Militarismo

Forças Armadas procuram 'saída honrosa' após escândalos de Bolsonaro, avalia historiador

João Roberto Martins Filho diz que 'generais perderam a aura' e procuram saída para situação que eles mesmo criaram ao apostar em Bolsonaro. 'Eles acharam que poderiam mudar o Bolsonaro e ficar no confortável segundo plano. E hoje sabemos que não foi isso que aconteceu'

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Bolsonaro ao lado dos generais Luis Carlos Gomes Mattos e Mauro Cesar Lourena Cid, pai de Mauro Cid

A forma como membros das Forças Armadas estão envolvidos nos recentes escândalos ligados ao ex-presidente Jair Bolsonaro são parte de uma série de "vexames" aos quais Bolsonaro submeteu os militares, diz o pesquisador João Roberto Martins Filho, professor da Universidade Federal de São Carlos, coordenador do arquivo de Política Militar Ana Lagôa e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa.

Em entrevista à BBC News Brasil, o autor do livro O Brasil e a Guerra das Malvinas: Entre Dois Fogos (Alameda) analisa como as recentes acusações contra militares que atuaram ao lado de Bolsonaro no governo e contra o próprio ex-presidente abalam a "aura" dos militares.

São casos como o que envolve o general Mauro Lourena Cid e seu filho, tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro: os dois são acusados de ter participação em um esquema para vender no exterior joias que foram dadas como presente a Bolsonaro enquanto ocupava a Presidência.

Ou ainda o caso do "hacker da Vaza Jato", Walter Delgatti, que disse à CPI dos Atos Golpistas ter sido orientado pelo próprio Bolsonaro a tentar violar uma urna eletrônica para "testar a segurança", posteriormente sendo encaminhado ao Ministério da Defesa, onde foi recebido para conversas.

Todos os acusados negam ter cometido qualquer ato ilegal.

Segundo Martins Filho, foi balançada a ideia de que "militares são diferentes de políticos" e que eles "têm uma formação que os torna mais capazes de resolver os problemas do Brasil".

Leia abaixo trechos selecionados da entrevista, em que Martins Filho falou também sobre a estratégia de Lula para lidar com os militares, a atuação do STF e da Polícia Federal e sobre o caminho que as Forças Armadas podem seguir agora.

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Mauro Cid é acusado de cometer crime envolvendo venda de joias

BBC News Brasil - O senhor escreveu no ano passado que Bolsonaro era uma aposta dos militares mas que ele não se comportou exatamente como eles esperavam. Pode explicar essa ideia?

João Roberto Martins Filho - Já em 2019 eu dei uma entrevista dizendo que os militares estavam passando um vexame, que Bolsonaro submete os militares a um vexame atrás do outro. E é a mesma posição que eu mantenho até hoje.

Eu ouvi uma entrevista do general Santos Cruz, que se envolveu diretamente com a campanha do Bolsonaro. Ele chegou a gravar inclusive uma entrevista onde ele dizia que o (então candidato Fernando) Haddad era o fascismo, o Haddad era o comunismo e o Haddad era a corrupção. E o Haddad não era nenhuma dessas três coisas. E seis meses depois do começo do governo Bolsonaro (o general Santos Cruz) foi demitido.

Eu também não acredito que ele foi demitido com uma espécie de combinação entre generais. Ser demitido daquele jeito... Ninguém se submeteria em nome de nada a passar pela situação que ele passou.

Depois disso vem uma sequência de episódios que culminou nesse imbróglio das joias, que envolve um general respeitado de quatro estrelas que já pertenceu ao Alto Comando do Exército (Lourena Cid).

Está errado essa coisa das Forças Armadas tomarem o partido, de começar a se referir à esquerda como o outro lado. Agora, mais errado ainda está tomar partido por Bolsonaro, personagem que eles sabiam que era completamente tresloucado. E tem dados que comprovam o que eles acharam, depois da eleição do Bolsonaro 2018, eles acharam que poderiam mudar o Bolsonaro e ficar no confortável segundo plano. E o Bolsonaro fazendo o que eles queriam. Hoje em dia acho que todo mundo sabe que não foi isso que aconteceu. Eles sentiram esse baque.

BBC News Brasil - Como isso se reflete na imagem dos militares?

