BBC - Como você definiria Javier Milei do ponto de vista ideológico?
Cristóbal Rovira - Há uma onda bastante global da extrema direita. Começou na Europa Ocidental, onde está o caso emblemático de Jean-Marie Le Pen na França dos anos 1980, expandiu-se para o Leste Europeu e hoje vemos que começa a ganhar terreno em outros lugares: com Trump, Bolsonaro...
Milei se encaixaria no protótipo do que são essas ultradireitas.
A nível acadêmico, as definimos por dois critérios importantes. Primeiro, elas estão à direita da direita dominante e professam ideias muito mais radicais. No caso da Argentina, Milei se posiciona à direita do macrismo.
Em segundo lugar, mantêm uma relação ambivalente com o sistema democrático e por vezes professam ideias autoritárias. Isso as diferencia das direitas tradicionais, que atuam dentro das regras do jogo democrático.
O caso de Milei se encaixa muito bem nessa dupla classificação.
BBC - Quais características de estilo e quais propostas fazem com que o senhor o classifique como parte da "ultradireita"?
Rovira - Note que quando falamos de extrema direita, não estamos nos referindo tanto a estilos políticos.
Isso me parece relevante porque, no debate latino-americano, surgiu esse clichê de que ser de extrema direita é ser como Trump ou Bolsonaro: personagens muito disruptivos, com linguagem bastante vulgar, que se conectam com demandas dos cidadãos, principalmente por serem contra o "sistema".
Mas esse estilo não é necessariamente seguido pelos líderes da extrema direita na Europa ou por Kast no Chile.
Conceitualmente, a extrema direita tem muito mais a ver com as ideias que são defendidas. E é aqui que Milei se encaixa muito bem, porque ele tem ideias muito direitistas em questões morais como aborto, em termos de criminalidade e daquela ideia da "mão forte".
Em certo sentido, ele é neoliberal, contra o Estado, e com uma agenda de privatizações, o que o aproxima de Kast e Bolsonaro.
Mas Milei tem um componente libertário que o torna uma criatura um pouco incomum entre os ultradireitistas da América Latina, onde esse componente geralmente está menos presente.
Outro aspecto peculiar de Milei é que seu perfil ideológico mudou um pouco.
Hoje, ele se define como alguém contra o aborto, mas há alguns anos essa questão não o mobilizava fortemente. Então, ele tem se voltado para posições mais conservadoras moralmente, mas que não necessariamente estavam em suas origens como figura política.
BBC - Milei tem mais características libertárias ou da direita radical?
Rovira - Acho que um grupo contém o outro: ele leva a questão libertária a um paroxismo que o torna muito de extrema direita. É uma combinação de ambos os elementos. Às vezes, ele dá mais ênfase à questão libertária, outras à questão moral e outras ao crime.
Mas o pacote ideológico que ele defende, como um todo, o posiciona claramente nas ultradireitas.
E, no caso argentino, é muito importante a crítica que faz à "casta" política como um todo, onde estão a direita mais tradicional do macrismo e Patrícia Bullrich [candidata e ex-ministra da Segurança de Mauricio Macri].
BBC - Outra característica que você apontou na direita radical é a postura anti-imigração. Isso é reproduzido por Milei, ou é diferente das posições de Trump e Kast?
Rovira - Na verdade, Milei não tem isso.
Mas observe que o traço anti-imigratório geralmente não está muito presente nas ultradireitas da América Latina — por exemplo, se pensarmos em Bolsonaro. Isso está muito presente na extrema direita europeia.
Por isso, é importante ter em mente que todas essas extremas direitas têm elementos em comum, mas há características que as definem. É como uma grande família, em que há primos, alguns mais parecidos, mas nem todos idênticos.
Se todos se reunirem, eles se divertem muito, mas diferem em alguns elementos, como o traço anti-imigração.
BBC - Giancarlo Summa, um ítalo-brasileiro que estuda o ressurgimento da direita radical no projeto Multilateralismo e Direita Radical na América Latina (Mudral), apontou que Milei não reivindica abertamente a memória da ditadura militar na Argentina como Bolsonaro faz no Brasil ou Kast no Chile. Esta também não é uma diferença irrelevante...
Rovira - É verdade. E voltamos àquela metáfora de que são todos primos, mas não irmãos.
