Segunda guerra mundial

Lilly e Felice: a história de amor proibida entre a mulher de um soldado nazista e uma judia durante a 2ª Guerra Mundial

A vida de Lilly, simpatizante do nazismo e mãe de quatro filhos, mudou quando ela conheceu Felice, uma judia que vivia escondida; o amor delas foi interrompido com a prisão e deportação de Felice pelos nazistas.

Felice e Lilly viveram sua história de amor durante 18 meses -  (crédito: Museu Judaico de Berlim)
Felice e Lilly viveram sua história de amor durante 18 meses - (crédito: Museu Judaico de Berlim)
BBC
Almudena de Cabo - BBC News Mundo
postado em 23/09/2023 11:05 / atualizado em 23/09/2023 11:28

"Foi como se de repente eu fosse uma pessoa diferente. Me senti livre, viva como nunca antes."

Era assim como a alemã Elisabeth Wust se lembrava do início de seu relacionamento com a judia Felice Schragenheim em plena Alemanha nazista.

As duas viveram uma história de amor proibida em Berlim durante a Segunda Guerra Mundial — até que a felicidade do casal foi interrompida em 21 de agosto de 1944.

Naquele dia, depois de um passeio romântico idílico, Felice foi presa pela Gestapo, a temida polícia secreta de Adolf Hitler, e posteriormente deportada para um campo de concentração.

Seu paradeiro é até hoje desconhecido, assim como o de milhares de judeus e outras minorias que desapareceram durante o sangrento conflito.

A vida de Lilly, como seus amigos e familiares conheciam, nunca mais seria a mesma.

"Esses 18 meses foram um presente que jamais esquecerei. Apesar do meu infortúnio, tive a sorte de conhecê-la e por isso serei grata por toda a minha vida", diz Elisabeth em um documentário da BBC gravado em 1997.

Como Lilly e Felice se conheceram

Até 1942, a vida de Lilly era como a de muitas outras mulheres alemãs. Casada com um ex-funcionário do banco Deutsche Bank, enviado à Frente Oriental com o Exército nazista durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ela era o que muitos chamavam de "uma boa alemã".

Aos 29 anos, Lilly já tinha quatro filhos e simpatizava com o nazismo. O Terceiro Reich concedeu-lhe a Cruz de Honra da Mãe Alemã, uma condecoração dada às mulheres ao terem seu quarto filho.

Seus primeiros anos como mulher casada transcorreram conforme ditava a sociedade da época.

Mas tudo mudou depois de Ulla Schaaf chegar para trabalhar como babá no apartamento de três quartos da família em Schmargendorf, um bairro no sudoeste de Berlim.

Ulla começou a trabalhar para Lilly como parte do ano de trabalho obrigatório estabelecido pelo governo nazista; segundo essa regra, as mulheres jovens deveriam trabalhar em casa ou na agricultura.

Foi assim que Ulla, uma mulher de família comunista e antinazista que recebia regularmente judeus em sua casa, acabou servindo uma família nazista que tinha até um busto de Hitler em casa.

"Minha casa era como a de milhões de alemães. Nunca votei em Hitler, mas fui casada com um nazista", diz Lilly.

"Foi assim que conheci Ulla", lembra ela em conversa com a escritora e jornalista alemã Erica Fischer, que deu origem ao livro "Aimée & Jaguar".

Apesar de mais tarde ter relutado em admitir que se deixou levar pelos ideais nazistas, naqueles anos ela não pôde evitar fazer comentários antissemitas, algo de que algumas pessoas ao seu redor, como Ulla, lembram muito bem.

"Lilly me disse um dia, não me lembro por que ela disse isso, que ela sentia cheiro de judeus", explica Ullah no documentário.

"E quando voltei, contei para Felice e decidimos que tínhamos que colocá-la à prova", acrescenta.

Felice e Ulla eram mais do que apenas amigas — a primeira mudou-se para a casa da segunda quando ela se escondeu para evitar as deportações que se intensificaram no segundo semestre de 1942.