Martins Filho - Quando Bolsonaro perde eleição, eles acolhem os manifestantes (pedindo um golpe militar)... Até chegar ao ponto em que o bom senso imperou em uma parte do Alto Comando do Exército, que tem que pensar no longo prazo e eles não deram o golpe que se esperava que dessem. Só que aí a coisa piorou ainda mais para eles.

Quem estava achando que os militares iriam impedir a posse do Lula ficou absolutamente revoltado que eles não fizeram isso, como se essa fosse a função das Forças Armadas. Em qualquer país do mundo não é essa função. Então, isso acaba levando ao que acaba levando à situação que nós vemos hoje.

A pesquisa Quaest mostrou uma considerável queda de popularidade das Forças Armadas. Isso já estava visível lá atrás, havia quedas pequenas. Mas tudo indica que essa queda de popularidade que nós temos agora, que dá 10% a menos de bom e 10% a mais de ruim, resumindo - é, portanto, uma diferença de 20% - tudo indica que não foi a esquerda que mudou de opinião. Foram os bolsonaristas que mudaram de opinião.

Mas por quê? Não foi porque houve as mortes ocorridas na pandemia, não foi porque houve excesso do Bolsonaro, porque o Bolsonaro xingou ministros. Foi porque os militares não impediram a posse do Lula.

BBC News Brasil - Não cumprir as expectativas dos radicais de dar um golpe afetou mais a imagem deles do que esse escândalo, por exemplo, das joias?

Martins Filho - No final do ano passado eu estava acompanhando o Twitter e eu percebi uma mudança brusca da direita começando a xingar os militares. Cada post que o Exército publicava, havia 1000 ataques. Então isso aconteceu e isso uma hora ia aparecer nas pesquisas. Como a última pesquisa havia sido feita há seis meses e não tinha aparecido ainda.

Mas é bom levar em consideração também que nos últimos dias aconteceram coisas que pesaram muito para piorar essa imagem, não sei se já chegaram a aparecer nessa pesquisa ou se ainda tem mais mais desgaste pela frente.

Evidentemente que uma delas foi a revelação do envolvimento direto do tenente-coronel Mauro Cid e do pai dele, general Cid, no imbróglio das joias.

Os militares hoje em dia estão numa situação em que é prioritário para eles e conseguir encontrar uma saída honrosa para uma situação que eles ajudaram a criar. Porque nós sabíamos perfeitamente bem quem era o Bolsonaro. Uma pessoa que tinha dado o voto dele contra a Dilma em homenagem ao coronel Ustra. Então, se tem alguém que conhecia a trajetória do Bolsonaro são os militares.

No arquivo digital do Arquivo Nacional você procura a palavra “Bolsonaro" e vão aparecer os dossiês (relatando a insubordinação de Bolsonaro no Exército e outros problemas) que foram feitos em 1987 e 1988. Durante muitos e muitos anos ele foi persona non grata nas Forças Armadas. Até que chegou uma hora que passaram a não ter nada contra ele.

BBC News Brasil - Então eles concluíram que Bolsonaro foi uma aposta errada? Porque não manifestaram mais descontentamento?

Martins Filho - Os militares vivem num mundo à parte. O ser humano tem dificuldade para reconhecer que está errado, mas eles têm mais dificuldade ainda, porque eles têm uma certa arrogância de que o Exército não erra, o general não erra. Até que eles tiveram que fazer uma opção de não dar o golpe.

Eu ouvi um cientista político de renome, que politicamente é um homem de centro, dizer o seguinte: o assustador não é que uma parte das Forças Armadas não apoiava o golpe. O assustador é pensar que uma parte apoiava e que foi por um triz que nós não tivemos um golpe de Estado.

É que não havia condições internacionais para esse golpe de Estado. Mas nós podemos afirmar que (os militares) estão numa situação muito difícil. Tanto que nesse debate na Comissão de Justiça da Câmara o professor Manuel Domingos fez uma crítica e eu nunca tinha ouvido alguém falar o que ele falou na frente de um general. Os generais perderam a aura, aquela coisa que ninguém ousava dizer nada para eles na cara.

Acho que eles não se manifestaram contra o Bolsonaro não com medo do Bolsonaro, mas porque eles não queriam fortalecer a esquerda. Qualquer coisa, menos ajudar o Lula. Por isso que demoraram tanto a manifestar diretamente insatisfação. E depois o Bolsonaro nomeou o ministro da Defesa, um bolsonarista de carteirinha que é o general Braga Netto. Não há como negar que eles se envolveram no governo.

