Amarrado a uma pequena lancha e sendo rebocado em nossa direção estava o primeiro dos nove barcos de migrantes que encontraríamos durante as 24 horas de patrulha que acompanhamos com a guarda costeira da Tunísia.
Mais de 180 pessoas foram resgatadas, todas usando boias de borracha, mas sem coletes salva-vidas, naquela que é considerada hoje a mais utilizada rota de migrantes em direção à Europa.
Meia hora após partirmos da cidade de Sfax, no litoral da Tunísia, e embarcarmos no barco de patrulha da guarda costeira nacional, o radar interceptou o seu primeiro sinal.
Trabalhando em conjunto com duas lanchas, essas embarcações menores e mais ágeis foram mobilizadas primeiro para encontrar o barco migrante.
Uma vez localizado, o capitão recebeu ordem para desligar o motor e ser rebocado de volta ao navio patrulha maior, onde seis guardas costeiras tunisianos estavam prontos para ajudar.
Sfax, que fica a menos de 200 km da ilha italiana de Lampedusa, no Mediterrâneo, é há muito tempo um importante centro de passagem para pessoas da África Subsaariana que viajam para a Europa sem documento de imigração. Ali opera uma rede de contrabandistas que lucra com esses migrantes.
Antes, muitos migrantes costumavam ir por via terrestre até a Líbia e, de lá, embarcavam num barco para a Grécia.
Mas em 2022, depois de as autoridades líbias terem deportado milhares de migrantes e intensificado as patrulhas ao longo da costa, a rota mais usada pelos migrantes em direção à Europa mudou para a Tunísia.
Em julho, a Comissão Europeia ofereceu contribuir com 115 milhões de dólares (R$ 562 milhões) para os esforços da Tunísia para intensificar os controles fronteiriços, operações de busca e salvamento e iniciativas para combater o contrabando.
O montante é parte de um pacote maior oferecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). A Tunísia ainda não concordou com todos os termos de como o dinheiro deverá ser usado.
A Organização das Nações Unidas (ONU) informou que, apenas nos primeiros seis primeiros meses de 2023, 54.049 pessoas foram detidas pela guarda costeira italiana ou tunisiana. Esse total é quase o dobro de pessoas que tentaram a travessia durante todo o ano de 2022.
Também foi um início de um ano excepcionalmente perigoso, com a perda de mais de 2 mil vidas, segundo a ONU.
A guarda costeira foi recebida com uma onda de ódio quando os 46 passageiros começaram a desembarcar do barco de migrantes que tinha sido rebocado.
“Deixe-me ir para a Itália”, gritou um homem. “Eu apenas vou recomeçar a vida”, gritou outro.
Todos vindos da Costa do Marfim e da Guiné, eles nos contaram que era a terceira e até a quarta tentativa de cruzar esse trecho de mar.
Embora tivéssemos permissão para testemunhar tudo o que acontecia durante a operação, a tripulação a bordo foi orientada a não responder a nenhuma de nossas perguntas. Em vez disso, o porta-voz deles, Hossam El-Din El-Jababli, falou conosco assim que voltamos ao porto.
"Há aqueles que ameaçam se atirar ao mar. Até derramar gasolina sobre si próprios e atear fogo", disse El-Jababli.
Após liberar todos os passageiros de volta ao solo tunisiano, o radar logo detecta outro barco. E as duas lanchas são enviadas para investigar.
Quando o segundo barco de ferro improvisado do dia parou ao nosso lado, todas as 20 pessoas a bordo começaram a implorar por comida e água. Eles nos contam que estão à deriva há mais de 12 horas.
Os passageiros, com origem no Sudão, Iémen, Líbia e Síria, descrevem ter fugido de zonas de guerra antes de chegar à Tunísia. Diferente do primeiro barco, este grupo parece profundamente traumatizado e exausto.
Ao retornar à costa, o capitão deles é preso pelas autoridades tunisianas. Acusado de tráfico de seres humanos, ele poderá enfrentar uma longa pena de prisão se for considerado culpado.
Quanto ao resto dos passageiros, depois de terem os seus dados verificados pelas autoridades, estão livres para partir – e provavelmente tentar novamente.
Os preços dos contrabandistas por um lugar no barco variam enormemente, dependendo da nacionalidade do migrante, da qualidade do navio e da época do ano.
Durante os últimos meses de verão, os preços relatados em Sfax variaram de 1.200 dinares tunisianos (R$ 1.900) a 6.500 dinares tunisianos (R$ 10,3 mil). Aqueles que só podem pagar o preço mais baixo encaram as embarcações mais instáveis.
Mas, com cada intercepção da guarda costeira e cada tentativa falhada, muitos migrantes caem numa espiral de dívidas. Eles se comprometem a tentar mais uma vez, a fazer mais um empréstimo. Muitas vezes, a tentativa falha novamente e eles afundam ainda mais na pobreza.
De volta para o canal, uma dúzia de peças de roupas e sapatos foram vistos flutuando na água. Até a tripulação ficou em silêncio enquanto passávamos.
Em entrevista à BBC, o diretor de saúde da cidade, Hatem Al-Sharif, disse que mais de 700 pessoas não identificadas, incluindo crianças pequenas, foram enterradas em sepulturas não identificadas nos arredores de Sfax desde o início de 2023.
Alguns culpam os contrabandistas tunisianos que, ao longo deste trecho da costa, são conhecidos por utilizar barcos de metal desgastados e inadequados.
Vimos dezenas destes navios, empilhados depois de terem sido apreendidos durante uma operação das autoridades tunisianas.
Os pescadores locais também disseram que eram particularmente cautelosos com estes barcos, uma vez que são mais propensos a afundar e costumam enroscar nas redes deles. Eles também descrevem com muita tristeza o sentimento de encontrarem um corpo, principalmente quando é uma criança.
“Já vi muitos cadáveres. Não quero que os migrantes continuem fazendo esta viagem. Nosso litoral virou um cemitério", diz o pescador Al-Jilani Kamel.
Na hora seguinte, observamos a tripulação trabalhar incansavelmente, interceptando mais cinco barcos de migrantes em sequência.
Então, quando o turno deles estava chegando ao fim, houve uma chamada final. Desta vez, tratava-se de um barco cheio de compatriotas.
Os tunisianos representam menos de 15% dos que tentam atravessar do país para a Europa. Mas, como vimos, a angústia deles não era menos intensa.
Ao encostarmos no navio, um homem tunisiano levantou-se e começou a ameaçar atirar a sua filha ao mar — motivo pelo qual foi preso mais tarde.
Outro gritou que esta era sua quarta tentativa. “É como se eu já estivesse morto”, gritou ele.
Quando desembarcamos pela última vez e começamos a nos afastar do porto, dezenas de migrantes caminhavam ao longo da estrada depois de serem libertados pela guarda costeira.
“Provavelmente passaremos a noite aqui nestes olivais”, disse Abubakr, um migrante vindo da Costa do Marfim.
“E então tentaremos novamente”, disse outro jovem.
Questionado se alguma vez tiveram medo de morrer ao tentar atravessar, um migrante do Sudão, Adel Adbullah, disse: "Fugi da guerra. Não creio que verei nada pior no mar do que já vi. Não tenho nada a perder."
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