Foi o sétimo golpe de Estado a atingir a África desde agosto de 2020 e o segundo em apenas 32 dias. Com seis décadas de democracia, desde o fim da colonização francesa, o Gabão — país de 2,3 milhões de habitantes — viu um governo de 14 anos e um regime dinástico de meio século ruir em poucas horas. "Trago ao conhecimento da comunidade nacional e internacional que (o presidente) Ali Bongo Ondimba está sendo mantido em prisão domiciliar, acompanhado da família e de médicos", afirmou um porta-voz da junta militar golpista, cercado de 11 soldados e oficiais, durante pronunciamento na televisão estatal.
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"Em nome do povo do Gabão e como garantidores das instituições, decidimos defender a paz colocando fim ao atual regime. Para isso, as eleições gerais de 26 de agosto estão canceladas. As fronteiras estão fechadas até nova ordem. Todas as instituições da República estão dissolvidas", acrescentou. O toque de recolher vigora em todo o país entre 18h e 6h.
O general Brice Oligui Nguema, chefe da Guarda Republicana (unidade de elite do Exército), foi nomeado como líder da transição, cuja extensão não foi revelada. Durante parte do dia, os serviços de internet na capital, Libreville, e em todo o país foram afetados, o que dificultou a comunicação. A surpreendente ruptura institucional ocorreu pouco depois do anúncio da vitória de Ondimba nas eleições.
Filho de Omar Bongo, que governou o país entre 1967 e 2009, o presidente deposto fez um apelo à comunidade internacional, em vídeo gravado em uma biblioteca. "Sou Ali Bongo Ondimba, presidente do Gabão. Envio uma mensagem a todos os amigos que nós temos, de todo o mundo, para dizer-lhes que façam barulho, pelo povo que deteve a mim e à minha família. Meu filho está em algum lugar, minha esposa está em outro lugar e eu, na residência. Nesse momento, estou sob prisão domiciliar e nada está acontecendo. Não sei o que está acontecendo. Peço a vocês que façam barulho", pediu, de forma reiterada, em inglês.
Mais tarde, os golpistas confirmaram que Noureddin Bongo Valentin, filho de Ali Bongo, foi detido por "alta traição", assim como funcionários de alto escalão do regime, conselheiros da Presidência e os dois principais líderes do influente Partido Democrático Gabonense (PDG). O primeiro-ministro, Alain Claude Bilie By Nze, estaria em fuga.
Firme condenação
A súplica do líder deposto surtiu efeito quase imediato. O secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, afirmou que "condena firmemente a tentativa de golpe em curso como um meio para resolver a crise pós-eleitoral" no país africano e sublinha "sua forte oposição a golpes militares". A Casa Branca monitora a crise com atenção. "É profundamente preocupante. Estávamos acompanhando a situação de perto e continuaremos fazendo todo o possível para apoiar a noção de ideais democráticos expressos pelo povo africano", declarou o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby.
Em nota divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores, no início da tarde, o governo brasileiro informou que "acompanha com preocupação a situação política na República Gabonesa". "O Brasil expressa seu apoio ao papel da União Africana e de outros atores regionais para a superação da atual crise e conclama à busca de uma solução pacífica e acordada", diz o comunicado, segundo o qual cerca de 80 brasileiros estão em Libreville.
Morador de Libreville, o jornalista Yves Laurent Goma escutou tiros entre 4h45 e 5h20 de ontem (0h45 e 1h20 em Brasília). "Eram disparos de submetralhadoras. Os soldados tomaram o controle do canal nacional de televisão Gabon 24, cujos estúdios ficam no subsolo do palácio presidencial. Depois, invadiram a emissora estatal Gabon 1ere", contou ao Correio. "O dia amanheceu com os militares anunciando que garantirão a paz. As pessoas saíram às ruas para cumprimentá-los. Libreville celebrou durante todo o dia. Os gaboneses saudaram um dia de liberdade, de libertação."