Mas o que eu dizia em 2019 eu digo em agosto de 2023: Bolsonaro faz os militares passarem uma situação vexaminosa atrás da outra. Até hoje.

BBC News Brasil - Mas e agora, que o Bolsonaro está passando pelo pior momento, os militares vão continuar não renegando?

Martins Filho - Se você analisar a trajetória do general Santos Luz, ele demorou muito para criticar diretamente o Bolsonaro. Ele criticou, no início, o entorno do Bolsonaro, que era uma loucura completa. Mas agora ele falou que uma das canalhices que Bolsonaro fez foi demitir os comandantes das Forças Armadas durante seu governo.

Acredito que essa opinião ela é compartilhada por outros generais de quatro estrelas. Mas eles tem um problema extra que o é fato de que tem muito voto de apoio a Bolsonaro ainda no Exército. E eu não sei o que foi conversado entre os três comandantes, o ministro da Defesa e o Lula nas duas horas de reunião no sábado. Mas eu acho que eles devem ter mencionado o fato de que a corda pode esticar... eles estão falando de dar aumento, de aumentar os soldos, melhorar uma série de coisas. Eles estão conscientes de que há muita insatisfação nas camadas mais baixas das Forças Armadas, que são mais bolsonaristas.

Na questão jurídica, do general e do tenente coronel Cid, eles vão procurar dizer sempre que está sub judice. E até onde eles puderem eles não vão expulsar essas figuras do exército, porque aí é cortar demais na própria carne.

BBC News Brasil - O STF está tomando decisões em que temos a justiça civil lidando com questões militares. O quão inédito é isso? O senhor acha que isso se mantém?

Martins Filho - Algumas coisas são inéditas. Por um lado, a disposição que o Supremo tem, através do ministro Alexandre de Moraes, de fazer cumprir a lei como aqueles que atacaram os prédios públicos e também o prédio do Supremo Tribunal Federal. E eles tem antigas queixas contra o Bolsonaro, que era na época que o Bolsonaro não falava sem xingar algum ministro. Isso é imperdoável para eles.

E outro fato que é novo, que nunca aconteceu, é o papel que a Polícia Federal está cumprindo. Nunca na história brasileira a Polícia Federal investigou o Exército. E a Polícia Federal, enquanto instituição, está disposta a investigar o Exército.

Evidente que ela recebe apoio do chefe da Polícia Federal, que foi nomeado pelo presidente Lula e pelo ministro (Flávio) Dino. Mas o Lula pode sempre dizer que não é ele que está fazendo. Mas essa disposição da Polícia Federal. Eu acho que uma das questões que deve ter necessariamente aparecido na reunião de sábado entre o Lula e os chefes militares é até onde vai a polícia.

BBC News Brasil - Você acha que os militares podem escolher outra figura para representá-los da mesma maneira que eles fizeram com Bolsonaro? Fazer uma nova aposta?

Martins Filho - Nós temos que entender que Bolsonaro é uma figura rara. É muito difícil um líder carismático do peso do Lula ou do peso do Bolsonaro. Não se criam Bolsonaros. Ele representa alguma coisa profunda que o eleitorado tem.

A professora Esther Solano deu entrevista dizendo que os eleitores sentem nele uma coisa que ele efetivamente tem. Ele autenticamente não gosta de feminismo, ele autenticamente gosta de torturadores, autenticamente não gosta de democracia. Ele não está fingindo. Ele é assim. E isso gerou muitos milhões de seguidores.

BBC News Brasil - A gente viu que durante a pandemia, uma boa parte da gestão ficou a cargo dos militares. O general Pazuello foi ministro da Saúde e muitos dos cargos ali no ministério foram preenchidos por militares. O que existe de diferente nesse escândalo agora envolvendo o Cid, 8 de janeiro, as urnas, que faz com que a imagem dos militares seja afetada quando a gestão da pandemia não afetou?

Martins Filho - Logo depois que começou a pandemia, boa parte do centro político que tinha apoiado Bolsonaro passou a bater panelas contra ele e caiu a popularidade dele.

