"Eu não tenho mais ninguém aqui." As palavras do estudante Ihab Solimar, 18 anos, escancaram a realidade cruel que se abateu por tantos outros moradores de Derna. Em questão de segundos, Ihab viu sua casa e boa parte de sua vida ruírem. Tudo o que conhecia como lar foi arrastado pelo paredão de água que desceu das montanhas, depois que a chuva torrencial, causada pela tempestade Daniel, rompeu duas barragens, separadas por 12km. "Aconteceu às 2h30 de segunda-feira, 11/9 (21h30 de domingo. 10/9). Acordei com o som da barragem explodindo. Era um barulho muito alto. Também ouvi gritos por todos os lugares. Então, nossa casa caiu sobre nós e não me lembro de nada", contou ao Correio. "Toda a minha família está morta. Meus pais, meus quatro irmãos e a empregada doméstica. Sobrevivi por um milagre. Eu e um de meus irmãos ficamos sob os escombros por quatro horas. Fomos salvos, mas ele não resistiu."
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A organização não governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF) estima em 5 mil o número de mortos, mas o prefeito de Derna acredita que entre 18 mil e 20 mil pessoas morreram. Milhares de moradores estariam desaparecidos. O temor fica por conta do surgimento de doenças. "O risco de epidemia é alto devido aos cadáveres e à agua parada acumulada. A água de outras cidades afetadas pela tempestade ficou contaminada, o que aumenta o perigo", admitiu ao Correio Tamer Ramadan, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) na Líbia.
De acordo com ele, os desafios, no momento, são os serviços de saúde comprometidos e sobrecarregados. "Além disso, milhares de famílias estão desabrigadas, e mortos continuam nas ruas, que são potenciais fontes de infecção", observou Ramadan. O Comitê Intenacional da Cruz Vermelha (CICV) mandou uma remessa de 6 mil corpos sacos mortuários.
Nesta quinta-feira (14/9), a ajuda internacional se intensificou, com aviões e navios cedidos por países da Europa e do Oriente Médio para o transporte de donativos e equipamentos de emergência. Pelo menos 30 mil pessoas ficaram desabrigadas. A ONU anunciou que enviará cerca de US$ 10 milhões (cerca de R$ 49,2 milhões) para ajudar os sobreviventes da catástrofe em Derna.
A Organização Meteorológica Mundial (OMM) admitiu que a maioria das mortes "poderia ter sido evitada", caso os sistemas de alarme de rompimento de barragens e de gestão de emergências tivessem funcionado. Políticos líbios pressionam o procurador-geral do país, Al-Siddiq Al-Sour, para abrir um inquérito sobre a catástrofe, a fim de apurar possíveis negligências.
Vários caminhões carregados com alimentos conseguiram entrar na cidade. "No entanto, uma multidão tentou acessá-los. Há uma organização ruim para a entrega de comida e de água, além de suprimentos básicos", desabafou à reportagem a médica Fatima Alzhra Balha, 26. "Minha tia e cinco filhos ainda não foram encontrados. Nem mesmo o prédio onde eles viviam. Tive sorte. Moro no bairro de Sheeha, uma área montanhosa, e não sofri diretamente o impacto. Na noite da tragédia, corpos boiavam pela cidade e no mar. A maior parte de Derna foi varrida, em meio à lama. No dia seguinte, não existia mais nada do centro da cidade para ver."
Desaparecidos
Fatima tem ajudado a elaborar um site para que as famílias publiquem os nomes dos desaparecidos. De acordo com ela, muitos cadáveres estão sendo sepultados em covas coletivas. "A identificação dos mortos é difícil. E há muitos a serem encontrados", disse. Ela relatou que sobreviventes pularam dos prédios e se feriram, tentando fugir do tsunami de lama. Outros se machucaram caindo no solo escorregadio. Na terça-feira (12/9), o mar começou a "devolver" os corpos.
Os feridos mais graves estão sendo enviados para cidades, como Toubrak (a 144km) e a Benghazi (250km). Com a cidade dividida em duas — todas as pontes caíram —, o acesso aos hospitas foi dificultado. "As equipes de resgate chegaram tarde demais. Pessoas estão soterradas há dias. Tivemos uma palestra sobre o gerenciamento de epidemia e poluição de água. Pode levar uma semana ou duas até vermos os primeiros registros de doenças", afirmou Fatima.
Amna Khalid Alameen, 23 anos, relatou ao Correio que a situação em Derna é "muito difícil". "A razão dessa catástrofe é que as duas barragens representavam um grande perigo para cidade e deveriam ter sido reconstruídas dois anos atrás. Ninguém deu atenção, e parte da cidade está perdida", assegurou. As autoridades começaram uma operação de retirada dos moradores, a fim de evitar surtos de doenças.
Segundo Amna, a chuva começou a cair por volta das 20h30 de domingo (10/9). "Não era nada sério. Ninguém estava com medo ou assustado. Apenas fechamos a porta e as janelas do apartamento. Estávamos felizes. Era a primeira vez que chovia em setembro. Na internet, todos publicavam fotos e vídeos da chuva", contou.
Às 2h30 de segunda-feira (11), a vizinha de Amna bateu à sua porta com força. "Ela gritava: 'Saiam agora! A água está cobrindo tudo!'. Peguei uma sacola e coloquei minha identidade e meu passaporte. Amarrei um pedaço de véu nos braços dos meus quatro irmãos e subimos as escadas até o quinto andar de nosso prédio. Outro vizinho gritava: 'Saiam agora! A água está no terceiro andar!' Todo mundo começou a chorar e a gritar. Fomos até o telhado e sentimos como se fosse um terremoto. Na verdade, eram os prédios próximos desabando", lembra. Assim que a água baixou, eles caminharam por 3km até um local seguro. Um dos irmãos de Amna cortou o pé durante a fuga.
Morador do bairro de Shiha (oeste), o ativista Ali Alghazali, 34 anos, teve a casa poupada pela água. "Na hora do desastre, a chuva se intensificou e ficamos sem telefone e eletricidade. Senti o cheiro de gasolina como resultado da explosão de um posto de combustível. Mais tarde, soube que familiares de minha mãe e de minha esposa, além de primos haviam morrido", disse ao Correio. "Temos água e comida, mas a distribuição é precária e nem todos conseguem ser atendidos. Há um novo desafio: depois de mais de três dias, os corpos começam a se decompor e se transformam em foco de desastre ambiental e de doenças."
Duas perguntas para...
TAMER RAMADAN, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) na Líbia
Como o senhor analisa a extensão do desastre em Derna?
A situação é catastrófica, pois bairros inteiros foram varridos pela tempestade. São milhares e milhares de afetados, entre mortos, isolados e desaparecidos. Apesar de os socorristas do Crescente Vermelho terem se dirigido imediatamente para a área afetada — e estão fazendo o melhor que podem para apoiar a população atingida —, os números são enormes e além de nossas capacidades e de nossos recursos disponíveis.
Quais as principais necessidades e urgências na resposta à tragédia?
A principal necessidade é desenvolvermos a solidariedade da comunidade internacional para apoiar a população afetada na Líbia. Isso inclui o envio de equipamentos médicos e de saúde, aparelhos de comunicação, barracas, comida e outros itens, além de carros com tração nas quatro rodas e sacos para armazenar os corpos. (RC)
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