Sudão

A guerra que mata mais que a da Ucrânia

A Guerra no Sudão completou 100 dias, com cerca de 30 mortes por dia e mais de 3 mil mortes no período. Em mais de 500 dias a guerra na Ucrânia teve em torno de 18 pessoas a cada 24 horas

BBC
Juia Braun - Da BBC Brasil em Londres
postado em 31/07/2023 19:39 / atualizado em 31/07/2023 19:39
A cidade de Cartum foi atingida por lutas violentas e bombardeios
 -  (crédito: Getty Images)
A cidade de Cartum foi atingida por lutas violentas e bombardeios - (crédito: Getty Images)

Em 24 de junho, a atual guerra no Sudão completou 100 dias. Segundo as autoridades locais, mais de 3 mil pessoas foram mortas nesse período.

O total representa cerca de 30 mortes por dia desde que o conflito eclodiu, em 15 de abril - e especialistas acreditam que o número de vítimas pode ser ainda superior, com muitas mortes não contabilizadas oficialmente e acusações de tentativa de genocídio na região do Darfur, no oeste do país.

Em comparação, a guerra na Ucrânia, que mobiliza potências do mundo todo e já é considerada o maior ataque militar desde a 2ª Guerra Mundial, deixou 9 mil civis mortos em seus mais de 500 dias, algo em torno de 18 pessoas a cada 24 horas.

"Há muitas diferenças entre os dois conflitos e os interesses envolvidos. Mas a resposta internacional e humanitária à guerra no Sudão tem sido praticamente inexistente, ao contrário do que acontece na Ucrânia", diz Nisrin Elamin, professora da Universidade de Toronto.

Segundo a pesquisadora, que tem ascendência sudanesa e familiares que continuam no país, isso acontece apesar da violência explosiva do conflito, que se mistura a uma crise humanitária e ao número de refugiados que não para de crescer - mais de 2,6 milhões de pessoas foram deslocadas internamente, enquanto pelo menos 730.000 fugiram para países vizinhos, de acordo com dados da agência de refugiados das Nações Unidas.

Mas afinal, o que provocou o conflito no Sudão e o que o torna tão devastador para a população local?

A disputa

Desde que militares deram um golpe de Estado e tomaram o poder após prender o então primeiro-ministro interino, Abdallah Hamdok, em outubro de 2021, o Sudão é governado por uma junta de generais.

Antes disso, em 2019, o país foi abalado pela maior onda de protestos de sua história, que culminou na deposição do líder autoritário Omar al-Bashir, que ficou na Presidência por quase 30 anos.

Em meio a um longo período de instabilidade, dois generais que fazem parte do grupo de militares que conduzem o governo passaram a disputar o poder.

No centro dos confrontos estão o líder da Forças Armadas Sudanesas, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das Forças de Apoio Rápido (RSF, na siga em inglês) paramilitares, Mohamed Hamdan Dagalo.

General Mohamed Hamdan Dagalo (à esquerda) e general Abdel Fattah al-Burhan (à direita)
Getty Images
Generais Mohamed Dagalo (esq.) e Abdel al-Burhan lideram forças poderosas

Os dois já foram aliados e trabalharam juntos para derrubar Bashir em 2019, mas mais recentemente passaram a discordar sobre os rumos que o país está tomando e sobre uma proposta de transição para o regime civil.

Entre os pontos mais controversos estão os planos de incluir os 100 mil combatentes do RSF no Exército e a definição de quem ficaria encarregado de liderar a nova força.

A violência estourou após dias de tensão, depois que membros das RSF foram redistribuídos em todo o país em um movimento que o Exército interpretou como uma ameaça.

Esperava-se que a situação pudesse ser resolvida através do diálogo, mas isso nunca se concretizou.

Violência e mortes

Os confrontos estouraram em abril na capital Cartum, até então majoritariamente poupada dos conflitos étnicos e políticos que atingem o país há anos.

"Eu estava visitando minha família em Cartum em 15 de abril e fomos acordados pelo barulho de explosões, mísseis e tiros. Não estávamos esperando e ficamos presos dentro de casa por vários dias, até conseguirmos deixar o país", relata Elamin, que é professora de Estudos Africanos, e viajou ao Sudão com a filha de 3 anos.

A violência logo se espalhou para o resto do país e relatos de ações sangrentas, corpos nas ruas e estupros em massa emergiram.

O corpo de um soldado apodrece na rua; do outro lado, um soldado se protege em um prédio em 15 de abril deste ano
Reuters
Corpo de soldado em rua de Cartum em 15 de abril deste ano

E apesar das forças inimigas lutarem pelo controle de instalações militares e governamentais importantes, grande parte dos confrontos está acontecendo em áreas urbanas, com disparo de mísseis, ataques aéreos e troca de tiros em meio às ruas de algumas das principais cidades do país.

Segundo Nisrin Elamin, essa concentração da luta em áreas de alta densidade populacional ajuda a explicar o alto número de civis mortos.

A especialista atribui ainda o nível de brutalidade do conflito atual ao passado violento de Abdel Fattah al-Burhan, Mohamed Hamdan Dagalo e o regime que representam.

"Esses dois generais cometeram atrocidades no passado, em diferentes partes do país, que tiveram consequências por décadas", diz.

Em Darfur a guerra toma uma forma especialmente perigosa, com ataques brutais das RSF e suas milícias árabes aliadas contra civis.

A região foi atingida em 2003 por um violento conflito étnico que, segundo o Tribunal Penal Internacional (TPI), levou a ocorrência de crimes contra a humanidade (homicídio, tortura, extermínio, estupro), crimes de guerra (ataque intencional a populações civis) e genocídio.

