Moral

O estudo que rebate ideia de que 'mundo está cada vez mais desonesto'

Pesquisadores argumentam que 'ilusão do declínio moral' é persistente em todo o mundo e traz consequências sociais e políticas danosas.

Percepção de que valores sociais estão se corrompendo são bastante difundidas, mas psicólogos dizem que se trata de uma ilusão -  (crédito: Getty Images)
Percepção de que valores sociais estão se corrompendo são bastante difundidas, mas psicólogos dizem que se trata de uma ilusão - (crédito: Getty Images)
BBC
Paula Adamo Idoeta* - Da BBC News Brasil em Londres
postado em 15/09/2023 06:38 / atualizado em 15/09/2023 09:44

“No meu tempo dava para confiar nas pessoas”

“O mundo ficou mais desonesto”

“A moral coletiva está em declínio”

Frases do tipo refletem um sentimento comum, de que valores sociais importantes se corromperam ao longo do tempo.

No entanto, dois pesquisadores americanos acham que essa percepção parece ser, na verdade, uma ilusão coletiva, que acaba tendo efeitos nocivos para a sociedade e até para a política.

“Por toda a minha vida, escutei as pessoas falando sobre o declínio da bondade humana”, diz o psicólogo experimental americano Adam Mastroianni, ao explicar por que decidiu colocar isso à prova em uma pesquisa científica para seu pós-doutorado na Universidade Columbia (EUA).

Os resultados, coletados por Mastroianni em conjunto com o também psicólogo Daniel Gilbert, da Universidade Harvard, foram publicados em junho na revista Nature.

A dupla de pesquisadores começou analisando 177 pesquisas de opinião feitas entre 1949 e 2019, nos Estados Unidos, com uma amostra de 220 mil respondentes.

Na ampla maioria dessas pesquisas, os americanos responderam que os valores morais estavam se perdendo.

Depois, os pesquisadores decidiram observar se o mesmo comportamento se repetia no mundo. Analisaram 58 pesquisas com 354 mil participantes em 59 países, incluindo duas no Brasil, realizadas em 2002 e 2006.

Em uma, conduzida pelo instituto Pew, 94% dos participantes brasileiros afirmaram que o declínio moral era um problema grande ou muito grande, índice acima da média (na casa dos 80%) geral dos demais países pesquisados.

Mastroianni destaca que a percepção de que os valores sociais estão corroídos em comparação com o passado é sentida tanto entre jovens quanto idosos, e entre pessoas alinhadas a variados espectros políticos.

Nos EUA, por exemplo, pesquisas apontam que tanto conservadores quanto progressistas concordavam, mesmo que em graus diferentes, que a sociedade estava pior do que era antes.

Ou seja, essa percepção independe do conceito subjetivo que cada indivíduo tem sobre a própria moralidade e sobre a quais valores sociais elas dão importância.

Agora, eis o ponto interessante: a segunda etapa da pesquisa de Mastroianni e Gilbert coloca em xeque essa percepção de piora.

Nessa fase, os dois psicólogos focaram nos resultados de mais de cem pesquisas globais, conduzidas entre 1965 e 2020, em que os participantes respondiam a perguntas do tipo: "como você avalia o estado da moralidade no seu país?".

A maioria respondia que achava a situação ruim. Mas esse índice se manteve estável - sem sinais significativos de piora - mesmo com o passar dos anos.

O mesmo acontecia quando as pessoas respondiam se tinham sido tratadas com respeito no dia anterior, ou se achavam as pessoas solícitas: nada indicou que houve uma piora com o passar dos anos.

Algo que não bate, portanto, com a percepção de declínio dos valores morais.

“Se, assim como alegavam os participantes da etapa 1, a moralidade está em declínio há décadas, seria fácil identificar mudanças nas respostas das pessoas a essas perguntas (da etapa 2). (Mas) foi bastante difícil encontrar qualquer mudança nas respostas das pessoas”, afirma Mastroianni em seu blog.

“Fizemos testes estatísticos para identificar se havia mudanças significativas nas respostas das pessoas ao longo do tempo. Não encontramos nenhuma. Às vezes esses indicadores morais subiam um pouco (como em 2021, no gráfico abaixo), mas na média eles não se moveram.”

Ou seja, faz décadas que muita gente acha que a sociedade está pior do que era antes, mas Mastroianni defende que essa sensação não é corroborada pelas próprias pessoas entrevistadas.

“Você imaginaria que, em lugares que fossem menos instáveis e agora estão mais estáveis, menos pessoas diriam que existe um declínio moral acontecendo, e vice-versa”, diz Mastroianni à BBC News Brasil.

“Mas não vemos isso nas pesquisas, o que sugere que a sensação das pessoas não necessariamente coincide com a experiência recente delas, embora elas achem que sim. Isso sugere que se trata de algo psicológico, e não da realidade”, ele agrega.

‘Como você pode achar que as coisas não pioraram?’

Mastroianni ressalta que isso não quer dizer que o estado atual do mundo esteja bom. Só que a comparação com o passado não é produtiva.

