Entrevista

Nadia Murad, Nobel da Paz: "Fui raptada e mantida como escrava sexual"

Ativista de direitos humanos e membro da etnia iraquiana yazidi, Nadia Murad teve os pais e irmãos assassinados pelo Estado Islâmico e sofreu violência sexual. Em entrevista ao Correio, a ganhadora do Nobel, em 2018, cobrou ação decisiva da comunidade internacional, nove anos depois de genocídio

Rodrigo Craveiro
postado em 02/08/2023 10:11
Ganhadora do Prêmio Nobel Nadia Murad -  (crédito: Nadia's Intiative/ reprodução)
Ganhadora do Prêmio Nobel Nadia Murad - (crédito: Nadia's Intiative/ reprodução)

Em 3 de agosto de 2014, terroristas do Estado Islâmico (Daesh, pelo acrônimo em árabe), capturaram a cidade de Sinjar, no norte do Iraque, e promoveram um genocídio de yazidis, uma comunidade étnico-religiosa discriminada pela maioria muçulmana por acreditar em um anjo caído do céu que, perdoado por Deus, se coloca para governar a Terra. Os fundamentalistas islâmicos do Daesh executaram 5 mil yazidis, escravizaram crianças e mulheres, estupraram várias delas e enterraram, vivas, muitas de suas vítimas. Em 2018, então com 25 anos, a iraquiana yazidi Nadia Murad — ativista de direitos humanos, sobrevivente do genocídio e ex-escrava sexual do Estado Islâmico — ganhou o Prêmio Nobel da Paz por seu esforço em acabar com o uso da violência sexual como arma de guerra. Em junho, Murad esteve no Brasil. Nesta terça-feira (1/8), ela concedeu entrevista ao Correio, por e-mail. Leia a seguir:

De que modo a senhora foi diretamente afetada pelo genocídio yazidi?

O genocídio começou exatamente nove anos atrás. Em 3 de agosto de 2014, mais de 5 mil yazidis foram assassinados, mais de 9.500 mulheres e crianças acabaram escravizadas e submetidas à violência sexual. Quase 400 mil yazidis foram expulsos de seus lares. Atrás de cada um desses números existe uma história real, de cortar o coração. Minha história é somente uma delas.

Quando o Estado Islâmico cercou e, depois, invadiu o vilarejo de Kocho, em 2014, massacrou várias centenas de homens e de mulheres idosas. Incluindo minha mãe, meus irmãos e muitos outros de meus familiares. Como milhares de outras jovens garotas yazidis, fui raptada e mantida como escrava sexual. A violência e a degradação eram indescritíveis. Depois de meses no cativeiro, consegui fugir, apenas para me encontrar vivendo em um campo para pessoas internamente deslocadas. Em 2015, consegui chegar à Alemanha e comecei a falar. Falei em nome dos sobreviventes e vítimas que eram incapazes de falar por si mesmos. Falei para que jamais fossem esquecidos.

Como o Nobel da Paz deu visibilidade à situação dos yazidis?

O Nobel da Paz me deu uma plataforma para partilhar com o mundo minha história e a história do que o povo Yazidi suportou durante o genocídio. Ele me deu a oportunidade de destacar a realidade chocante de que, em pleno século 21, na era da globalização e dos direitos humanos, mais de 6.500 crianças e mulheres yazidis se tornaram cativas e foram vendidas, compradas e abusadas sexual e psicologicamente. Até hoje, mais de 2 mil mulheres e crianças estão desaparecidas. Infelizmente, ser submetido à violência sexual e a atrocidades em massa, em tempos de conflito, não é algo exclusivo da comunidade Yazidi — é algo que comunidades vulneráveis ao redor do mundo continuam a enfrentar. Basta olharmos o que ocorre no Sudão e na Ucrânia. Na vasta maioria dos casos, os autores da violência sexual contra os yazidis e outras mulheres e crianças não foram responsabilizados por seus crimes. Se a justiça não for feita, esse genocídio será repetido contra nós e contra outras comunidades vulneráveis. Então, eu continuo a contar essas histórias não simplesmente para ampliar a conscientização, mas para buscar justiça para os sobreviventes e para motivar a comunidade internacional a se unir a nós nos esforços para prevenir esses crimes no futuro.

Corpos de vítimas do genocídio yazidi são enterrados novamente, durante cerimônia, após serem exumados, em Sinjar, no norte do Iraque
Corpos de vítimas do genocídio yazidi são enterrados novamente, durante cerimônia, após serem exumados, em Sinjar, no norte do Iraque (foto: Nadia's Intiative/ reprodução)

Quem é o povo yazidi?

Os yazidis são um povo pequeno e antigo. Nós compartilhamos alguns elementos tradicionais com outras religiões do Oriente Médio. Somos separados por nossos rituais de oração, pela crença na reencarnação e pelo papel do Anjo Pavão, Tawusi Malek, que é adorado por nós como mensageiro do deus Yazidi. É por isso que nós, yazidis, somos perseguidos por séculos. Houve 73 genocídios contra nós. O mais recente foi conduzido pelo Estado Islâmico, em 2014. Agora, somos uma comunidade deslocada e traumatizada.

Nove anos após o genocídio, qual é a situação em Sinjar?

A maioria dos yazidis deslocados vive em campos de deslocados a poucas horas de distância de suas antigas cidades e vilas. Falo por experiência própria quando digo que esses lugares não oferecem esperança para o povo yazidi. Devemos reconstruir nossa pátria para que possamos nos curar e prosperar juntos. Será um trabalho enorme, pois o Estado Islâmico destruiu 80% de toda a infraestrutura — de estradas a poços, de escolas a fazendas. Mas acho que o dinheiro da ajuda global seria muito melhor gasto ajudando minha organização, a Nadia's Initiative, a reabilitar Sinjar do que gastar milhões de dólares em acampamentos que deveriam ter sido apenas uma solução de curto prazo. Acredito que os esforços devem ir além de intervenções humanitárias de curto prazo e de apoio leve na forma de treinamento e programas de construção de capacitação. A comunidade internacional e aqueles que trabalham para apoiar a comunidade Yazidi devem se comprometer com uma programação de longo prazo, destinada a promover a construção da paz e a estabilidade na região.

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