Foi assim que se forjou o primeiro encontro. No dia 27 de novembro daquele ano, Ulla e Lilly encontraram Felice à tarde no Café Berlim, perto da estação de metrô Zoo, no centro da capital alemã.

"Lilly ficou muito feliz por conhecer alguém tão interessante", observa Ulla.

"Felice era uma pessoa muito interessante. Você poderia conversar com ela sobre muitas coisas. Queria ser jornalista, mas primeiro teve que sobreviver àqueles tempos", acrescenta.

A atração entre as duas foi instantânea.

"Conversamos e gostei dela desde o primeiro momento", lembra Lilly.

"Ficamos juntas cerca de uma hora. Depois, ela me acompanhou até a parada do bonde e me deu uma maçã."

Durante esse encontro, Felice Schragenheim, de 20 anos, se apresentou a Lilly como Barbara F. Schrader, nome que aparecia em seus documentos falsos.

Felice se muda para a casa de Lilly

Desde o primeiro encontro, as duas mulheres cultivaram uma amizade intensa até que finalmente, após ser internada para uma operação no hospital, Lilly finalmente aceitou seus sentimentos e, em maio de 1943, Felice mudou-se para a casa delas.

Lilly finalmente acabou se divorciando do marido em outubro daquele mesmo ano.

"Não sabia que ela gostava de mulheres. Foi uma surpresa para ela, embora mais tarde, olhando para trás, ela tenha reconhecido que sempre as observou", diz Erica Fischer à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, sobre as inúmeras conversas que teve com Lilly para escrever seu livro.

"Embora ela estivesse muito relutante em falar sobre seu passado como simpatizante do nazismo, quando se tratava de seu relacionamento com Felice ela tinha uma memória longa e falava livremente sobre sexualidade. Ela me contou que teve o primeiro orgasmo da vida com Felice, embora tivesse quatro filhos com o marido", conta Fischer sobre Lilly, uma mulher que, segundo ela, a impressionou particularmente pela intensidade com que falava.

Felice confessa que é judia

Para evitar suspeitas, Lilly apresentou Felice aos vizinhos como uma prima de Frankfurt que havia fugido de casa por causa das bombas.

"Além disso, havia poucos homens por causa da guerra e era normal que as mulheres saíssem juntas e dançassem umas com as outras. Ninguém considerou isso suspeito", diz a escritora alemã.

Coisas como Felice não ter cartão de racionamento de comida (algo que os judeus não podiam ter) nunca fizeram Lilly suspeitar que ela era judia.

A certa altura, Lilly começou a achar estranho que Felice às vezes saía de casa sem dizer para onde estava indo. Apesar de morarem juntas, Felice manteve suas atividades clandestinas para passar documentos aos judeus.

"No início de maio, perguntei-lhe incansavelmente uma noite se algo estava acontecendo. Se quisermos ficar juntas por toda a vida, devemos ser completamente honestas uma com a outra", Lilly se lembra de ter dito a ela.

"'Se eu lhe contar o que está acontecendo, você ainda me amará?', ela me perguntou. E, então, me disse: 'Sou judia'", conta Lilly.

"Naquele momento, todos os momentos que vivi passaram diante dos meus olhos e eu disse a ela: 'Está tudo bem agora' e a abracei", acrescenta.

Prisão e deportação de Felice

Na primavera de 1944, Felice foi trabalhar no jornal nazista National-Zeitung como estenógrafa.

"Sabia que ela fazia coisas clandestinas, mas não o quê nem como. Ainda tenho os diários de Felice onde estão as citações marcadas, mas o que elas significam é um mistério para mim", explica Lilly no livro.

"Ela sempre me disse para não me contar nada a ninguém porque era muito perigoso."

Felice Sara Schragenheim foi declarada fugitiva em junho de 1943, mas as duas mulheres continuaram vivendo sem se esconder.

