Atenção: esta reportagem contém detalhes que podem ser sensíveis para alguns leitores.
“É tudo coisa da sua cabeça.”
Helene Cederroth perdeu a conta de quantas vezes ouviu esta frase dos médicos. Mas ela sabia, desde o nascimento do seu segundo filho, Wilhelm, que algo não estava certo com ele.
“Ele parecia um bebê perfeito, com bochechas vermelhas”, relembra ela. “Todos no hospital achavam que ele estava em perfeita saúde.”
Wilhelm nasceu em 1983. Quando completou um ano de idade, ele já havia desenvolvido epilepsia e problemas crônicos no estômago. E, com três anos, ele teve uma inflamação das vias aéreas superiores, conhecida como falso-crupe, e os médicos informaram à família que ele sofria de asma.
Cederroth não ficou nada satisfeita. Ela queria saber mais. Quais eram especificamente as causas de todas essas condições médicas? Elas tinham relação entre si? Havia uma cura para ele?
Ela procurava o que se chama, no mundo da medicina, de diagnóstico de causas – um diagnóstico unificado que pudesse explicar todos os problemas de saúde de Wilhelm. Para Cederroth, esta seria a única forma de compreender melhor o curso da doença do seu filho e suas chances de recuperação.
Mas, infelizmente, a experiência de Wilhelm foi apenas o começo de uma árdua jornada pelo mundo das doenças não diagnosticadas.
Condições misteriosas
Doenças não diagnosticadas são condições médicas que não têm causa conhecida, mesmo depois de extensas avaliações.
Elas são relativamente raras, mas seu conjunto afeta milhões de pessoas. Em todo o mundo, existem até 350 milhões de portadores de condições “raras” ou “não diagnosticadas”.
Uma condição é definida como “rara” quando afeta menos de uma a cada 2 mil pessoas na União Europeia ou menos de 200 mil pessoas nos Estados Unidos.
E essas doenças afetam desproporcionalmente as crianças com menos de cinco anos de idade. Elas compõem 50% dos casos – e um relatório indica que 30% delas morrem antes de completarem cinco anos.
Somente no Reino Unido, 6 mil crianças nascem todos os anos com “síndromes sem nome” (SWAN, na sigla em inglês).
Lidar com os problemas médicos de uma criança, por si só, já é muito difícil. Mas a ausência de um diagnóstico gera uma infinidade de outros obstáculos para os médicos e as famílias.
A enfermeira clínica Anna Jewitt, especialista em crianças SWAN do Hospital Great Ormond Street, em Londres, conhece bem este problema. Sem conseguir explicações sobre a saúde dos seus filhos, os pais se sentem sozinhos e perdidos.
Às vezes, apesar das preocupações, os pais ouvem dos médicos que a criança é “normal”. Mas esta “costuma ser a pior palavra para o pai ou a mãe de uma criança com uma condição não diagnosticada”, segundo Jewitt.
Uma dificuldade é que a maioria das crianças que apresentam um sintoma não tem uma doença séria. Geralmente, é mais provável que seja algo menor ou temporário.
Por isso, o que a maioria dos pais precisa é ser tranquilizada de que seu filho está bem – e não de dezenas de exames de laboratório e semanas de estudos médicas.
“Se você procurar 100 pais que apresentam queixas, a maioria deles precisa ser tranquilizada de que nada está acontecendo”, afirma o pesquisador William Gahl, do Instituto Nacional do Genoma Humano em Bethesda, no Estado norte-americano de Maryland.
Mas, em alguns casos, este tiro pode sair pela culatra – e foi o que aconteceu com Wilhelm.
Os médicos tranquilizaram Helene Cederroth e seu marido Mikk de que nada de assustador estava acontecendo com a saúde da criança, exceto pela má sorte de sofrer de epilepsia, asma e falso-crupe ao mesmo tempo.
Não convencido, o casal pressionou para que fossem realizadas pesquisas médicas. E, enquanto isso, a vida prosseguia.
“Wilhelm se saía muito bem na escola e tinha muitos amigos. Ele era um menino gentil. Os professores da escola diziam que ele seria Secretário-Geral das Nações Unidas”, relembra Helene Cederroth. “Ele era divertido. Parecia um menino normal.”
E, como a maioria das crianças normais, Wilhelm e sua irmã mais velha costumavam chegar da escola com infecções e insetos irritantes. Mas, para Wilhelm, a recuperação começou a levar mais tempo do que o normal.
Sua mãe ouvia sempre a mesma resposta dos médicos: “para algumas crianças, é assim que funciona”.
Certa tarde, Wilhelm saiu para colher framboesas. Ele tinha cinco anos de idade. Quando entrou em casa, ele teve uma tosse tão forte que seus olhos ficaram ensanguentados. Seu rosto inchou e ele teve febre alta.
Os médicos nunca haviam visto um quadro de sintomas como aquele, mas também não conseguiam encontrar nada de errado.