Na questão militar, pelo menos até agora, não é que Milei professe uma defesa muito irrestrita do que foi aquilo.
A gente foca na figura dele, mas vamos pensar que ele também está tentando formar um grupo político. Com sua candidata à vice-presidência, Victoria Villarruel, a relação com o mundo militar é muito mais direta.
BBC - Ou seja, o projeto político de Milei está em fase quase embrionária e caminha para a direita radical...
Rovira - Exato. E esses outros elementos ideológicos da extrema direita às vezes não vêm do líder principal como Milei, mas das pessoas que trabalham com ele para levantar um projeto que, como você disse, é muito embrionário hoje.
Lembremos que Milei tem meses de campanha pela frente, e outros elementos ideológicos podem ir sendo decantados.
BBC - Milei tem propostas como acabar com o Banco Central argentino e dolarizar a economia, ideias que não parecem se encaixar no nacionalismo clássico. Ou permitir a venda de órgãos, o que tampouco parece condizer com uma visão religiosa conservadora. Existem mais divergências em relação à direita radical de outros países?
Rovira - Cada uma dessas ultradireitas deve ser entendida em seus próprios contextos nacionais, e a Argentina tem uma peculiaridade importante: há uma crise econômica muito grande, com o problema histórico da inflação.
Como Milei é um candidato radical, me parece lógico que para enfrentar esse problema ele defenda ideias radicais, como a dolarização e a eliminação do Banco Central.
Também me parece lógico que a extrema direita do Chile não se envolva nessa questão, porque os problemas que temos são diferentes dos da Argentina.
Mas como discutimos antes, o aspecto libertário dá a Milei uma característica peculiar em comparação com outras extremas direitas que temos na América Latina.
E, às vezes, essas abordagens libertárias o colocam em xeque com a questão moral. Como podemos pensar que uma pessoa antiaborto diria que o comércio de crianças ou órgãos pode eventualmente ser permitido? Essas são as coisas que não encaixam bem.
BBC - Milei rouba votos da direita argentina tradicional ou captura votos antissistema de diferentes partes do espectro ideológico?
Rovira - Na Europa, muitos analistas argumentam que o antigo voto social-democrata sindicalista foi para a extrema direita. Isso empiricamente é bastante falso. Sabemos que os eleitores de Marine Le Pen na França, da AfD na Alemanha ou do Vox na Espanha geralmente votavam na direita tradicional, sentiram-se abandonados por ela e passaram a votar na extrema direita.
Não se sabe até que ponto esse argumento chega à América Latina.
No entanto, as evidências em diferentes países nos dizem que o voto ultradireitista latino-americano é uma combinação de diferentes tipos de eleitores: um que veio da direita convencional e virou para a extrema direita, outro que representa um voto raivoso contra o "sistema" e um terceiro tipo de eleitor que vem de um mundo de esquerda moralmente conservador e, por cansaço, acaba votando na extrema direita.
Precisamos de mais pesquisas empíricas para saber a proporção de cada tipo. Eu não ousaria dizer as porcentagens [de cada tipo de eleitor] dentro dos votos de Milei, mas pelo que vimos, acho que grande parte são votos de protesto. Temos que ver qual é a participação de votos mais puramente ideológicos.
BBC - Uma das características de políticos como Trump e Bolsonaro que você apontou é que eles parecem manter uma lealdade infalível de seus eleitores. Isso também se aplicaria a Milei, ou seria imprudente considerar o apoio que ele obteve nessas primárias como votos seguros para outubro?
Rovira - Eu não ficaria surpreso se Milei mantivesse na eleição presidencial o número significativo de votos que teve.
Agora, levemos em conta que ele mobilizou 30% dos votos com uma participação eleitoral não tão alta para o histórico das primárias na Argentina. Então, fiquemos atentos que, se aumentar a participação eleitoral, esses 30% podem diminuir.
Não quero dizer que ele tem a eleição perdida, mas acho que será um pouco difícil para ele.
Assim como essas lideranças geram adesão muito forte, também geram índices de rejeição muito significativos. E isso é essencial para o segundo turno eleitoral, quando os eleitores tendem a votar no mal menor.
Em uma eventual disputa de Milei contra quem quer que seja, é muito provável que eleitores de candidatos derrotados acabem optando por essa outra opção porque querem impedir que a extrema direita chegue ao poder.
