Chile

Golpe no Chile: 50 anos depois, secretária de Allende conta detalhes

Patricia Espejo Brain conta o que aconteceu em 11 de setembro de 1973, dia da ruptura institucional que deu lugar à ditadura de Augusto Pinochet

Patricia Espejo Brain, 82 anos:
Patricia Espejo Brain, 82 anos: "Foi um dia horroroso e muito triste para a humanidade" - (crédito: Arquivo pessoal)
Rodrigo Craveiro
postado em 10/09/2023 06:00

A memória vasculha, com riqueza de detalhes, aquele 11 de setembro de 1973, o dia que apagou momentaneamente o farol da democracia no Chile e impôs a política do calabouço, da tortura, do desaparecimento forçado, da execução sumária. Entre 1970 até a véspera do golpe que colocou o general Augusto Pinochet no poder, Patricia Espejo Brain, socióloga e escritora, 82 anos, trabalhou como secretária particular do presidente Salvador Allende, com quem criou um laço de respeito e de amizade. "Eu me recordo de tudo", desabafou ao Correio, por telefone. "Foi um dia horroroso e muito triste para a humanidade, não apenas para os chilenos. Foi a ruptura da democracia e o caminho para o vandalismo, que significou a ditadura." O início de um regime que se perpetuou por quase 17 anos, assassinando 3.200 pessoas e deixando 1.162 desaparecidas.

Patricia se lembra que o presidente tomou a decisão de chamar um plebiscito. Os chilenos seriam convocados a participar de uma consulta popular na Universidade Técnica do Estado. "Allende perguntaria ao povo se queria seguir com ele e sua plataforma Unidad Popular ou se desejaria trocar de presidente. No dia 10 de setembro, o presidente se reuniu com todos os chefes militares, inclusive os Carabineros e a polícia, e lhes informou que chamaria o plebiscito", relatou.

Allende, Patricia e os demais assessores do presidente ficaram no palácio até tarde da noite daquela segunda-feira. "Tínhamos trabalhado por muitas horas. Foi preciso preparar o pronunciamento à nação e explicar o que significaria o plebiscito. Allende iría discursar com a faixa presidencial, simbolizando que era um governante legítimo, um presidente constitucional escolhido pela democracia", disse a ex-secretária, que se emocionou algumas vezes, durante a entrevista. No dia seguinte, o telefone na casa de Patricia tocou por volta das 7h. Um dos médicos de Allende a sondava sobre o que poderia ocorrer, depois de ele receber ordens para se dirigir ao La Moneda. Sem informações, a secretária presidencial interrompeu o médico e pediu-lhe que aguardasse enquanto ligaria para a residência de Allende, a uns 30 minutos do palácio.

  • FILES - Chiles Supreme Court of Justice president (L) gives the presidential sash to General Augusto Pinochet who becomes Chiles supreme chief, in September 1973. The military coup detat led by Augusto Pinochet against the constitutional President Salvador Allende, took place in Santiago 11 September 1973. President Allende died on 11 September 1973 and Augusto Pinochet established himself as the head of the ensuing military regime. -
  • Soldados posicionados sobre o telhado de um prédio em frente ao Palácio de La Moneda: cenário de guerra AFP
  • TO GO WITH AFP STORIES CHILE-COUP-ANNIVERSARYFILES - Picture taken 11 September 1973 of the attack against the Palacio de la Moneda in Santiago during the military coup led by General Augusto Pinochet against constitutional president Salvador Allende. AFP PHOTO/ARCHIVO PRENSA LATINA HO
  • Salvador Allende, em foto tirada sete meses antes: detenção e suicídio AFP
  • FILES - This undated file photo shows Chilean ruler Gen. Augusto Pinochet (L) waving to wellwishers from a motorcade in Santiago, Chile, while his Defense Minister Vice-Admiral Patricio Carvajal (R) looks on. Pinochet led the 11 September 1973 military coup that toppled and killed leftist president Salvador Allende. AFP PHOTO HO

"A telefonista da residência do presidente não quis me contar o que se sucedi. Então, eu lhe pedi: 'Comunique-me com o presidente'. Ela respondeu: 'Não. Neste momento, o presidente está indo para o La Moneda. Ele não quer que as mulheres sigam para lá. Temos ordens para avisá-las'. Isso me causou muita preocupação", lembra. Minutos depois, Beatriz Allende, uma das filhas de Salvador, telefonou para Patricia e solicitou que a buscasse para irem ao palácio, pois tinha perdido a chave do carro. Assim que Patricia chegou para dar carona a Beatriz, um homem encontrou e entregou a chave à filha do presidente.

