JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

Papa diz que abusos sexuais desfiguram face da Igreja e vê mundo em trevas

Papa deve se encontrar com vítimas de religiosos pedófilos em Portugal. Ele prega uma Igreja mais aberta e plural para encarar os novos tempos, mesmo que seja preciso enfrentar "tempestades"

Lisboa — Cercado pelos principais líderes religiosos de Portugal, o Papa Francisco decidiu botar o dedo em uma ferida aberta no país e que tem sido motivo do grande afastamento de fiéis do catolicismo: os abusos sexuais contra menores. Num discurso proferido no espetacular Mosteiro dos Jerônimos, ponto obrigatório para aqueles que visitam o país europeu, o pontífice afirmou que a Igreja deve encarar todos os seus males se quiser sobreviver num mundo novo, de grandes transformações.

Para ele, o afastamento de fiéis, com frequência, é acentuado pela desilusão e a aversão que alguns nutrem face ao comportamento da Igreja, devido “ao mau testemunho e aos escândalos que desfiguram o seu rosto” e que chama a todos para uma humilde e constante purificação, “partido do grito de sofrimento das vítimas que sempre se deve acolher e escutar”.

Recentemente, a Igreja em Portugal divulgou um relatório feito por uma comissão independente, em que foram identificadas 4.815 vítimas de abusos sexuais cometidos por religiosos no país desde 1950. Praticamente, ninguém foi punido, reforçando a complacência das chefias da Igreja com a pedofilia.

Parte dessas vítimas deve se encontrar com Francisco nos próximos dias, apesar de a conversa não constar na agenda oficial do pontífice, que está em território luso para participar da Jornada Mundial da Juventude JMJ). Um grupo da sociedade civil reuniu recursos para espalhar outdoors em pontos estratégicos de Lisboa destacando os crimes sexuais cometidos por religiosos. Um deles fica em frente a um dos palcos utilizados para os eventos que devem reunir mais de 1 milhão de peregrinos até domingo (06/08).

Voz às mulheres e aos leigos

Cheio de improvisos, o discurso do Papa mirou a necessidade de renovação da Igreja. “Somos chamados a lançar de novo as redes e a abraçar o mundo com a esperança do Evangelho. Não é o momento para desistir de atracar o barco à margem nem de olhar para trás”, afirmou.

“Não devemos escapar deste tempo só porque nos mete medo para nos refugiarmos em formas e estilos do passado. Não”, acrescentou. Esse novo caminho da Igreja, na opinião de Francisco, significará fazer opções, entre elas, “sair da margem do imobilismo, afastar-se da tristeza melosa e do cinismo irônico que nos assaltam à vista das dificuldades”.

Aos 86 e se locomovendo por meio de cadeira de rodas — ele fez uma cirurgia há dois meses —, o pontífice enfatizou que não há mais tempo para “o derrotismo à fé”. Portanto, a hora é de sair do proselitismo, pois só palavras não bastam, para entrar no campo das ações, “sem ideologias nem mundanismo”. Segundo ele, a Igreja foi chamada a mergulhar “nos tempos em que vivemos”, com coragem, para se reencontrar com os fiéis, mesmo que, para isso, tenha de correr riscos de algumas tempestades.

“Como os jovens que aqui vem de todo o mundo para desafiar as ondas gigantes de Nazaré, façamo-nos ao largo também nós sem medo”, frisou.

Francisco destacou que o Sínodo dos Bispos, com a primeira assembleia marcada para outubro próximo, será um passo importante para a nova Igreja e seu discurso mais plural. Seguindo sua agenda de reformas da estrutura fincada no Vaticano, ele decidiu que as mulheres terão direito a votos nas decisões da Igreja.

Foram cinco as irmãs religiosas escolhidas. Também participarão do encontro 70 leigos, sendo que pelo menos a metade será de mulheres — todos com direito a votos. “Na barca da Igreja, deve haver lugar para todos. Temos de envolver os leigos num momento em que os sacerdotes são cada vez menos. Se não houver diálogo, corresponsabilidade e participação, a Igreja envelhece”, assinalou.

Tempos de incertezas

O Papa reforçou que não faltam trevas na sociedade atual. “Prova-se a sensação de que tenha diminuído o entusiasmo, a coragem de sonhar, a força para enfrentar os desafios, a confiança no futuro. Vamos navegando nas incertezas, na precariedade econômica, na pobreza de amizade social, na falta de esperança”, destacou.

Recorrendo a analogias, o pontífice afirmou que é “preciso pescar as pessoas, tirá-las para fora da água, salvá-las do mal que ameaça afogá-las e ressuscitá-las de todas as formas da morte”. Para ele, é preciso sair do abismo para a luz, o que significa acabar com as situações de precariedade e pobreza, que crescem, sobretudo, entre os jovens.

Tudo isso, reconheceu Francisco, passa por uma Igreja mais inclusiva. Ele tem feitos acenos, por exemplo, para a comunidade LGBTQIA+, que se vê distante do catolicismo. “Somos pedras vivas, usadas para a construção de um edifício espiritual”, assinalou.

Mulher trans, a maranhense Adani Robson, 27 anos, que está em Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude, acredita que Francisco tem conseguido, com seu discurso sobre representatividade, romper barreiras na Igreja. “Vejo valor nas palavras dele, mas é preciso sair das promessas para as ações efetivas”, ressaltou.

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