Eles tranquilizaram Cederroth, afirmando que o que quer que estivesse causando os diversos sintomas de Wilhelm não era genético, nem hereditário. E, quando Wilhelm tinha oito anos de idade, Helene e Mikk tiveram seu terceiro filho, Hugo.
Na verdade, até 80% das condições raras e não diagnosticadas são genéticas. Mas Gahl relembra que os médicos, em sua maioria, não são geneticistas.
“Parte do problema é que os médicos querem tranquilizar os pais de que eles podem ter o segundo filho”, afirma ele, mas, “se eles não souberem qual é a causa genética, não podem definir uma estimativa sobre o percentual de recorrência.”
“Às vezes, o padrão será dizer ‘não achamos que seja genético’ – e a base desta afirmação é que não há causa genética conhecida.” Gahl ressalta que esta “não é a melhor resposta padrão” para oferecer aos pais.
Viver na incerteza
No terceiro trimestre de gravidez de Hugo, Helene Cederroth sentiu um movimento estranho – um chute errático que a fez relembrar crianças jovens que sofrem de epilepsia.
Ela nunca havia sentido aquilo antes, nem com Wilhelm, nem com a irmã mais velha. Os médicos disseram a ela que o bebê estava com soluços.
Hugo nasceu em 27 de dezembro de 1991. Com seis horas de vida, ele teve sua primeira convulsão.
Sua mãe estava certa – Hugo tinha epilepsia.
O bebê passou seus primeiros seis meses no hospital. E, para piorar o trauma da família, a equipe médica suspeitou que seu pai, Mikk, estivesse sacudindo Hugo.
“Isso está na cabeça do meu marido até hoje”, afirma Helene. “De certa forma, você tem medo de ir ao hospital.”
Cederroth lembra-se de que a equipe monitorava a forma como ela cuidava do bebê. “Foi a situação mais terrível que eu já passei”, ela conta.
O medo do julgamento é algo que Jewitt ouve em suas conversas com as muitas famílias que ela tenta tranquilizar.
Alguns pais e mães “sentem que as pessoas não acreditam neles e as mães são chamadas de superansiosas”, ela conta. “Outros que não vêm de famílias privilegiadas podem ter a impressão de que estão sendo julgados.”
A família teve momentos de esperança. Quando Hugo tinha 18 meses de idade, os médicos avisaram sua mãe que ele nunca andaria, nem se sentaria sozinho. Mas, no mesmo dia em que eles saíram do hospital e foram para casa, o bebê, determinado, apoiou-se no sofá de canto.
“Ele se virou e andou oito passos, comprovando que os médicos estavam errados”, ela conta. E, ao longo do tempo, Hugo continuou progredindo e não só andou, como chegou a correr.
Helene Cederroth então ficou grávida pela quarta vez. Era uma menina e, com ela, vinha uma nova esperança. Afinal, sua menina mais velha tinha boa saúde e os médicos informaram à mãe que os sintomas apresentados por Wilhelm e Hugo (como a epilepsia) só afetavam meninos.
A bebê Emma nasceu em 24 de janeiro de 1994. Mas, já com 30 minutos de vida, ela teve sua primeira convulsão.
‘A cruel loteria da natureza’
Nos anos que se seguiram, Emma cresceu e se tornou uma menina travessa, que adorava fazer seus pais rirem. E, como Hugo, ela adorava os animais.
Apesar das dificuldades das crianças – que incluíam autismo e apneia do sono, além da epilepsia –, a vida da família continuou da melhor forma possível, como costuma acontecer com muitas famílias com crianças que sofrem de doenças crônicas não diagnosticadas.
A busca de respostas também continuou. Mikk e Helene Cederroth se perguntavam qual seria a causa relacionada a todos os sintomas que afetavam Wilhelm, Hugo e Emma.
A família visitou especialistas do Hospital Great Ormond Street em Londres e da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore (Maryland, Estados Unidos). Os médicos não conseguiam desvendar o que estava acontecendo e descreviam a condição das crianças como a “cruel loteria da natureza”.
Mas, quando Wilhelm chegou aos 12 anos de idade, sua condição começou a piorar. Surgiu então uma nova causa de preocupação: demência infantil.
Ele esqueceu como andar de bicicleta. Ele corria sobre urtiga sem perceber o risco que corria. As lições de casa passaram a ser uma batalha.
Antes, Wilhelm brincava com Hugo e Emma como irmão mais velho, mas começou a brincar como se eles fossem colegas. E, um dia, ele não reconheceu sua avó. Helene Cederroth então percebeu que ele estava regredindo.
Wilhelm recebeu tratamento especializado na Áustria, com a permissão do comitê de ética médica do país. Este tratamento foi seguido, em 1997-98, por uma equipe de pesquisa franco-suíça que analisou se os três irmãos poderiam ter uma doença mitocondrial. Mãe e filhos realizaram sequenciamento de DNA, sem que surgissem respostas.
O resultado poderia ser diferente se a família passasse por este processo hoje. O Projeto Genoma Humano, destinado a identificar a ordem de todas as bases de DNA para obter o “modelo genético” dos seres humanos, foi lançado em 1990. Completado em 2003, o projeto ampliou radicalmente nossa compreensão sobre como são formadas as novas doenças.