Os crimes foram cometidos principalmente pelas milícias árabes, conhecidas como Janjawids e cujo integrante mais conhecido é o atual líder das RSF.

Carro das RSF
AFP
As Forças de Apoio Rápido (RSF) são bem treinadas e bem armadas

E diante dos relatos dos últimos meses, representantes das Nações Unidas afirmam temer a repetição desta tragédia na região.

Segundo Volker Perthes, representante especial da ONU no Sudão, a violência assumiu dimensões étnicas em El Geneina, capital de Darfur Ocidental.

"Enquanto as Nações Unidas continuam a reunir detalhes adicionais sobre essas denúncias, há um padrão emergente de ataques direcionados em larga escala contra civis com base em suas identidades étnicas, supostamente cometidos por milícias árabes e alguns homens armados e uniformizados com trajes das Força de Apoio Rápido (RSF). Esses relatórios são profundamente preocupantes e, se verificados, podem constituir crimes contra a humanidade", afirmou.

Imagens de satélite obtidas pela BBC ainda mostram que vilas inteiras no sul do Darfur foram incendiadas e destruídas, eliminando recursos importantes para a população local.

Vários cessar-fogos foram anunciados desde o início do conflito para permitir que as pessoas escapem dos combates em todo o país, mas eles não foram cumpridos por nenhuma das partes.

E entre as vítimas da luta estão mais de 400 crianças, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Outros 2 mil menores foram feridos desde o início da guerra.

"A escala do impacto que esse conflito teve sobre as crianças do Sudão nos últimos cem dias está quase além da compreensão", afirmou Ted Chaiban, vice-diretor executivo do Unicef para ações humanitárias.

"Pais e avós que viveram ciclos anteriores de violência agora veem filhos e netos passarem por experiências horríveis semelhantes. Todos os dias crianças estão sendo mortas, feridas, sequestradas e vendo as escolas, os hospitais e a infraestrutura vital do país serem danificados, destruídos ou saqueados."

Crise humanitária

À violência dos confrontos se soma uma profunda crise humanitária, que ameaça levar 2,5 milhões de pessoas à fome – elevando o total geral para um recorde de 19 milhões, ou 40% da população do país.

A guerra exacerbou um cenário já complexo ao levar a uma profunda crise econômica, aumentar os preços e dificultar o acesso a alimentos, água potável, energia elétrica e serviços de saúde.

Homens sentam e deitam do lado de fora de tendas e abrigos montados na escola secundária de Hasahisa em 10 de julho de 2023, que foi transformada em um acampamento improvisado para abrigar os deslocados internos
Getty Images
Escolas foram transformadas em acampamentos improvisados para abrigar os refugiados internos

Em maio, segundo a ONU, metade dos 46 milhões de habitantes do Sudão precisava de assistência e proteção humanitária.

Em todo o país, mais de 80% dos hospitais estão fora de serviço, também segundo as Nações Unidas. Além disso, pelo menos 60 instalações de saúde apoiadas por ONGs em Darfur estão sem suprimentos médicos essenciais.

Com a interrupção dos serviços de saúde, doenças como malária, sarampo e dengue, que estavam sob controle antes do conflito, estão aumentando. A estação chuvosa, que acontece entre abril e outubro, pode piorar ainda mais a situação.

Segundo especialistas, o enorme fluxo de refugiados saindo do país também ameaça estender a crise para países vizinhos como República Centro-Africana, Chade, Egito, Etiópia e Sudão do Sul.

Resposta internacional

A escalada crescente da crise no país levou as Nações Unidas a quase dobrar sua assistência humanitária para o Sudão, alcançando US$ 3 bilhões.

Em maio, os Estados Unidos anunciaram o envio de US$ 245 milhões ao Sudão e países vizinhos. A Comissão Europeia e o governo britânico também estão entre os que alocaram recursos.

Ainda assim, ativistas têm cobrado organizações internacionais e grandes potências por mais atenção ao conflito.

Chamas e fumaça em Cartum
Getty Images
Chamas e fumaça em Cartum enquanto as forças controladas pelos dois generais se enfrentam

"O regime militar tem se recusado a emitir permissões para que organizações humanitárias atuem no país e muitas instituições foram obrigadas a evacuar seus voluntários quando o conflito começou, mas ainda assim a resposta internacional tem sido considerada fraca", avalia Nisrin Elamin.

"Em grande parte, o fardo da resposta humanitária caiu sobre comitês de resistência voluntários locais que se arriscam para distribuir alimentos, dirigir ambulâncias e oferecer serviços médicos improvisados."

Segundo a especialista, alguns fatores ajudam a explicar a diferença nas reações e na atenção recebida pelas guerras do Sudão e Ucrânia, entre eles o legado colonialista e o racismo, além da convergência distinta de interesses envolvidos em cada um dos conflitos.

"Existe um tipo de crença racista de que os africanos e os países africanos são naturalmente propenso a conflitos", diz a antropóloga.

"Muito disso está ancorado no passado colonialista do Sudão, que só se tornou totalmente independente dos britânicos em 1956 e desde então carrega uma economia e um sistema político que beneficiam principalmente as elites."

Ao mesmo tempo, de acordo com Elamin, enquanto na Ucrânia os interesses da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e da Rússia no conflito estão muito bem estabelecidos, no Sudão ainda é difícil determinar o que cada uma das partes pretende alcançar com a guerra.

O apoio de entes internacionais aos dois lados - a Arábia Saudita tem cooperado com Burhan e indícios apontam para uma aliança entre os Emirados Árabes Unidos (EAU) e as RSF -, porém, tem potencial de prolongar ainda mais os combates, segundo analistas.

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