"Felice vivia com medo constante de que alguém a reconhecesse ou de ser descoberta num posto de controle da Gestapo. Também sabia que havia judeus que revelavam o paradeiro de outros judeus para salvar suas vidas", explica Jörg Waßmer, historiador do Museu Judaico de Berlim, à BBC News Mundo.

No dia 21 de agosto de 1944, as duas mulheres foram tomar banho no rio Havel, próximo ao Wannsee, um balneário de verão muito famoso em Berlim.

Ao retornarem, a Gestapo as esperava na porta de casa com uma foto de Felice na varanda.

"Foi muito provavelmente uma denúncia de alguém, embora não sabemos quem foi, se foi um vizinho, um velho conhecido…", diz o historiador Waßmer.

Felice foi levada para um centro de detenção em Berlim, onde passou alguns dias até que, em 5 de setembro, foi transferida para o campo de concentração de Theresienstadt.

Dali, levaram-na para Auschwitz, depois para Groß Rosen, e finalmente para Bergen Belsen.

"A partir daí, não sabemos mais sobre o paradeiro dela. Ou ela morreu numa das chamadas marchas da morte ou ao chegar a Bergen Belsen", acrescenta o historiador.

A vida de Lilly depois de perder Felice

Lilly pagou um preço alto por ter a coragem de visitar Felice enquanto ela estava detida em Berlim e arriscar-se a viajar a Theresienstadt para tentar vê-la: foi forçada a se apresentar na delegacia de polícia de seu bairro dia sim, dia não.

Apesar de estar sob vigilância dos nazistas, Lilly não hesitou em receber em sua casa, alguns meses depois, três outras vítimas da perseguição nazista: Lucie Friedländer, Katja Lazerstein e Rosa Ohlendorf, que conheceu antes do Natal de 1944.

As três mulheres judias permaneceram escondidas com ela até o fim da guerra.

Alimentá-las foi um desafio devido à grave escassez de alimentos que existia em Berlim na época. As mulheres sobreviveram, embora Lucie Friedländer tenha cometido suicídio logo após o fim do conflito.

Após a guerra, Lilly não recebeu a pensão como viúva porque não anulou seu divórcio a tempo. Ela recebia assistência social e vivia desse dinheiro com seus quatro filhos.

"Ela trabalhava como faxineira. Ela era muito pobre e deprimida, o que a levou a tentar o suicídio duas vezes", diz Fischer.

"Ela se casou com um eletricista para sustentar os filhos, mas acabou se divorciando dele porque ele maltratava seus filhos e tinha muito ciúme."

Muitos anos se passaram até que sua história se tornasse conhecida, primeiro com o livro de Fischer "Aimée e Jaguar. Uma história de amor, Berlim 1943" e depois com o filme "Aimée & Jaguar" (1999), baseado na obra literária.

Aimée e Jaguar eram os apelidos pelos quais as duas mulheres se chamavam afetuosamente.

"Lilly era a amorosa, por isso Aimée. E Felice parecia uma onça, a caçadora", explica Fischer.

"A década de 1950 na Alemanha ainda era uma época muito homofóbica. Fiquei com medo de falar sobre isso", explica a autora sobre os motivos de Lilly manter sua história em segredo por tanto tempo.

"Os sobreviventes receberam pouca atenção nas décadas de 50, 60 e 70 na Alemanha", observa o historiador do Museu Judaico.

"Além disso, não devemos esquecer que se tratava de um relacionamento lésbico e que os homossexuais foram perseguidos até o final de 1969", acrescenta Waßmer.

Lilly viveu em suas memórias até o fim de seus dias.

"Felice era insubstituível para mim. Tinha os livros dela, as fotos dela. Nunca vivi sem ela. Talvez achassem que era uma louca, mas quando eu andava pela rua me sentindo sozinha, e me sentia muito sozinha, ia trabalhar, mas ninguém me conhecia, então, naqueles momentos eu a sentia de alguma forma comigo."

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br