Entrevista

"A democracia no Equador está em absoluto risco", diz Patricio Pazmiño Freire

Jurista admite o risco de o enfraquecimento do Estado e da ação do narcotráfico favorecerem o surgimento de um regime autoritário

Patricio Pazmiño Freire, jurista e advogado equatoriano, em entrevista ao Correio  -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Patricio Pazmiño Freire, jurista e advogado equatoriano, em entrevista ao Correio - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
postado em 17/09/2023 03:55 / atualizado em 17/09/2023 08:18

De passagem por Brasília, onde participou de um trabalho de formação de juízes na Escola de Magistratura do Distrito Federal, o advogado equatoriano Patricio Pazmiño Freire — presidente da Corte Constitucional do Equador (a máxima instância do Judiciário do país) entre 2007 e 2015; e juiz e vice-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 2016 a 2022 — alertou ao Correio que a democracia equatoriana está em risco. "É preciso a recuperação da capacidade do Estado e do poder público para colocarem ordem na sociedade, de desenharem políticas sérias e integrais de segurança", explicou, ao advertir sobre o perigo de regimes autoritários se apossaram do poder. Ele também admitiu que a segurança no Equador sofre uma derrocada desde 2017, com o fim do governo socialista de Rafael Correa. Para o jurista equatoriano, o Estado precisa encontrar soluções para a prisão provisória e incorporar a política criminal à política pública integral do Estado.

Formado pela Universidad Central de Ecuador, Patricio Pazmiño trabalhou com a assessoria jurídica a trabalhadores e a organizações indígenas na salvaguarda de seus direitos econômicos e sociais.

A menos de um mês do segundo turno das eleições presidenciais, marcado para 15 de outubro, como se explica a violência no país?

Os fatos ligados à violência no Equador não surgem por geração espontânea. Eles vêm em decorrência de algumas situações que ocorreram. Entre 2007 e 2017, os índices de assassinatos foram registrados por organismos multilaterais e pelos observatórios como os mais baixos da região. Inclusive, chegou a ocupar a segunda colocação entre os países com mais segurança. A situação mudou dramaticamente com a mudança de governo. Quando Lenín Moreno ocupou a Presidência, negligenciou o plano de governo que o levou ao poder e aplicou o que ele e sua equipe pensavam ser a política adequada. A partir disso, as estatísticas começam a se modificar.

O que mudou desde então?

Passou a haver um grande abandono da obrigação do Estado em outorgar aos cidadãos condições de segurança, de tranquilidade, de controle e combate à delinquência. Essas são parte das razões para a onda de violência.

Então, esse ponto de mutação se deu após o governo de Rafael Correa?

Sim, definitivamente. Por isso, digo que é preciso recorrermos aos dados do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e das Nações Unidas que realizam o monitoramento da criminalidade. É indubitável que os últimos 15 anos marcaram uma diferença. Depois disso, com o governo de Lenín Moreno (2017-2021) e o atual de Guillermo Lasso, os índices de criminalidade dispararam de maneira brutal.

O que se espera do próximo governo?

O governo que vencer as eleições de 15 de outubro deverá reforçar o papel do Estado e das suas instituições; exigir uma reestruturação profunda dos gastos públicos para priorizar o investimento social, avaliando e auditando — técnica e legalmente — os processos de legalidade na utilização da dívida externa dos últimos seis anos. Também procurar o financiamento mais adequado e sem custos sociais, para reverter seis anos de ausência de investimento público.

Alguns especialistas temem que o Equador se torne uma base para o narcotráfico. O que acha disso?

Nós já vivemos um enfraquecimento da instabilidade muito grave. Denúncias permanentes de corrupção, com a compra de aduanas e nos portos. No Equador, o tráfico nunca havia se assentado. É preciso a recuperação da capacidade do Estado e do poder público para colocarem ordem na sociedade, de desenharem políticas sérias e integrais de segurança, de armarem e equiparem as polícias. Também de uma colaboração com a Justiça para sentenças e medidas provisionais. Exige-se um tratamento de fundo para evitar que o país siga esta rota de desinstitucionalização e de controle do aparato estatal público por essas forças à margem da lei. Isso é seriamente indispensável para o Equador. Caso contrário, existe um grave risco de seguir em uma extinção democrática, com a perda de capacidade de controle e de reação.

Então, a democracia no Equador está em risco?

Está em absoluto risco, pois isso pode levar ao pensamento que a democracia não soluciona os problemas e buscar soluções autoritárias. A democracia tem que demonstrar que pode resolver seus problemas com a Constituição, com as leis, com as instituições e no marco do respeito aos direitos.

O Código Penal do Equador tem sido brando com o narcotráfico?

Pensar que esses fenômenos da violência, do narcotráfico, do crime organizado são somente viáveis de serem enfrentados com mão dura, pressão e prisão é algo insuficiente e sem resultados. Uma política criminal deve ser parte de uma política pública integral do Estado. Como todos os problemas sociais, a criminalidade não tem causa única; é multicausal. Se a solução fosse prender o delinquente e lotar as prisões, seria muito fácil. Mas esses delinquentes têm famílias, crianças, filhos e pais. Há uma realidade social. Se não houver uma política pública integral, que seja parte de uma política criminal, de uma normativa judicial, juízas e juízes sólidos e consolidados, um Ministério Público trabalhando, não será possível. Se você tem 40 anos de prisão ou pena perpétua, e não resolveu as carências de educação, saúde e emprego, o problema persistirá. No Equador, estima-se que 40 mil jovens estão envolvidos com os grupos criminosos. É um exército.

Como controlar a ação do crime dentro das penitenciárias?