O teste de exoma, que examina especificamente as regiões de codificação de proteínas do genoma (que compõem até cerca de 2% de todo o genoma), passou a ser particularmente útil, segundo Gahl. Mas, na década de 1990, o sequenciamento genômico era algo muito primitivo para ajudar Wilhelm.
Quando completou 15 anos de idade, ficou claro que ele não iria se recuperar. Ele foi levado para casa para receber cuidados paliativos, com a ajuda de uma equipe de enfermagem.
Wilhelm morreu no dia 2 de setembro de 1999, com apenas 16 anos de idade. Sua autópsia não encontrou nenhuma causa clara da sua morte.
Depois de perderem Wilhelm, seus pais Helene e Mikk enfrentaram uma série de novas dificuldades.
Sua filha mais nova, Emma, entrou em coma pela primeira vez, três semanas após o funeral de Wilhelm. Eles acreditam que ela tenha contraído um vírus na ocasião.
Emma se recuperou, mas continuou a sofrer comas intermitentes nos meses que se seguiram, até que os médicos concluíram que não havia nada que eles pudessem fazer.
Emma morreu em casa no dia 20 de dezembro de 2000, rodeada pelos seus entes queridos. Ela tinha seis anos de idade.
E, pouco menos de dois anos depois, em 8 de dezembro de 2002, a família perdeu Hugo, perto de completar 11 anos. Ele desenvolveu problemas pulmonares e complicações da sua epilepsia.
Quando a saúde de Hugo começou a falhar, seu pai pediu um favor para uma construtora local. Eles concordaram em estacionar sua escavadeira perto da janela do menino. Carregando a mochila com solução intravenosa, Mikk e Hugo saíram para dirigir a escavadeira e cavar juntos.
Da mesma forma que Emma e Wilhelm antes dele, as últimas palavras de Hugo para Helene foram “obrigado, mamãe”.
O avanço das pesquisas
Nenhuma das três crianças chegou a receber um diagnóstico de causa explicando suas condições ou identificando a relação entre elas. Se eles tivessem nascido alguns anos depois, talvez fosse possível descobrir mais a respeito.
Em 2023, milhares de crianças com sérios transtornos de desenvolvimento no Reino Unido receberam finalmente o seu diagnóstico, com um estudo que descobriu 60 novas doenças.
Nos Estados Unidos, a Rede de Doenças Não Diagnosticadas – um consórcio de 12 equipes de pesquisa e centros clínicos de todo o país – também está trabalhando para resolver esses mistérios da medicina.
Em 2018, apenas dois anos depois da sua formação, o consórcio já havia identificado 31 novas síndromes e diagnosticado 132 pacientes. Atualmente, ele já avaliou mais de 2.220 pacientes e diagnosticou com sucesso 676 deles. Ao todo, o consórcio já descreveu 53 novas condições médicas.
Mas o financiamento para este tipo de trabalho ainda é um problema. O apoio do Fundo Comum dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos para a Rede de Doenças Não Diagnosticadas está previsto para terminar este ano.
Helene Cederroth reconhece que o diagnóstico completo talvez não mantivesse a vida dos seus filhos. Mas ela acredita que teria, pelo menos, fornecido uma explicação para o que estava acontecendo.
Além disso, o diagnóstico pode “abrir portas”, mesmo que só para “coisas simples, como inscrever-se em uma organização para obter apoio”, afirma Jewitt.
Após a morte de seus filhos, Helene e Mikk Cederroth concentraram-se em levantar fundos e criaram sua própria organização, a Fundação Wilhelm. Eles estavam frustrados com a falta de trabalho conjunto entre os médicos de todo o mundo que trataram dos seus filhos.
Reconhecendo este problema e as dificuldades ainda maiores enfrentadas por famílias em países de renda média e baixa (como o acesso aos recursos), eles reuniram importantes especialistas em 2014 para um congresso mundial sobre doenças não diagnosticadas. Sua reunião anual permanece sendo realizada até hoje.
Wilhelm, Hugo e Emma morreram na época que antecede o Natal, que é um período difícil para Helene e Mikk até hoje.
Emma, particularmente, adorava as festas de final de ano. Ela sempre dizia que queria pintar a barba do Papai Noel de azul, sua cor favorita.
Nos seus últimos dias em coma, Emma recebeu a visita de um Papai Noel com barba azul. Sua mãe está certa de ter ouvido a menina fazer um som de contentamento quando sentiu sua entrada no quarto. “Ou, talvez, aquilo estivesse na nossa mente”, ela conta.
Dois anos depois, Helene e Mikk Cederroth receberam um importante geneticista que acredita que seus filhos provavelmente tivessem uma doença nova. O casal então forneceu amostras genéticas para sequenciamento completo do seu genoma.
Infelizmente, é tarde demais para ajudar Wilhelm, Hugo ou Emma. Mas ainda há tempo, segundo eles, para usar o que eles aprenderam com sua família para salvar a vida de outra criança.
*Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
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