 No caminho até o La Moneda, Patricia e Beatriz — então grávida de 7 meses — perceberam que muitos motoristas faziam o sentido inverso e retornavam para suas casas. "Nós fomos detidas na Plaza Itália. Os policiais avisaram que não seguíssemos viagem, pois seria 'perigoso'. Eu os desacatei e continuamos avançando, com muita dificuldade, pois havia muitos bloqueios militares", relata Patricia. "Quando chegamos à esquina das Ruas Moneda e Morandé, vimos o presidente entrar pela porta do palácio. Beatriz o interceptou. Os militares haviam cercado tudo. Eles o prenderam e não me deixaram passar. Havia combates e eles tinham metralhado o prédio. Eu explicava quem era eu e, naquele momento, não sabia que um golpe de Estado estava acontecendo. Enquanto eu discutia com os policiais apareceu um grupo grande de militares que estavam envolvidos com o golpe e usavam um distintivo alaranjado no pescoço. Foi aí que me dei conta do que acontecia. Eles me impediram de avançar. Um dos generais que comandava o ataque ao Palácio de La Moneda ordenou que saíssemos dali pois usariam um tanque. Os mesmos militares se assustaram e me soltaram. Saí de lá para buscar a esposa do senhor Allende, Hortensia. Foi absolutamente impossível, pois Santiago inteira estava tomada pelas Forças Armadas."

Patricia decidiu ir até a própria casa ver como estava o filho pequeno. "Recebi, então, uma ordem do presidente e de Beatriz. Disseram-me que não havia solução e que era um golpe de Estado. Alegaram que a única saída seria que fôssemos à Embaixada de Cuba", relata. A representação diplomática estava cercada de militares e a secretária de Allende foi aconselhada a se refugiar na residência da embaixadora cubana. "Um militar colocou uma metralhadora na cabeça dos meus filhos, que tinham 6 e 7 anos. Tivemos que passar a noite na residência. Eles nos insultaram e diziam que não seríamos libertados. Durante horas, um helicóptero sobrevoou a casa da embaixadora. Além de mim e de meus filhos, havia uma mulher com um bebê de 45 dias e o pai da embaixadora. Meu pai me chamou por telefone. Ele era bombeiro e estava no La Moneda. Perguntei-lhe se o presidente tinha se suicidado. Eu não tinha nenhuma dúvida de que o presidente não sairia dali e se mataria. Ele havia nos dito isso em várias ocasiões", afirmou a secretária.

Em 12 de setembro, os militares prosseguiram com os insultos e tentaram invadir a residência da embaixadora. Na mesma noite, a Junta Militar rompeu relações com Cuba. Patricia e os filhos sentiram-se em uma terra de ninguém, sem segurança. No dia seguinte, o embaixador da Suécia assumiu os interesses de Cuba, e isso deu a Patricia e aos filhos a oportunidade de sair, acompanhados dos funcionários diplomáticos de Havana. De lá, seguiram de avião para Havana, onde ela permaneceu  exilada até 1978. Naquele ano, parentes que tinham boas relações com os militares chilenos lhe disseram que poderia regressar ao Chile. "Decidi voltar. Quando fui buscar o meu passaporte na Venezuela, eles haviam cancelado a minha autorização para entrar. Tive que ficar, com dois filhos, em um país que eu não conhecia. Eu me senti muito mal e sozinha."

Nos últimos 50 anos, Patricia acredita que a sociedade chilena retrocedeu ao não reconhecer uma ditadura feroz. Um regime que semeou dor, luto e terror.

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