África

Líbia: sobreviventes da catástrofe épica em Derna relatam drama

Sobreviventes das inundações que devastaram cidade falam o Correio e admitem negligência. Políticos cobram investigação sobre o rompimento de duas barragens

Ihab Solimar, 18 anos, morador de Derna (Líbia) -  (crédito: Arquivo pessoal )
Ihab Solimar, 18 anos, morador de Derna (Líbia) - (crédito: Arquivo pessoal )
postado em 15/09/2023 06:00

"Eu não tenho mais ninguém aqui." As palavras do estudante Ihab Solimar, 18 anos, escancaram a realidade cruel que se abateu por tantos outros moradores de Derna. Em questão de segundos, Ihab viu sua casa e boa parte de sua vida ruírem. Tudo o que conhecia como lar foi arrastado pelo paredão de água que desceu das montanhas, depois que a chuva torrencial, causada pela tempestade Daniel, rompeu duas barragens, separadas por 12km. "Aconteceu às 2h30 de segunda-feira, 11/9 (21h30 de domingo. 10/9). Acordei com o som da barragem explodindo. Era um barulho muito alto. Também ouvi gritos por todos os lugares. Então, nossa casa caiu sobre nós e não me lembro de nada", contou ao Correio. "Toda a minha família está morta. Meus pais, meus quatro irmãos e a empregada doméstica. Sobrevivi por um milagre. Eu e um de meus irmãos ficamos sob os escombros por quatro horas. Fomos salvos, mas ele não resistiu."

A organização não governamental Médicos Sem Fronteiras (MSF) estima em 5 mil o número de mortos, mas o prefeito de Derna acredita que entre 18 mil e 20 mil pessoas morreram. Milhares de moradores estariam desaparecidos. O temor fica por conta do surgimento de doenças. "O risco de epidemia é alto devido aos cadáveres e à agua parada acumulada. A água de outras cidades afetadas pela tempestade ficou contaminada, o que aumenta o perigo", admitiu ao Correio Tamer Ramadan, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) na Líbia.

Carros empilhados sobre uma estrutura de quebra-ondas, à beira do Mediterrâneo
Carros sobre uma estrutura de quebra-ondas, à beira do Mediterrâneo: mar começa a devolver corpos (foto: Abdullah Doma/AFP)

De acordo com ele, os desafios, no momento, são os serviços de saúde comprometidos e sobrecarregados. "Além disso, milhares de famílias estão desabrigadas, e mortos continuam nas ruas, que são potenciais fontes de infecção", observou Ramadan. O Comitê Intenacional da Cruz Vermelha (CICV) mandou uma remessa de 6 mil corpos sacos mortuários. 

Nesta quinta-feira (14/9), a ajuda internacional se intensificou, com aviões e navios cedidos por países da Europa e do Oriente Médio para o transporte de donativos e equipamentos de emergência. Pelo menos 30 mil pessoas ficaram desabrigadas. A ONU anunciou que enviará cerca de US$ 10 milhões (cerca de R$ 49,2 milhões) para ajudar os sobreviventes da catástrofe em Derna.  

A Organização Meteorológica Mundial (OMM) admitiu que a maioria das mortes "poderia ter sido evitada", caso os sistemas de alarme de rompimento de barragens e de gestão de emergências tivessem funcionado. Políticos líbios pressionam o procurador-geral do país, Al-Siddiq Al-Sour, para abrir um inquérito sobre a catástrofe, a fim de apurar possíveis negligências. 

Vários caminhões carregados com alimentos conseguiram entrar na cidade. "No entanto, uma multidão tentou acessá-los.  Há uma organização ruim para a entrega de comida e de água, além de suprimentos básicos", desabafou à reportagem a médica Fatima Alzhra Balha, 26. "Minha tia e cinco filhos ainda não foram encontrados. Nem mesmo o prédio onde eles viviam. Tive sorte. Moro no bairro de Sheeha, uma área montanhosa, e não sofri diretamente o impacto. Na noite da tragédia, corpos boiavam pela cidade e no mar. A maior parte de Derna foi varrida, em meio à lama. No dia seguinte, não existia mais nada do centro da cidade para ver."

Desaparecidos

Fatima tem ajudado a elaborar um site para que as famílias publiquem os nomes dos desaparecidos. De acordo com ela, muitos cadáveres estão sendo sepultados em covas coletivas. "A identificação dos mortos é difícil. E há muitos a serem encontrados", disse. Ela relatou que sobreviventes pularam dos prédios e se feriram, tentando fugir do tsunami de lama. Outros se machucaram caindo no solo escorregadio. Na terça-feira (12/9), o mar começou a "devolver" os corpos. 

Os feridos mais graves estão sendo enviados para cidades, como Toubrak (a 144km) e a Benghazi (250km). Com a cidade dividida em duas — todas as pontes caíram —, o acesso aos hospitas foi dificultado. "As equipes de resgate chegaram tarde demais. Pessoas estão soterradas há dias. Tivemos uma palestra sobre o gerenciamento de epidemia e poluição de água. Pode levar uma semana ou duas até vermos os primeiros registros de doenças", afirmou Fatima. 

