Um país com 32 milhões de crianças vivendo em algum tipo de pobreza e em que policiais mataram, entre 2021 e 2022, 17 pessoas por dia. Este é o Brasil que a diretora-executiva do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Catherine Russell, visitou pela primeira vez na semana passada.
Russell é a quarta mulher a chefiar a agência e a oitava americana a ocupar o mais alto posto no Unicef. Desde sua criação, apenas americanos chefiaram o Unicef. Ela chegou ao cargo com o apoio do governo dos Estados Unidos. Durante o governo de Barack Obama (2009 a 2017), Russell atuou como embaixadora-geral do país para assuntos relacionados à mulher.
No governo de Joe Biden, ela trabalhou na equipe de transição e foi chefe do gabinete pessoal do presidente americano.
Em fevereiro de 2022, ela assumiu a chefia do Unicef. Na semana passada, ela fez uma visita ao Brasil onde se reuniu com seis ministros de Estado, entre eles Wellington Dias (Desenvolvimento Social), Silvio Almeida (Direitos Humanos), Camilo Santana (Educação) e Marina Silva (Meio Ambiente).
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Russell classifica a quantidade de crianças brasileiras vivendo em algum tipo de pobreza como "assustadora", mas diz estar otimista após os encontros com os integrantes do governo. No país, ela também visitou estados como Pernambuco, onde assinou acordos com o governo estadual para estimular a busca ativa de crianças e adolescentes fora da escola.
Em meio a recentes polêmicas sobre o uso de câmeras corporais por policiais brasileiros, ela defendeu o uso do dispositivo. "As câmeras corporais ajudam a aumentar a confiança na polícia", disse Russell.
A defesa do sistema, que consiste em câmeras acopladas no uniforme de policiais e que gravam suas atividades, acontece em um momento em que a ampliação do seu uso ainda é alvo de controvérsias.
Os defensores das câmeras afirmam que elas contribuem para a redução da letalidade policial uma vez que as ações dos PMs ficariam registradas em vídeo e poderiam ser usadas em investigações.
Um estudo conduzido pelo Unicef e divulgado em maio deste ano apontou uma queda na morte de crianças e adolescentes por PMs após adoção das câmeras.
Os contrários ao uso dos dispositivos afirmam que elas criam constrangimentos aos policiais durante ações e que isso podem colocar suas vidas em risco.
Levantamento feito pelo portal G1 indica que as PMs de apenas sete das 27 unidades da federação adotaram as câmeras corporais.
Em São Paulo, um desses Estados, o assunto foi um dos principais temas da eleição estadual, em 2022.
O atual governador, Tarcísio de Freitas (Republicanos), chegou a prometer que iria acabar com o uso dos dispositivos.
Em meio à repercussão negativa ante o comentário, ele recuou. Apesar disso, outro levantamento feito pelo G1 aponta que o governo paulista divulgado em junho deste ano aponta que o governo paulista interrompeu a aquisição de novas câmeras.
O assunto voltou à tona nas últimas semanas depois que uma ação da PM de São Paulo terminou na morte de pelo menos 16 pessoas em apenas seis dias e levantaram suspeitas sobre a legalidade da abordagem policial. As imagens das câmeras nos uniformes dos policiais envolvidos na ação são consideradas essenciais para desvendar o que de fato aconteceu no episódio.
Apesar de defender o uso das câmeras, Russell diz que elas não seriam a única resposta para aumentar a confiança da população nas polícias.
Russell também falou sobre como a guerra na Ucrânia pode estar atraindo mais atenção global do que outras crises humanitárias.
Confira os principais trechos da entrevista concedida por Russell à BBC News Brasil.
BBC News Brasil - De acordo com um relatório da UNICEF que acabou de ser lançado, o Brasil tem agora 32 milhões de crianças e adolescentes vivendo em diferentes tipos de pobreza. Qual é o tamanho do desafio para reverter essa tendência?
Catherine Russell - Os números aqui são bastante assustadores. Trinta e dois milhões são muitas crianças que estão enfrentando situações muito difíceis. Mas eu colocaria isso em um contexto mais amplo que é: em todo o mundo estamos vendo uma situação muito difícil para as crianças.
E embora eu ache que a comunidade internacional tenha feito alguns progressos ao longo dos anos na remoção de famílias da pobreza, a covid-19 realmente tornou isso muito mais complicado. E esse é o caso em todas as partes do mundo, honestamente. Aqui no Brasil, é um número muito grande, mas o Brasil é um país grande que está indo bem em muitos aspectos.
