Filho de Ustad Salim Sarmast — um renomado músico, compositor e maestro do Afeganistão, Ahmad Naser Sarmast, 61 anos, cresceu em meio à sonoridade afegã e ao amor pela cultura de seu país. Em 2010, nove anos depois de o Talibã ser destituído pelas forças dos Estados Unidos, em vingança pelos atentados de 11 de setembro de 2001, Ahmad fundou o Instituto Nacional de Música do Afeganistão. Em 2018, chegou a ter 250 estudantes — um terço dos quais eram mulheres. No ano seguinte, levou sua Orquestra Zohra, formada apenas por integrantes do sexo feminino, a um tour pela Europa. O etnomusicólogo sofreu na pela o horror do fanatismo religioso islâmico. Em 11 de dezembro de 2014, sobreviveu a um atentado suicida no Centro de Educação Francês no Afeganistão, após ser acusado pela milícia fundamentalista islâmica Talibã de corromper a juventude afegã. A explosão fez com que ele perdesse a consciência, perfurou-lhe os dois tímpanos e deixou-lhe totalmente surdo. Depois, médicos australianos removeram 11 pedaços de estilhaços de sua nuca, Sarmast recuperou 95% da audição de um dos ouvidos e entre 65% e 70% de outro. Desde dezembro de 2021, ele está exilado em Portugal, onde ajuda alunos e comanda programas culturais. Em entrevista ao Correio, por telefone, ele condenou a queima de instrumentos musicais por parte do Talibã, em Herat, mas lembrou que os extremistas sempre proibiram a música no país. "O Talibã tem medo do poder da música", declarou. Por meio do WhatsApp, a reportagem tentou contato com Zabihullah Mujahid, porta-voz do Talibã, mas não tinha obtido a resposta. Leia a entrevista com Ahmad Naser Sarmast:
Na condição de alguém que lutou pelo ensino musical e pela cultura do Afeganistão, o que o senhor sentiu ao ver a imagem dos instrumentos queimados pelo Talibã?
Fiquei frustrado e de coração partido ao ver a queima dos instrumentos musicais na cidade de Herat. Mas isso era algo que eu esperava. Desde o dia em que os talibãs retornaram ao poder no Afeganistão, eles têm se envolvido na destruição de instrumentos musicais. Também capturaram músicos em diferentes distritos e os acusaram de criminosos apenas por tocarem música, por levarem uma pequena felicidade ao povo afegão. Apesar de decepcionante, isso era algo bastante esperado. É exatamente o que o Talibã fez entre 1996 e 2001. Mais uma vez, eles têm destruído e queimado instrumentos musicais, e punido músicos desde o dia em que ascenderam ao poder. Assim que retornaram ao Afeganistão, os talibãs começaram a proibir a música e as atividades musicais.
O que está por trás dessa queima de instrumentos musicais? Por que o Talibã faz isso?
O Talibã não tem respostas para essas barbáries. Eles tentam justificar isso com os pretextos islâmicos e promover a ideia de que a música é algo ruim no islã. O que não é verdade. Eu desafio todos os talibãs a me mostrarem onde a palavra "música" está no Corão, que é uma espécie de guia para a mentalidade dos muçulmanos. Se o Corão não proíbe a música, por que o Talibã está proibindo a música? Os talibãs estão acima do Corão? É um erro e uma interpretação ruim do islã sagrado e do ensinamento do Corão. Tudo acontece no Afeganistão, onde vemos a liberdade cultural, a música e os direitos das mulheres intrinsecamente associados à ideologia, à mentalidade e às atitudes do Talibã. Eles tentam impor ou promover uma ideologia do islã, ao disseminar sua própria ideologia.
Como o senhor compara o primeiro regime do Talibã (1996-2001) e o atual, em termos de repressão cultural?
Não se trata apenas da queima de instrumentos musicais, que o povo testemunhou durante o primeiro regime do Talibã e vê isso novamente ocorrer... Tudo o que o Talibã faz hoje no Afeganistão remonta ao primeiro reino do poder. A música foi proibida durante o primeiro governo do Talibã, e está proibida novamente. As pessoas não têm permissão para escutar música, para aprender música. Músicos estão impedidos de compor. A destruição de instrumentos musicais aconteceu durante o primeiro regime do Talibã e está acontecendo novamente. Prevenir as mulheres de se educarem, de passearem, de apoiarem a si mesmas e de participarem da sociedade... O Talibã fez tudo isso durante o primeiro regime, e está fazendo novamente. O cerceamento da liberdade de expressão é outro exemplo. Nada é novo no que diz respeito ao comportamento do Talibã. Tudo é repetição, em termos do comportamento, das atitudes e do modo de vida do Talibã.
Por que a música é considerada ruim pelo Talibã?
Como abordei, o Talibã não apenas considera a música ruim, como também uma prática não islâmica e que corrompe a moral da nação. Isso é baseado em uma interpretação estreita do ensino sagrado do islã. É algo intimamente associado à ideologia do Talibã, mas creio fortemente que o Talibã tem medo do poder da música. Da capacidade da música em iluminar o povo afegão. Os talibãs temem que os músicos possam usar o poder da música para disseminar a ideia de liberdade e para convidar o povo a resistir e a lutar contra o Talibã. Eles temem o poder da música e tentam justificar suas ações sob o pretexto islâmico. O que está acontecendo em Herat ocorre em todo o Afeganistão. Não se trata de um ato isolado. O Talibã se envolve na destruição de instrumentos em outras cidades, em outras províncias, inclusive na capital, Cabul.
O senhor vê um genocídio cultural em seu país natal?
Silenciar uma nação inteira; negar direitos de liberade artística, musicais e culturais; proibir os direitos à educação; e apagar as mulheres da sociedade nada mais é do que um genocídio cultural.
Como a comunidade internacional deve responder a essas ações do Talibã?
Tenho apelado à comunidade internacional, desde a proibição da música, por parte do Talibã, em 2001, e de seu retorno ao poder, para que se coloque ao lado do povo afegão. Por favor, unam-se e condenem a proibição da música no Afeganistão. Por favor, exijam do Talibã a prática constante da restauração da música no país e que suspenda a proibição. Também peço que a comunidade internacional coloque esses tópicos como condições em todas as negociações com o Talibã.