Fatima Alzhra Balha, médica em Derna (Líbia)
Fatima Alzhra Balha, médica em Derna: "Minha tia e cinco filhos não foram encontrados. Nem mesmo o prédio onde eles viviam" (foto: Arquivo pessoal )

Amna Khalid Alameen, 23 anos, relatou ao Correio que a situação em Derna é "muito difícil". "A razão dessa catástrofe é que as duas barragens representavam um grande perigo para cidade e deveriam ter sido reconstruídas dois anos atrás. Ninguém deu atenção, e parte da cidade está perdida", assegurou. As autoridades começaram uma operação de retirada dos moradores, a fim de evitar surtos de doenças.

Segundo Amna, a chuva começou a cair por volta das 20h30 de domingo (10/9). "Não era nada sério. Ninguém estava com medo ou assustado. Apenas fechamos a porta e as janelas do apartamento. Estávamos felizes. Era a primeira vez que chovia em setembro. Na internet, todos publicavam fotos e vídeos da chuva", contou. 

Amna Khalid Alameen, em foto tirada pela amiga Aisha Al-Hassadi, morta na tragédia
Amna Khalid Alameen: "Fomos até o telhado e sentimos como se fosse um terremoto. Na verdade, eram os prédios próximos desabando" (foto: Aisha Al-Hassadi)

Às 2h30 de segunda-feira (11), a vizinha de Amna bateu à sua porta com força. "Ela gritava: 'Saiam agora! A água está cobrindo tudo!'. Peguei uma sacola e coloquei minha identidade e meu passaporte. Amarrei um pedaço de véu nos braços dos meus quatro irmãos e subimos as escadas até o quinto andar de nosso prédio. Outro vizinho gritava: 'Saiam agora! A água está no terceiro andar!' Todo mundo começou a chorar e a gritar. Fomos até o telhado e sentimos como se fosse um terremoto. Na verdade, eram os prédios próximos desabando", lembra. Assim que a água baixou, eles caminharam por 3km até um local seguro. Um dos irmãos de Amna cortou o pé durante a fuga. 

 

Morador do bairro de Shiha (oeste), o ativista Ali Alghazali, 34 anos, teve a casa poupada pela água. "Na hora do desastre, a chuva se intensificou e ficamos sem telefone e eletricidade. Senti o cheiro de gasolina como resultado da explosão de um posto de combustível. Mais tarde, soube que familiares de minha mãe e de minha esposa, além de primos haviam morrido", disse ao Correio. "Temos água e comida, mas a distribuição é precária e nem todos conseguem ser atendidos. Há um novo desafio: depois de mais de três dias, os corpos começam a se decompor e se transformam em foco de desastre ambiental e de doenças."

 

Duas perguntas para...

TAMER RAMADAN, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) na Líbia

Tamer Ramadan, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na Líbia
TAMER RAMADAN, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) na Líbia (foto: X/Reprodução)

Como o senhor analisa a extensão do desastre em Derna?

A situação é catastrófica, pois bairros inteiros foram varridos pela tempestade. São milhares e milhares de afetados, entre mortos, isolados e desaparecidos. Apesar de os socorristas do Crescente Vermelho terem se dirigido imediatamente para a área afetada — e estão fazendo o melhor que podem para apoiar a população atingida —, os números são enormes e além de nossas capacidades e de nossos recursos disponíveis.

Quais as principais necessidades e urgências na resposta à tragédia?

A principal necessidade é desenvolvermos a solidariedade da comunidade internacional para apoiar a população afetada na Líbia. Isso inclui o envio de equipamentos médicos e de saúde, aparelhos de comunicação, barracas, comida e outros itens, além de carros com tração nas quatro rodas e sacos para armazenar os corpos. (RC)

 

  • Moradores de Derna, no leste da Líbia, observam a destruição provocada pelo tsunami de lama que varreu parte da cidade
    Moradores de Derna, no leste da Líbia, observam a destruição provocada pelo tsunami de lama que varreu parte da cidade Foto: AFP
  • Amna Khalid Alameen, em foto tirada pela amiga Aisha Al-Hassadi, morta na tragédia
    Amna Khalid Alameen: "Fomos até o telhado e sentimos como se fosse um terremoto. Na verdade, eram os prédios próximos desabando" Foto: Aisha Al-Hassadi
  • Fatima Alzhra Balha, médica em Derna (Líbia)
    Fatima Alzhra Balha, médica em Derna: "Minha tia e cinco filhos não foram encontrados. Nem mesmo o prédio onde eles viviam" Foto: Arquivo pessoal
  • Carros sobre uma estrutura de quebra-ondas, à beira do Mediterrâneo: mar começa a devolver corpos
    Carros sobre uma estrutura de quebra-ondas, à beira do Mediterrâneo: mar começa a devolver corpos Foto: Abdullah Doma/AFP
  • Tamer Ramadan, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho na Líbia
    TAMER RAMADAN, chefe da delegação da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (IFRC) na Líbia Foto: X/Reprodução
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