Depois, com todas as medidas emergenciais que puseram dinheiro no bolso das pessoas, começou a subir de popularidade. Mas é evidente que 700 mil mortes não foram suficientes para abalar a popularidade dele, o que é uma coisa inacreditável. Mas não podemos esquecer primeiro que ele perdeu a eleição.

BBC News Brasil - Mas e os militares em si, a imagem deles?

Martins Filho - É porque agora nós estamos no processo de decadência do Bolsonaro. Ele perde eleição, fica dois meses sem falar nada, foge para os Estados Unidos. E depois teve o episódio do dia 8 de janeiro, que chocou muita gente. Os bolsonaristas mesmo estavam sem saber o que fazer com aquilo. Foi uma coisa absolutamente inacreditável. E agora surgiram as joias.

Evidentemente que estamos numa rota de prisão do Bolsonaro, mas está sobrando para todo mundo. Me espanta até que aqueles outros quatro generais que eu mencionei, ainda não tenha sobrado nada para eles. Eu fiquei horas e horas e horas assistindo palestras do general Heleno e do Mourão. Sempre elas começavam com: "o problema do Brasil são os políticos e nós, militares, somos diferentes dos políticos. A nossa formação faz da gente mais capacitado para resolver os problemas do Brasil. A nossa formação nos faz pessoas éticas". Tudo isso foi balançado.

Quem é capaz de chegar no auditório hoje, seja qual for, de direita ou de esquerda, e dizer que os militares são altamente capacitados? Vai levar uma vaia. E não levava pouco tempo atrás.

BBC News Brasil - Como o senhor avalia a estratégia do presidente Lula para lidar com os militares?

Martins Filho - Com a nomeação do (José) Múcio (Monteiro, ministro da Defesa), ele fez uma aposta de que era necessário passar por uma fase mais difícil do governo para depois mexer com algumas coisas relacionadas a essa área de Defesa. Se foi isso ele pode ser que tenha dado um golpe de mestre. Eu também não tenho certeza se o Lula pretende mesmo fazer isso.

Eu reconheço a situação difícil em que ele está, porque ele tem tantos problemas para ser resolvidos que são importantes... Por exemplo, se o Lula conseguir estancar as queimadas na Amazônia, ele vira um herói internacional. Acontece que estão surgindo provas e mais provas contra os militares que não podem ser ignoradas. Não posso ignorar essas provas.

Quando o Estadão descobriu essa notícia de que tinha essas joias, acho que a coisa mudou de figura. Descobriram uma bomba e ninguém sabia que essa bomba ia comprometer da forma que comprometeu os militares importantes.

Porque agora nós estamos perguntando: cadê o Mourão? Cadê o Heleno? Cadê o Ramos? E cadê o Braga Netto? Que eram unha e carne com o Bolsonaro? Sumiram?

BBC News Brasil - Houve um momento em que o presidente Lula ele decidiu retirar os militares do GSI da sua segurança e depois voltou atrás. O senhor acha que ele não teve força ou que fez isso para se manter nesse meio-termo que ele vem tentando alcançar?

Martins Filho - No próprio dia 8 de janeiro, o Lula deveria ter extinguido GSI. Pode-se dizer que o Lula pretendia não ter que administrar uma crise militar logo no começo do seu governo. Mas eu acho que com os militares ou você manda ou você é comandado. Eles entendem só essa linguagem.

Ele poderia ter usado esse momento do 8 de janeiro, ele teria um apoio tremendo nacional, internacional e da imprensa. Não dá para empurrar com a barriga. No momento, as Forças Armadas estão na defensiva. Mas se elas se recuperarem... É necessário uma política de medidas corajosas para haver controle civil.

BBC News Brasil - Institucionalmente, quais instrumentos Lula teria para fazer esse controle?

Martins Filho - Lula não concorda com qualquer discussão pública da questão da Defesa. Ele deveria apoiar a convocação de uma conferência nacional de Defesa composta por dezenas de civis capazes de discutir isso. Isso seria a primeira medida.

A segunda medida é colocar os civis para discutir a revisão da Estratégia Nacional de Defesa, que está sendo discutida exclusivamente por militares.

Outra medida seria criar a carreira civil dentro do Ministério da Defesa. O ministério hoje é praticamente um ministério militar. Todas essas coisas poderiam ser feitas para avançar para uma direção democrática das Forças Armadas. Se elas não forem feitas, o problema continua.