Goma também relatou que, quando os militares divulgaram a captura de Noureddin Bongo, houve outro momento de êxtase. "Além do filho do presidente, vários comparsas, que usufruíam do dinheiro público com impunidade, foram detidos. A população se alegrou e compreendeu que o regime de Bongo tinha chegado ao fim. Libreville foi tomada pela alegria, com buzinaço, gritos e gente ostentando a bandeira nacional."
Também em Libreville, a aposentada gabonesa Rose Ahavi, 66 anos, descreveu a "grande euforia da população". "O povo acordou com um grito de alegria, principalmente aquelas pessoas que tinham votado em Ondo Ossa Albert, o adversário de Ondimba. "Graças a Deus, o Exército controlou a situação; caso contrário, haveria uma carnificina. As eleições ocorreram em um contexto de opressão, sem internet, sem comunicação com o mundo de fora, sem observadores internacionais. As regras da lei eleitoral foram modificadas durante a campanha. Tudo tornou os resultados opacos", disse à reportagem.
Por sua vez, Michel Armand Rekongou, morador de Libreville, relatou ao Correio que Ali Bongo foi proclamado ganhador das eleições por volta das 3h (hora local), sem que as autoridades tivessem avisado a população sobre a divulgação dos resultados. "A proclamação da vitória dele foi interrompida, de modo abrupto, pelo anúncio do golpe de Estado por um grupo de militares. Imediatamente, houve vários tiroteios com armas automáticas em diferentes pontos da capital. Com o passar das horas, os golpistas se organizaram e prenderam Ali Bongo e sua família, o que levou a população a reagir com euforia e a expressar gratidão por um ato que consideramos heróico", observou.
Eu acho...
"Estamos felizes e finalmente libertos deste sistema e desta família, que confiscou o poder durante 54 anos. Foi um golpe de Estado limpo. Este 30 de agosto foi um dia lindo, de verdadeira independência para o Gabão."
Michel Armand Rekongou, 47 anos, gerente, morador de Libreville
DEMOCRACIA EM XEQUE
Confira os últimos golpes de Estado registrados na África
Níger
Em 26 de julho de 2023, os militares anunciaram que derrubaram o presidente Mohamed Bazoum. O general Abdourahamane Tiani se tornou o novo homem forte do país. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) anunciou, em 10 de agosto, a intenção de enviar uma força regional para "restabelecer a ordem constitucional", enquanto continua privilegiando a via diplomática. Os militares propõem um período de transição de "três anos" até devolver o poder aos civis.
Burkina Faso
O país registrou dois golpes em oito meses. Em 24 de janeiro de 2022, o presidente Roch Marc Christian Kaboré foi expulso do poder pelos militares. O tenente coronel Paul Henri Sandaogo Damiba tornou-se presidente em fevereiro. Em setembro, Damiba foi destituído pelos militares e o capitão Ibrahim Traoré foi nomeado presidente de transição até as eleições presidenciais, previstas para julho de 2024.
Sudão
Em 25 de outubro de 2021, os militares liderados pelo general Abdel Fatah al Burhan expulsaram os líderes civis de transição, que supostamente lideravam o país para a democracia depois de 30 anos de ditadura de Omar al Bashir, destituído em 2019. Desde 15 de abril de 2023, uma guerra provocada por uma luta de poder entre o general Burhan e seu ex-número dois Mohamed Hamdan Daglo causou ao menos 5 mil mortos no país.
Guiné
Em 5 de setembro de 2021, o presidente Alpha Condé foi deposto por um golpe militar. Em 1º de outubro, o coronel Mamady Doumbouya tornou-se presidente. Os militares prometeram devolver o poder aos civis eleitos até o fim de 2024.
Mali
Também sofreu dois golpes em nove meses. Em 18 de agosto de 2020, o presidente Ibrahim Boubacar Keita foi deposto por militares e, em outubro, se formou um governo de transição. Mas, em 24 de maio de 2021, os militares prenderam o presidente e o primeiro-ministro. Em junho, o coronel Assimi Goita tomou posse como presidente de transição. A junta se comprometeu a devolver o poder aos civis depois das eleições, previstas para fevereiro de 2024.
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