Aos 8 anos de idade, a inglesa Kitty Lawrence já entende o que significa ver a seleção feminina de seu país na final de uma Copa do Mundo.
“Estou impressionada,” disse à BBC News Brasil. “Na Inglaterra, algumas mulheres não conseguem perseguir seus sonhos, mas agora podemos jogar futebol. Fico muito orgulhosa e satisfeita.”
Vestida com a camisa da seleção feminina, Kitty assistiu à decisão contra a Espanha com a família em um telão montado em uma praça de Londres. Mesmo com a derrota por 1 a 0, a avó, Pauline Lawrence, celebrou.
“Eu jogava futebol quando criança, mas nunca pude progredir no esporte,” disse.
Não foi por falta de vontade. Até poucas décadas atrás, mulheres nem podiam jogar profissionalmente.
Agora, as Leoas – apelido da seleção feminina – são adoradas pelos ingleses, inspiração para meninas, sinônimo de sucesso.
Apesar da derrota na final, a boa campanha da seleção inglesa inspirou o país e deu novo impulso ao futebol feminino inglês.
Para chegar até aqui, no entanto, especialistas apontam que foi fundamental mais investimento no campeonato doméstico e aumento na qualidade e na quantidade da cobertura jornalística sobre o futebol feminino. A seguir, entenda essa trajetória.
De proibição a potência mundial
Em 1921, havia cerca de 150 equipes de futebol feminino no país. O futuro era promissor. Mas a Federação de Futebol da Inglaterra decidiu proibir a prática em campos profissionais e clubes filiados à entidade, por considerar que o esporte “não era adequado para mulheres.”
O banimento só foi suspenso em 1970, e houve uma espera de mais de 40 anos até o momento considerado o ponto de virada — e que tem relação com o Brasil.
Nos Jogos Olímpicos de Londres de 2012, a Grã-Bretanha jogou contra a seleção brasileira diante de 70 mil pessoas no estádio de Wembley. Com a arquibancada lotada e a receptividade do público, o potencial do futebol feminino ficou claro.
A Women’s Super League (WSL), novo formato da primeira divisão inglesa feminina, estava começando. E, nesse contexto, vieram patrocínios e profissionalização.
Além disso, para a professora Stacey Pope, especialista em mulheres, esporte e desigualdade da Universidade de Durham, na Inglaterra, e autora do livro The Feminization of Sports Fandom (A Feminilização de Torcidas Esportivas, em tradução livre), o aumento do interesse da imprensa a partir da Copa do Mundo de 2015 foi fundamental.
“Antes de 2015, não havia praticamente nenhuma cobertura na mídia tradicional,” disse à BBC News Brasil.
“Foi a primeira vez que todas as partidas da Inglaterra foram transmitidas ao vivo pela BBC, uma televisão pública. Foi vital porque aumentou a visibilidade do esporte feminino. É muito difícil que fãs sigam e se conectem com uma Copa do Mundo do início ao fim sem a cobertura na televisão.”
Pope é uma das autoras de um estudo publicado no Sociology of Sports Journal que comparou a cobertura de futebol feminino em cinco grandes jornais britânicos nos mundiais de 2015 e 2019.
Em 2019, houve seis vezes mais artigos publicados e o uso de palavras como “meninas” — que, segundo a pesquisa, infantilizam as jogadoras — diminuiu drasticamente.
“Não houve apenas aumento da cobertura, mas ela foi respeitosa, focando na parte técnica e nos feitos do time em vez de sexualizar as jogadoras, como já vimos com frequência no esporte feminino,” disse Pope.
“Também coincidiu com outras grandes mudanças. Por exemplo, a WSL ter se tornado totalmente profissional em 2018, e mais oportunidades para meninas e mulheres jogarem futebol. Não há dúvidas de que há um caminho longo para atingirmos total igualdade, mas as mudanças que vemos em um período curto têm sido fenomenais.”
Investimentos no campeonato doméstico refletiram na seleção nacional e foram transformados em títulos com a contratação de Sarina Wiegman.
A treinadora holandesa, campeã europeia e finalista de Copa do Mundo no comando de seu país, assumiu em 2021.
No ano seguinte, a Inglaterra conquistou a Eurocopa ao vencer a Alemanha em Wembley diante de mais de 87 mil pessoas.
A WSL se tornou uma das ligas mais fortes do mundo, reunindo craques como a australiana Sam Kerr e a inglesa Lauren James, revelada pelo Arsenal na adolescência. Ambas jogam no Chelsea, atual campeão.
Mas havia espaço para crescer. Com o sucesso da Euro, a Federação inglesa traçou como metas aumentar audiências na televisão e torcida nos estádios. Em setembro de 2022, Arsenal x Tottenham reuniu 47.367 espectadores, recorde de público no campeonato. E outras marcas foram batidas nos clubes ao longo dos meses.
Em abril deste ano, na reta final de preparação para o mundial, mais de 83 mil espectadores viram a Inglaterra vencer o Brasil em Londres na Finalissima, confronto entre a campeã da Copa América e da Eurocopa.
Wiegman transformou a seleção inglesa em um time quase imbatível — incluindo a decisão da Copa do Mundo, perdeu apenas duas em 39 partidas.
O retrospecto recente é melhor do que o dos homens ingleses. A seleção masculina foi derrotada na final da Eurocopa em 2021 e eliminada nas quartas de final na Copa do Mundo no ano passado. O único título mundial foi em 1966.
Desafios
Ao analisar o futuro do futebol feminino na Inglaterra, Pope aponta desafios.
“Muitos torcedores se mostram frustrados em como a cobertura da mídia é pontual, somente em um grande evento como a Copa do Mundo. Quando termina, a cobertura do futebol feminino despenca,” disse.
“Além disso, há desigualdades de forma global. Jogadoras profissionais continuam a atuar em um ambiente de trabalho mais precário, com menores salários, contratos mais curtos e menos oportunidades. Ainda se espera que optem pela maternidade ou carreira. Um dos meus estudos mostrou que ainda existe hostilidade com a participação de mulheres no futebol. O esporte é associado à masculinidade, e sexismo e misoginia estão presentes.”
Depois da Eurocopa, a seleção feminina escreveu uma carta aberta ao primeiro-ministro britânico Rishi Sunak — candidato à época — pedindo que meninas e meninos tenham acesso igual à prática do futebol nas escolas.
Também em 2022, o governo britânico encomendou um estudo independente para analisar o nível do futebol feminino no país. Publicado no mês passado, trouxe uma série de recomendações, como o aumento da profissionalização e a criação de um piso salarial para atletas.
Segundo Pope, a experiência britânica poderia ajudar o Brasil, eliminado na fase de grupos da Copa e em busca de um inédito título mundial. Há um ponto fundamental: difundir o futebol feminino no país.
“Todos devem ter acesso igual ao esporte. Há muito a aprender com países como a Inglaterra e os Estados Unidos em termos da infraestrutura que foi desenvolvida para ajudar no crescimento do esporte de elite,” disse.
Vinte das 23 jogadoras da seleção inglesa atuam no campeonato nacional. A temporada da WSL começa em outubro. Será a continuação de um ciclo de crescimento de mais de dez anos, sem esquecer do que precisa melhorar.
Kitty e outras crianças certamente têm em quem se inspirar.
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