e pobres das cidades, especialmente em Bogotá. E incluem diversas torres cercadas por bares, tudo monitorado por câmeras em todas as esquinas. Esses locais são vigiados por seguranças e cães de guarda e ocupam blocos inteiros.

Por volta de 40% dos 9 milhões de habitantes de Bogotá vivem em um condomínio fechado. Só Ciudad Verde, bairro de condomínios na zona sul, moram 200 mil pessoas - é uma cidade privada.

“O sucesso do modelo de condomínio fechado é alimentado pelo medo. Seu crescimento coincide com o aumento da violência que tomou conta do país a partir da década de 1980”, escreve De la Carrera em Rejalópolis, um estudo que publicou com a Universidade dos Andes.

“O medo nos levou a sacrificar o espaço público e as interações sociais e econômicas que ele gera”, afirma. “A segregação espacial que motiva os complexos fechados aumenta o sentimento de medo, de isolamento e fomenta mais do mesmo: desconfiança, insegurança, mais medo e mais grades”, diz De la Carrera.

Mas medidas extremas de segurança não falam apenas de um presente violento, mas também de um passado revivido cada vez que ocorre um acontecimento violento. Ou seja, o passado é sentido no presente.

Acompanhantes e Toyotas

A Unidade de Proteção Nacional (UNP, na sigla em espanhol) é a organização estatal responsável pela segurança dos colombianos em risco de serem assassinados: funcionários públicos, congressistas, líderes camponeses e uma longa lista de comunidades vulneráveis.

A entidade conta com cerca de 2 mil guarda-costas e outros 8 mil terceirizados de empresas de segurança privada, além de caminhões e armas.

Cerca de 10 mil guarda-costas no país é um número semelhante ao que é relatado pelo Serviço de Proteção Federal, órgão semelhante no México, um país com o dobro do tamanho da Colômbia.

“A segurança deveria ser a salvação do medo, mas na realidade é um negócio”, diz Augusto Rodríguez, diretor da UNP. “E tem gente que brinca com isso, que aumenta ou diminui o risco de acordo com o seu interesse, porque o medo é o terreno fértil para a corrupção”.

Rodríguez acompanhou o presidente Gustavo Petro ao longo de sua carreira: estiveram juntos na guerrilha, no Congresso e na Prefeitura de Bogotá.

“Proteger a vida é a linha política central deste governo”, afirma, para explicar por que alguém tão próximo do presidente preside um cargo de segundo escalão.

Desde que assumiu o cargo, Rodríguez diz ter encontrado diversos esquemas de corrupção no órgão: carros que não são usados ??mas utilizam cota de gasolina, veículos usados para traficar drogas, esquemas de venda de armas legais a grupos ilegais e desvios na estrutura salarial dos funcionários.

“Queremos destoyotizar a Colômbia”, diz, referindo-se aos caminhões Toyota que chegaram ao país na década de 80 e eram símbolo dos narcotraficantes – quase sempre blindados e brancos. Hoje, esses veículos são um símbolo de status.

Rodríguez não acredita que as medidas de segurança sejam exageradas, em geral. “A violência persiste porque persiste a desigualdade, persistem os problemas fundiários (...) Muitos não precisam de esquemas de segurança, têm mais um problema de mobilidade do que de segurança, mas a maioria sim.”

Parece, em todo o caso, que existe uma discrepância entre a realidade dos dados da violência, que hoje é menor do que antes, e as medidas que os colombianos tomam para se protegerem, que só aumentam.

Para Luis Ignacio Ruiz, criminologista e psicólogo social da Universidade Nacional, não existe “medo injustificado”.

“O medo do crime envolve muitas outras emoções que não falam apenas de insegurança”, afirma. “Em vários estudos descobrimos que as pessoas se declaram inseguras quando o seu medo, na realidade, é a pobreza, a falta de educação ou a fome”.

“E também é preciso acrescentar que os números da violência nunca estão completos, porque omitem uma série de crimes que não são noticiados, além do fato de os meios de comunicação, que dão prioridade ao crime, e agora as redes sociais, gerarem um efeito de repetição do evento violento”.

A maior parte do território colombiano já não está em guerra. Mas lembrá-la não é apenas um exercício mental: tem implicações materiais no presente.

E isso deixa os colombianos com medo.

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