“É muito comum eu ouvir das pessoas: ‘como você pode achar que as coisas não estão piores? Olha quantas coisas ruins acontecem no mundo’. Mas (...) o que estamos investigando é: como as pessoas tratam umas às outras? Nisso, temos bons indicativos de que as coisas não pioraram”, argumenta o pesquisador.

Mas então por que é tão persistente essa sensação de que as pessoas estão piores?

No artigo na Nature, os pesquisadores ressaltam dois pontos:

“Primeiro, vários estudos já indicaram que seres humanos tendem a buscar e a reter informações negativas a respeito de outras pessoas, e os meios de comunicação em massa satisfazem essa tendência com um foco desproporcional em (notícias sobre) pessoas se comportando mal”, escrevem.

“Sendo assim, as pessoas podem acabar se deparando com mais informações negativas do que positivas sobre a moralidade geral, e esse ‘efeito de exposição enviesada’ pode explicar por que as pessoas acreditam que a moralidade atual é relativamente baixa.”

Em segundo lugar, eles dizem que “numerosos estudos já demonstraram que, quando as pessoas relembram eventos positivos e negativos do passado, os eventos negativos têm mais probabilidade de serem esquecidos, lembrados de modo diferente ou de terem perdido seu impacto emocional.”

Os pesquisadores também conduziram experimentos próprios, perguntando diretamente a uma amostra de participantes: ‘quão gentis/boas as pessoas são hoje?’, em comparação com diferentes momentos no passado. E, curiosamente, os participantes identificavam um declínio moral apenas na duração de suas próprias vidas, não antes de terem nascido.

“É como se fosse: ‘foi só quando eu cheguei à Terra que (a moralidade) começou a piorar’”, diz Mastroianni.

Impactos políticos e sociais

Mas por que importa se o declínio moral é ilusório ou não?

Mastroianni acredita que essa sensação pode ter consequências perigosas, inclusive na política.

No artigo científico, ele e Gilbert citam uma pesquisa de opinião realizada em 2015 nos EUA, um ano antes da eleição presidencial, em que 76% dos entrevistados afirmavam que “lidar com a falência moral do país” deveria ser uma das maiores prioridades do futuro governo.

“Os EUA enfrentam muitos problemas bem documentados, de mudanças climáticas e terrorismo a injustiça racial e desigualdade econômica - e, no entanto, a maioria dos americanos acredita que o governo deveria dedicar seus escassos recursos a reverter uma tendência imaginária”, argumentam os pesquisadores.

Em outras palavras, se a falência moral for mais psicológica do que baseada em fatos, como combatê-la com políticas públicas?

“Essa ideia de que as pessoas costumavam ser melhores umas com as outras - e não são mais - causa uma sensação muito ruim, que as pessoas ficam tentando desfazer”, detalha Mastroianni à BBC News Brasil.

“E isso é parte do perigo: você não consegue desfazer, porque a tendência na realidade não existe. (...) O que existem são evidências de que as pessoas agem do mesmo modo que a geração anterior. Então quando acreditamos que vamos mudar a sociedade e trazer de volta o passado, ou a época em que as pessoas se respeitavam, a verdade é que não vamos conseguir. É como ligar o extintor de incêndio num prédio que não está em chamas: você só vai deixar todo mundo molhado.”

É um contexto que, na visão de Mastroianni, favorece políticos autoritários, que ganham apelo tentando resgatar um passado glorioso que pode não ser factível.

“Isso é exatamente o que aspirantes a déspotas fazem: alardeiam que há uma catástrofe como forma de justificar suas medidas extremas”, afirma o pesquisador em seu blog.

Por fim, ele acha que essa percepção também leva ao isolamento de pessoas ou de grupos, diante da resistência maior em interagir com outros - aqueles que personifiquem essa suposta decadência moral.

‘Sempre suspeitei disso’ x ‘tenho provas’

Desde que o artigo foi publicado na Nature, Mastroianni diz que tem recebido reações variadas de leitores.

“Tem gente que me escreve dizendo, ‘eu sempre suspeitei disso (que o declínio moral é uma ilusão), obrigado por colocar isso na forma de dados. Vou mostrar ao meu cunhado e mostrar como ele estava errado’. Mas também tem gente que me diz: ‘tenho provas de que a moralidade está decaindo, vejo muito mais cercas e muros no meu bairro, algo que não aconteceria se as pessoas estivessem sendo legais umas com as outras’”, afirma ele.

“Também observei isso nos dados que eu próprio coletei. (...) As pessoas que achavam que a sociedade piorou me diziam: ‘ah, agora existem as redes sociais, é tão mais fácil ser maldoso com alguém que não está na sua frente’. E as poucas pessoas que achavam que a sociedade melhorou diziam: ‘ah, agora existem as redes sociais, é mais fácil perceber que os seres humanos não são tão diferentes assim uns dos outros’. E ambas coisas são verdade. (...) Acho que ambas as reações refletem que as pessoas têm suas próprias teorias sobre o mundo e elas apenas adequam as evidências a essas teorias”.

*Com gráficos de Caroline Souza, da equipe de Jornalismo Visual da BBC

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