No Chile, Kast venceu o primeiro turno contra Boric com uma participação de 45% dos eleitores. Na segunda rodada, a participação subiu para 55%, e Boric venceu por 10 pontos de diferença.
Muitas pessoas votaram nele para evitar que Kast chegasse ao poder. É semelhante ao que aconteceu na França quando Macron venceu Marine le Pen.
BBC - Então, até que ponto o resultado das primárias argentinas representa um sinal de conquistas para a direita radical da América Latina?
Rovira - Boa pergunta. Acho que o que temos visto na América Latina é que essas ultradireitas vêm crescendo. Milei não existia há cinco anos. Kast obteve 8% dos votos em 2017 e hoje está onde está.
Meu olfato político me diria que essa realidade veio para ficar. Não me surpreenderia se em muitos outros países latino-americanos víssemos um efeito dominó e essas lideranças começassem a ganhar espaço na arena eleitoral.
No entanto, é difícil para mim pensar que, na grande maioria dos países latino-americanos, esses líderes acabem conquistando o Poder Executivo. Uma coisa é eles conseguirem 20%, 30% ou 35% dos votos, e outra é eles terem percentual suficiente para vencer.
Essa é a grande incógnita para outubro na Argentina: se esses 30% que Milei teve são suficientes para eventualmente chegar ao Poder Executivo no segundo turno.
BBC - Muitos na região veem o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, como um exemplo de mão forte contra o crime. Bukele também entra no campo da direita radical?
Rovira - Se voltarmos à metáfora dos primos, Bukele é aquele que parece um pouco mais distante da família. Eu o enquadraria na extrema direita, com uma ressalva importante: suas origens.
Se pensarmos nas origens de Kast ou Bolsonaro, eles sempre estiveram à direita e acabaram montando seu próprio veículo eleitoral muito à direita. Milei, inclusive, sempre teve posições de direita, principalmente nas questões econômicas que ele agora alia à questão moral.
Bukele, por outro lado, começa um pouco à esquerda, posiciona-se contra o establishment, acaba defendendo a mão forte e depois combina isso com questões moralmente muito conservadoras.
Bukele tem se voltado para posições muito à direita, por isso eu o colocaria dentro desse grande conglomerado.
BBC - O que a tradicional classe política latino-americana pode tirar da ascensão de figuras como Milei?
Rovira - Uma primeira lição é que, na maioria das vezes, esses atores ganham não tanto pela agenda econômica, mas sim pela agenda cultural: questões como aborto ou casamento igualitário vêm ganhando espaço na América Latina. Não é mais apenas sobre Estado ou mercado.
Em segundo lugar, há um mal-estar generalizado com a capacidade dos políticos de ouvir as demandas dos cidadãos.
Esses atores de extrema direita se conectam com essas sensibilidades, muitas vezes propondo soluções que vão gerar mais problemas. Portanto, a classe política da América Latina precisa entender melhor esses problemas.
O terceiro ponto é que uma das demandas transversais na América Latina tem a ver com o crime organizado, e nem a esquerda, nem a direita convencional conseguiram propor soluções de longo prazo compatíveis com o sistema democrático.
É outro grande calcanhar de Aquiles.
BBC - Você escreveu que os líderes da direita radical, se chegarem ao governo, podem levar a "regimes competitivos autoritários", onde ainda há eleições, mas eles governam mais como ditadores. Isso não pode acontecer também com lideranças de esquerda?
Rovira - Certamente sim. A Venezuela é o melhor exemplo disso: quem construiu o regime competitivo autoritário venezuelano foi a esquerda, e não a direita.
Mas, hoje, se analisarmos o panorama global da erosão dos sistemas democráticos, ele vem muito mais da ultradireita do que da ultraesquerda.
Mesmo na América Latina, a ultraesquerda não está muito bem posicionada eleitoralmente. Em vez disso, os ultradireitistas vêm ganhando terreno. Sabemos por evidências comparativas que eles colocam em risco os regimes democráticos e podem provocar processos de gradual erosão democrática.
É um risco diferente do que representava a direita ou as ditaduras dos anos 1960 ou 1970, que queriam simplesmente fazer desmoronar o espaço político.
E com isso, não quero dizer que as ultraesquerdas não sejam perigosas.
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