BBC News Brasil - Nos últimos anos, países como o Brasil tiveram sucesso ao tirar pessoas da pobreza e transferi-las para uma espécie de classe média. O cenário atual no Brasil em relação às crianças é apenas responsabilidade da covid-19?
Russell - A covid–19 não é a única responsável e é preciso ser claro sobre isso. A covid-19 exacerbou o que já estava acontecendo. Acho que há uma grande divisão no mundo entre pessoas que têm coisas e pessoas que não têm. E, como eu disse anteriormente, estávamos progredindo na retirada das pessoas da pobreza profunda. Os números ainda são desafiadores e essa é uma das muitas coisas que nos preocupam com as crianças.
O que analisamos agora são outras questões que tornam as coisas muito difíceis para as crianças, incluindo a crise climática, que está dificultando muito a vida para famílias em muitas partes do mundo. Também olhamos para os conflitos persistentes que são ruins em si mesmos, mas que também são ruins porque eles drenam muito recursos da comunidade humanitária que poderiam ser direcionados para elas (crianças).
BBC News Brasil - Quando se trata do Brasil, quais razões específicas a senhora vê como uma grande força que está levando tantas pessoas, especialmente crianças e adolescentes, a diferentes tipos de pobreza?
Russell - Há muitas razões para isso, mas acho que a chave para isso é que o governo deve tentar abordar essas questões de uma forma holística. O Unicef está aqui para ajudar e apoiar isso, mas precisamos garantir, por exemplo, que as crianças tenham acesso à educação, saúde, proteção social e que estejam protegidas da violência generalizada.
BBC News Brasil - Quais as consequências para o país se ele não abordar esse problema adequadamente?
Russell - Essa é uma questão interessante. Acabei de fazer alguns eventos esta manhã com jovens aqui no Brasil, e tudo que eu conseguia pensar era que eles estavam me contando sobre o quão complicadas eram suas próprias situações pessoais. Eles se envolveram em programas onde acabaram de ter ótimas experiências. E acho que o mundo se abriu para eles e eles puderam ver o grande potencial que tinham e seu potencial de contribuir para a sociedade. Mas a verdade é que não conseguimos alcançar todas as crianças.
Há crianças que ficam para trás. E o que isso significa para um país? Isso significa que eles estão perdendo tanto potencial… tanta possibilidade de que essa criança possa, sei lá, descobrir a cura para o câncer ou liderar o país no futuro. O desafio é que, se os países como o Brasil não derem oportunidades a esses jovens, eles ficarão para trás e isso é um custo enorme considerando o que deixaria de acontecer se elas tivessem oportunidade.
BBC News Brasil - Como foi a relação do Unicef com o antigo governo e como é com o atual?
Russell - O Unicef está aqui (no Brasil) há décadas trabalhando com um governo após o outro. É mais fácil trabalhar com alguns governos do que com outros, com certeza. Esta é minha primeira viagem (ao Brasil) e tive uma reunião no segundo dia em que estive aqui, acho que eram seis ou sete ministros. Todos eles se reuniram e estavam falando sobre seu compromisso com as crianças e, principalmente, sobre seu compromisso de trabalhar juntos [...] Nós trabalhamos com qualquer governo e qualquer entidade que esteja tentando fazer o que é preciso pelas crianças [...] mas neste caso, nos sentimos muito otimistas.
BBC News Brasil - A senhora acabou de descrever como é a relação entre o Unicef e o atual governo. A senhora disse que há governos mais fáceis e outros mais difíceis de lidar. Como foi para o Unicef lidar com a antiga administração?
Russell - Eu diria que houve trabalho acontecendo aqui (durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro). E, como eu disse, trabalhamos aqui há décadas. É muito melhor para nós quando temos um governo que prioriza as crianças. Esse é um fato simples e óbvio.
Então, estamos otimistas de que esta administração fará isso. Eu recebi sinais muito bons durante as reuniões que tive no Brasil [...] No final das contas, independentemente do que esteja acontecendo em um país, ainda faremos o possível para ajudar o maior número possível de crianças.
BBC News Brasil - De acordo com um estudo divulgado recentemente, o Brasil teria dois milhões de meninos e meninas que deixaram a escola antes de terminarem a educação básica. Na era da inteligência artificial, quão distante o Brasil está em relação a países desenvolvidos em termos educacionais?
Russell - Infelizmente, esse é um problema em todos os lugares e que também foi agravado pela covid-19. Estou chocado com os números que estamos vendo, ou seja, estimamos que 70% das crianças de dez anos no mundo atualmente não conseguem ler uma frase ou fazer cálculos matemáticos simples [...]