O problema da superlotação nos presídios tem várias causas. Não se trata de uma solução. No meu país, acredita-se que 70% ou 80% dos presos estão sem sentença. Por que tanta gente no cárcere e sem sentença? O segundo fator é o uso indiscriminado da prisão preventiva. A normativa interamericana de direitos humanos reconhece que a prisão preventiva é provisória. Se você normalizar a prisão preventiva, terá as prisões lotadas de inocentes, que não foram julgados.

Qual é a alternativa à prisão preventiva?

Como se pode fazer uma política de redução da concentração de pessoas rodeadas pela criminalidade? Como utilizar as medidas substitutivas à prisão? Seguem lotando as universidades do crime. Essas pessoas acabam recrutadas ou formadas pelo crime. Que essas pessoas fiquem sem passaporte, com tornozeleira eletrônica e presas em casa, além de se apresentarem regularmente ao tribunal. Mudar a cultura que está por trás da punição. Um Estado punitivo não termina resolvendo o problema, mas o agravando. É preciso analisar a integridade com uma visão garantista dos direitos das pessoas, que têm que estar sujeitas a esse plano mais integral.

O presidente Guillermo Lasso lançou mão da morte cruzada. Isso foi uma agressão à democracia?

A Constituição do Equador foi aprovada em 2008. Uma Assembleia Constituinte elegeu constituintes, aprovou o texto e logo o submeteu à consulta popular, que a avalizou. Essa Constituição é parte do que se denomina "Constitucionalismo Latino-Americano". Uma proposta de transformação do constitucionalismo, onde se reformou as instituições mais tradicionais das democracias da região. Um dos elementos de transformação era o acesso direto do povo a ser escutado. A democracia representativa restringiu a participação popular, quando deputados, prefeitos e o presidente representam o povo. Nessa participação, as vias diretas de consulta ao povo são um dos grandes aportes do constitucionalismo. Consultar o povo para as decisões que são do fortalecimento do Estado e sobre grandes problemas nacionais. Não para qualquer coisa de uso conjuntural. Isso levou à ampliação das democracias. Mas, nós, seres humanos, podemos dar um uso adequado ou um mau uso. Outra coisa é que ela se utilizada, perversamente, para um governo obter benefícios temporários.

Foi o caso do presidente Lasso, que teria se antecipado a uma condenação por corrupção?

A morte cruzada é um mecanismo que foi utilizado pela primeira vez. Por ser a primeira vez, ela demonstrou suas fragilidades, seus vazios, suas lacunas jurídicas. Por exemplo, se pode ou não apelar à morte cruzada quando se está em julgamento político? Prestes a ser destituído, ao ver que não terá os votos necessários, um presidente cassa o Congresso. Outro ponto aqui é o demasiado tempo para novas eleições. Até lá, segue no governo uma pessoa desqualificada pela cidadania. Seis meses! Outra das grandes debilidades. A aplicação da morte cruzada teve procedimentos que não foram cumpridos. Era necessário aguardar o pronunciamento do Congresso. Mas o processo foi adiantado e encerrado.

Na condição de ex-juiz da Corte Interamericana, como garantir os direitos humanos das minorias na América do Sul?

Em termos conceituais, promovendo a efetiva aplicação dos direitos humanos, em geral, e, em particular, dos direitos econômicos, sociais e ambientais da população. Como conceito, isso é importante. Como realidade prática, a Corte dita sentenças em direitos civis e sociais; e sanciona os Estados para que reparem os danos. Quem tem a responsabilidade de fazer cumprir as sentenças internacionais são os tribunais nacionais. Inclusive, antes que sejam enviados ao sistema Interamericano. O ideal é que a Corte Interamericana de Direitos Humanos seja a última instância, que elabora jurisprudência e grandes doutrinas. Mas a solução dos problemas do dia a dia — desemprego, destruição da Amazônia, saúde, por exemplo — deve ser dada de maneira imediata pelos nossos juízes. Quando surgirem sentenças internacionais, corresponde a eles executá-las. Esta realidade é chamada de controle de convencionalidade. Os juízes têm que aplicar as normas nacionais e as sentenças da Corte para garantir os direitos. Nosso sistema judicial e nossas autoridades têm a obrigação de cumprir os tratados de pautas internacionais. Não existe outra via que não seja o cumprimento da Constituição por juízes e juízas.

Qual é a receita para fortalecer o sistema Interamericano de direitos humanos?

Sem dúvidas, há avanços muito importantes, como o desenvolvimento do direito que chamamos de ius commune, um desenvolvimento doutrinário jurisprudencial de muita qualidade. Também houve um desenvolvimento de direitos que saíram do âmbito civil e político dos direitos individuais. Nesses 20 anos, se reconheceram os direitos coletivos, de povo e de nacionalidades. Hoje, há um debate sobre o reconhecimento dos direitos da natureza. Outras grandes conquistas são as medidas de proteção, rechaçando a pena de morte e evitando a detenção provisória, que se constituem em penas antecipadas. O cumprimento dessas sentenças é um desafio. A falta de financiamento mais sério e constante dos Estados para a Corte é um grande desafio. Os juízes não podem ter um desempenho completo, de dedicação exclusiva, porque não há dinheiro. Os países europeus e os EUA são os que financiam, em grande medida, essas atividades. Isso deveria mudar. Nossos governantes deveriam dar o fortalecimento suficiente para que os juízes possam trabalhar. É importante que a Corte tenha jurisdição completa para conhecer os casos. Também o acesso direto das vítimas ao sistema. Que o mundo das demandas e das sentenças esteja integralmente nas mãos da Corte. Que a Comissão siga seu trabalho de monitoramento, de investigação, de denúncias; que os Estados façam o que têm que fazer; e que a Corte realize seu trabalho integral como Corte.

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