ARGENTINA

Dolarizar, o controverso remédio milagroso do candidato Milei para Argentina

Argentinos são tentados a usar a fórmula extrema e inexplorada do candidato presidencial ultraliberal para resolver os seus problemas financeiros

Em um país com uma inflação anual superior a 100% que destrói o poder de compra dos salários, o dólar é um refúgio -  (crédito:  ALEJANDRO PAGNI / AFP)
Em um país com uma inflação anual superior a 100% que destrói o poder de compra dos salários, o dólar é um refúgio - (crédito: ALEJANDRO PAGNI / AFP)
Agence France-Presse
postado em 01/09/2023 12:37 / atualizado em 01/09/2023 12:37

Oprimidos pela enésima crise inflacionária, muitos argentinos são tentados a usar a fórmula extrema e inexplorada do candidato presidencial ultraliberal Javier Milei para resolver os seus problemas financeiros: abandonar o peso e adotar o dólar. 

Em um país com uma inflação anual superior a 100% que destrói o poder de compra dos salários, o dólar é um refúgio.

É por isso que a mensagem de Milei atingiu o alvo. "Acabar com a inflação é possível, basta tirar a arma monetária dos políticos", disse o mais votado nas primárias de agosto, em alusão ao mecanismo de emissão de moeda para financiar o déficit do Estado, causa fundamental da desvalorização crônica do peso, segundo ele. 

Milei também propõe eliminar o Banco Central, que emite moeda, mas também monitora o sistema financeiro.

A sua ideia de abraçar o dólar centraliza o debate rumo às eleições gerais de outubro e é rejeitada pela maioria dos economistas locais, incluindo outros opositores liberais. 

"Seria bom dolarizar. Com essa desvalorização, eu vendo metade e só os grandes especuladores ganham", disse à AFP Iván Abl, que vende tecidos em Buenos Aires há 30 anos. Mas também duvida: "Com o dólar, os ‘Yankees’ que administrariam tudo, né?".

Escassez crônica de dólares 

Na Argentina, uma casa, um carro e até os eletrodomésticos são vendidos em dólares. 

Após dois episódios de hiperinflação em 1989 e 1990, o país aplicou um mecanismo de "conversibilidade" que estabeleceu uma paridade de 1-1 entre o peso e o dólar, apoiado por privatizações e por uma abertura total da economia. 

A inflação anual caiu para um dígito, mas o aumento das importações aumentou a dívida em moeda estrangeira, arruinou a indústria e causou uma grave recessão. A "conversibilidade" terminou tragicamente em 2001, com um protesto social massivo cuja repressão deixou cerca de 40 mortos. Depois, o país declarou-se inadimplente.

"A economia bimonetária une todas as crises: a escassez de dólares, a corrida cambial, as desvalorizações e as inflações. Estão todas unidas histórica e histericamente", definiu a então presidente peronista Cristina Kirchner, em 2017.

"Só 10 bilhões de dólares" 

"A dolarização nunca foi tão barata, custa só 10 bilhões de dólares (49,2 bilhões de reais na cotação atual)", afirma Milei, que argumenta que este mecanismo – também aplicado por Equador e El Salvador – levará tempo para ser implementado. 

O economista de 52 anos, que se apresenta como um especialista em teoria monetária, percorre os veículos da imprensa explicando o seu projeto de salvação econômica. Retirar o peso de circulação utilizando ativos do banco central e substituí-lo pelo dólar é o primeiro passo.

"De onde vão tirar os dólares para dolarizar?", pergunta o seu rival pró-governo e ministro da Economia, Sergio Massa, em um contexto de erosão permanente das reservas internacionais da Argentina. 

O banco central (BCRA) dispõe de instrumentos suficientes para fazer a transição, argumenta Milei. 

O economista independente Juan Manuel Telechea disse à AFP que a troca de pesos, em 2022, exigiu cerca de 55,3 bilhões de dólares (288 bilhões de reais na cotação da época).

"Não bastaria substituir apenas a base monetária (ndr, o dinheiro circulante), mas existe um estoque de pesos que, embora não estejam em circulação, servem de apoio aos depósitos bancários em moeda nacional" e que são mantidos em instrumentos da dívida do BCRA, explica o Centro de Economia Política Argentina (CEPA) em um site que levanta questões sobre a viabilidade da dolarização. 

Os apoiadores de Milei retrucam. 

"Se vamos dolarizar ou não é uma discussão irrelevante porque já foi dolarizado", argumenta à rádio CNN Emilio Ocampo, economista que inspirou Milei para sua proposta e hoje é assessor do candidato, referindo-se à predileção dos argentinos pelo dólar.

O próprio banco central estima em 244 bilhões de dólares (1,2 trilhão de reais na cotação atual) o volume da moeda americana que os argentinos acumulam fora do circuito local. 

"É impraticável", disse à AFP Nicolás Ferreyra, funcionário de uma rede de eletrodomésticos. "Fizemos as contas com os vendedores e eles nos disseram que vamos ganhar 20 ou 30 dólares por mês", cerca de 98 a 147 reais. 

Ao substituir o peso pelo dólar a um preço de mercado, superior ao do dólar oficial controlado pelo governo, a proposta de Milei implicaria, por matemática simples, na redução do salário medido em moeda estrangeira. A divisão poderia ser de quase um décimo, alerta o CEPA.

Questão de confiança 

O economista argentino Ivan Werning, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), coautor do estudo "Crônica de uma dolarização anunciada", argumentou acidamente que "dolarizar com escassez de dólares é uma droga". 

Em vez disso, argumenta Werning, "o país deve resolver principalmente o seu problema fiscal crônico e não perder a capacidade de ter uma moeda que lhe permita reagir a um choque externo". 

"Dolarizar é uma loucura. Há outras soluções", insiste Nicolás Ferreyra na loja de eletrodomésticos. "Mas para que nós, os argentinos, possamos confiar novamente no peso... medidas devem ser tomadas".

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