A covid-19 agravou tudo porque, muitas crianças em muitos países não tiveram acesso à internet e elas ficaram fora da escola por dois anos. E isso é muito complicado porque quando elas voltam pra escola, elas são pessoas totalmente diferentes [...] Além disso, muitas crianças entraram no mercado de trabalho para ajudar a sustentar suas famílias.
BBC News Brasil - Mas quando a senhora olha para o Brasil, quais são as maiores dificuldades? Quais são as maiores dificuldades que o Brasil enfrenta quando se trata de educação?
Russell - A primeira coisa é que você precisa levar os jovens de volta pra escola e isso não é tão fácil quanto parece. Isso é um desafio em todos os lugares. E certamente há lugares no Brasil onde isso é muito difícil. O desafio número dois é, quando eles estiverem lá, garantir que você possa retomar o aprendizado com rapidez suficiente para que possam seguir em frente e continuar seus estudos. E não é fácil. E acho que é um desafio com o qual todos os países estão lutando.
BBC News Brasil - Há um estudo produzido pelo Unicef que mostrou uma redução de 66% no número de crianças e adolescentes mortos pela Polícia Militar de São Paulo após a adoção das câmeras corporais. Apesar disso, apenas sete estados do Brasil adotaram as câmeras corporais como política pública. Qual é o papel que deve ser desempenhado pelo governo federal em relação às câmeras corporais?
Russell - Para a maioria das pessoas em uma comunidade, ver a polícia é uma coisa positiva. Você sente que ela está lá para ajudar. Se você tiver algum problema, chame a polícia. Mas em muitas comunidades, esse não é o caso e isso é muito preocupante. Todo governo local, estadual, federal, deve pensar em formas de aumentar a confiança (na polícia) e para que as comunidades, os jovens, e particularmente, os jovens negros, não vejam a polícia como uma ameaça.
Em nossa opinião, as câmeras corporais ajudam a aumentar a confiança na polícia porque aumentam a quantidade de informação disponível sobre o que está realmente acontecendo [...] Sobre se o governo federal deva fazer algo a respeito, não tenho uma posição sobre isso.
BBC News Brasil - A senhora gostaria de ver mais polícias em estados brasileiros adotando as câmeras corporais?
Russell - Me parece que as câmeras corporais são úteis, mas acho que elas são apenas uma peça no esforço de aumentar a confiança das comunidades na polícia. É preciso haver mais conversas. A polícia precisa tratar as pessoas com mais respeito e acho que as câmeras podem ser uma parte importante disso, mas elas não são a única resposta.
BBC News Brasil - Mudando para a arena internacional, em que medida a guerra na Ucrânia afeta as condições de vida das crianças não apenas na Ucrânia, mas no resto do mundo?
Russell - A guerra na Ucrânia é obviamente uma situação terrível tanto para as crianças que moram lá quanto para as milhões de crianças que deixaram o país e estão vivendo em países vizinhos e sofrendo muito [...] Mas acho que o objetivo da sua pergunta é: ela está desviando recursos que, de outra forma, iriam para outros lugares? Não há dúvida de que muitos recursos estão indo para a Ucrânia. E não há dúvidas de que existem muitos conflitos e muitas situações difíceis que estão extremamente sub-financiadas no mundo.
Não está claro o quão direta é essa correlação: se não tivéssemos a (guerra na) Ucrânia, as pessoas ainda estariam doando dinheiro para essas outras crises como na Síria, no Iêmen, na República Democrática do Congo? [...] Os conflitos continuam aumentando, mas o dinheiro, na verdade, não aumenta. Estamos tentando lidar com muitos desafios com recursos bastante limitados.
BBC News Brasil - Como a senhora responde às críticas sobre o fato de que o conflito na Ucrânia tem atraído muito mais atenção que os conflitos em outros lugares?
Russell - Estamos tentando mobilizar recursos em todos os setores para todos os diferentes desafios que estamos enfrentando. Não cabe a mim criticar. Na verdade, estamos razoavelmente bem financiados. Temos muita confiança de nossos doadores. Mas quanto às decisões que os indivíduos ou países tomam sobre onde colocar seu dinheiro, isso não é realmente algo sobre o qual comentamos. Somos gratos pelo que recebemos.
Sempre precisamos de mais [...] Há coisas que certamente atraem recursos como, por exemplo, um grande terremoto como o que houve na Turquia e na Síria (em fevereiro de 2023). Muitos recursos foram destinados para lá. As pessoas tendem a doar recursos com base no que veem nas notícias. No caso da Ucrânia, certamente, parte disso é motivado pelo fato de haver alguma proximidade (da Ucrânia) com alguns dos países que têm apoiado os esforços.
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br