O local e a data não poderiam ter sido mais simbólicos. No 50º aniversário do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende e instituiu 17 anos de ditadura militar, com o general Augusto Pinochet, os discursos exaltaram a força do Estado de Direito e condenaram as violações dos direitos humanos. Diante do Palácio de La Moneda, bombardeado em 11 de setembro de 1973, e na presença de líderes mundiais, de sobreviventes da tortura e de familiares, o presidente chileno, Gabriel Boric, saiu em defesa de um compromisso pela democracia. "Não importa a cor do regime que viole os direitos humanos, seja vermelha, azul, ou preta: os direitos humanos devem ser respeitados sempre, e sua violação, condenada sem qualquer sombra", declarou. "Não há como separar o golpe do que vimos depois. Desde o mesmo momento foram violados direitos humanos."
- 'Sopro da morte': as memórias do golpe no Chile por ex-assessor de Salvador Allende
- Aumento da violência reduz rejeição à ditadura no Chile
- Encapuzados vandalizam palácio presidencial durante marcha no Chile
- Golpe no Chile: viúva de ex-ministro e ativista contam o que viram
- Golpe no Chile: "Vimos quando tiraram o presidente, morto, do palácio"
- Golpe no Chile: 50 anos depois, secretária de Allende conta detalhes
Ausente da cerimônia, cujo lema foi "Democracia sempre", o partido União Democrática Independente (UDI, de extrema direita) divulgou uma nota marcada pelo negacionismo. Atribuiu a derrocada de Allende à "situação extrema enfrentada pelo Chile, marcada pelo ódio; a legitimação da violência como via de ação política e a severa polarização provocada por um setor da esquerda chilena". O partido advertiu que a ruptura institucional e social foi algo "inevitável".
Entre os convidados presentes na cerimônia diante do La Moneda, estava o juiz espanhol Baltasar Garzón. "Nesta manhã, estive no evento em comemoração aos 50 anos. Foi muito emotivo. O discurso de Isabel Allende foi muito potente, assim como o do presidente Boric. A tristeza é que, uma vez mais, a direita e a extrema direita têm estado alheias e nem sequer puderam reconhecer a existência do golpe de Estado", lamentou ao Correio o juiz que expediu a ordem de prisão contra Pinochet, em 1998.
"O que mais me preocupa é o fato de alguns chilenos acreditarem que o golpe foi algo bom e, inclusive, uma responsabilidade do próprio presidente Allende e de seu governo. Isso quando Allende não só foi defensor da democracia como o primeiro governo em que o socialismo chegou à democracia por eleições livres", acrescentou. Ainda segundo Garzón, as políticas sociais e de desenvolvimento de direitos e proteção à cidadania foram exemplos para o mundo. "Transmito o meu apoio às vítimas. Minha participação na marcha até o cemitério memorial dos mortos pela ditadura vai nesse sentido."
Além de Garzón, estiveram no La Moneda os presidentes Andrés López Obrador (México), Gustavo Petro (Colômbia), Luis Arce (Bolívia) e Luis Lacalle Pou (Uruguai). Também do Uruguai compareceu o ex-presidente José "Pepe" Mujica. Ex-secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), o ex-líder colombiano Ernesto Samper também foi a Santiago do Chile, assim como o homólogo Juan Manuel Santos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva divulgou um comunicado enfatizando a democracia.
Emoção
Filha de Salvador Allende, a senadora Isabel Allende chorou ao discursar e enviou um recado à extrema-direita, ao acusá-la de "fechar os olhos" para violações dos direitos humanos, de tentar justificar o golpe e de buscar "inverter responsabilidades". "Hoje, quando a democracia no mundo enfrenta novas ameaças autoritárias, é mais necessário do que nunca renovar o compromisso de todos e cada um pela democracia. É por isso, presidente (Boric), que é muito valiosa a carta Democracia Sempre, que você assinou com todos nossos ex-presidentes do Chile", disse.
Sem poder ir ao La Moneda, por causa de uma febre, Pedro Felipe Ramírez, ex-ministro da Habitação do presidente Salvador Allende, afirmou ao Correio que "o futuro é dos democratas". "Penso que não existem condições nacionais nem internacionais para que um golpe de Estado volte a ocorrer no Chile em um futuro relativamente próximo", opinou. "Parece-me que os militares chilenos não estão disponíveis para isso. Além disso, a direita busca um golpe de Estado quando se sente ameaçada. No momento, ela se sente forte", acrescentou.
Presidenta do Grupo de Familiares de Executados Políticos, Alicia Lira Mathus, 74 anos, disse à reportagem que Pinochet deixou uma herança de "grandes tragédias familiares, destruição do país e o rasgo do tecido social que existia". "Havia um espírito alegre de converter uma sociedade mais justa e igualitária com um sonho coletivo. Pinochet anulou esse tecido social com a morte, com a opressão e com o exílio."
Também ao Correio, Marcelo Mella — professor de ciência política da Universidad de Santiago de Chile — explicou que as principais sequelas do golpe e da ditadura de Pinochet, ainda vigentes no país, são duas: a rachadura na sociedade chilena e a incapacidade da elite de conduzir um processo de saída da crise política, econômica e social. "Tem sido impossível superar a divisão na sociedade do Chile. Foi mal compreendido que as políticas de reconciliação dos dois primeiros governos democráticos permitiam fechar, com o decorrer do tempo, a ferida deixada pela ditadura. Isso não se mostrou assim", comentou. "Quando o sistema educacional não constrói uma memória histórica que possibilite o diálogo, perde-se a capacidade de conversar sobre o que significou para o Chile essa experiência e de construir linhas vermelhas, para valorizar a defender a democracia."
Mella advertiu que a inabilidade da elite de apresentar soluções para a crise tem uma capacidade "magnética" para manter o país detido historicamente, sem vislumbrar o futuro. "Se os partidos não recuperarem a liderança política, se os governos não retomarem a condução desse processo, o apreço pela democracia seguirá caindo", alertou.
Lula homenageia Allende
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicou no X — antigo Twiter — nota em defesa da democracia. "Mais do que recordar os 50 anos do golpe militar no Chile e da morte do Salvador Allende, hoje é dia de reafirmarmos a democracia como valor essencial para os seres humanos. Que sem ela desaparece aquilo que nos faz humanos", escreveu. Lula afirmou que Allende foi a primeira vítima da ditadura de Pinochet, "pelo 'crime' de tentar fazer do Chile um país mais desenvolvido e mais justo". "Hoje é dia de celebrar a democracia, homenagear Allende e repudiar qualquer tentativa de golpe — no Chile, no Brasil, na América do Sul, no mundo."
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br