Israel

Parlamento aprova lei polêmica que esvazia os poderes da Suprema Corte

Emenda polêmica põe fim ao "princípio da razoabilidade" e impossibilita a máxima instância do Judiciário de anular decisões do governo consideradas irracionais. Analistas veem ameaças ao Estado de Direito e à democracia

Rodrigo Craveiro
postado em 25/07/2023 06:00
Forças de segurança israelenses usam canhão d'água para conter multidão em frente ao prédio do Knesset (Parlamento), em Jerusalém  -  (crédito: Ronaldo Schemidt/AFP)
Forças de segurança israelenses usam canhão d'água para conter multidão em frente ao prédio do Knesset (Parlamento), em Jerusalém - (crédito: Ronaldo Schemidt/AFP)

Milhares de israelenses saíram às ruas de Tel Aviv, de Jerusalém e de outras cidades do país depois que o Knesset (Parlamento) aprovou, por 64 votos a zero, uma emenda da polêmica reforma do Judiciário que põe fim ao "princípio da razoabilidade" — o qual permitia à Suprema Corte anular as decisões do governo de Benjamin Netanyahu que os magistrados considerassem irracionais. Na prática, a medida restringe os poderes da máxima instância do Judiciário de intervir nas ações tomadas pelo governo.

Principal defensor da reforma, o primeiro-ministro classificou o aval do Knesset como "uma etapa democrática necessária". "Essa etapa busca restabelecer um equilíbrio entre os poderes, de maneira que o governo escolhido possa aplicar uma política condizente com a vontade da maioria dos cidadãos", declarou Netanyahu, que assistiu à sessão no Knesset, um dia depois de se submeter à colocação de um marcapasso. Após a divulgação do resultado da votação, forças de segurança entraram em choque com manifestantes e usaram canhões d'água e cavalaria. 

Policial montado a cavalo confronta ativista, também em Tel Aviv: nervos à flor da pele
Policial montado a cavalo confronta ativista, também em Tel Aviv: nervos à flor da pele (foto: Jack Gaez/AFP)
 

Especialistas admitem a preocupação de que o fim da cláusula da razoabilidade represente uma ameaça ao Estado de Direito e às normas democráticas. Ao longo de sete meses, a reforma judicial de Netanyahu incitou os maiores protestos da história de Israel. Segundo o jornal The Jerusalem Post, o chefe de governo negociará com a oposição, até novembro, a retomada dos debates sobre os outros pontos da reforma — incluindo um que concede ao governo maior poder para nomear juízes. 

O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, garantiu que "o Estado de Israel" será "um pouco mais democrático" com a emenda. "A lei é importante para a democracia, mas trata-se apenas do começo. Por um Estado de Israel mais democrático e mais judeu, temos que passar o resto da reforma (...) e mudar a autoridade dos procuradores-gerais", observou. Arquiteto da reforma, o ministro da Justiça, Yariv Levin, assegurou que a cláusula da razoabilidade não foi anulada. "Nós reduzimos seu uso para que as opiniões pessoais de um juiz não sejam expressas em detrimento da vontade do povo. Não há por que temer a emenda", declarou aos parlamentares. 

Principal líder da oposição, o centrista Yair  Lapid denunciou a "completa violação das regras do jogo democrático" e exortou a Suprema Corte a revogar a lei. "Não desistiremos, não nos renderemos. Não deixaremos que transformem Israel em um país falido e antidemocrático, dirigido pelo ódio e pelo extremismo", avisou.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, classificou a aprovação da emenda como "infeliz" e criticou o fato de ela ter ocorrido mediante o aval da "maioria mínima possível". "Acreditamos que, para grandes mudanças democráticas, você precisa trabalhar pelo consenso. Nós exortamos os líderes israelenses a trabalharem por uma abordagem baseada no consenso, por meio do diálogo político", afirmou, por meio de nota, um dos principais aliados de Israel.

Mulheres vestidas como aias da série Handmaid´s Tale protestam em Tel Aviv
Mulheres vestidas como aias da série Handmaid´s Tale protestam em Tel Aviv (foto: Jack Guez/AFP)
 

Risco não imediato

Para Barak Medina, professor de direito da Universidade Hebraica de Jerusalém, o risco à democracia israelense não é imediato, ao menos por enquanto. "A emenda confere ao governo mais poderes. A questão é até que ponto Netanyahu utilizará esses poderes. A expectativa é de que ele tente destituir o procurador-geral, Gali Baharav-Miara, o que representaria uma ameaça real", afirmou ao Correio. "Se ele fracassar, a emenda limitará o poder de revisão judicial e poderá prejudicar o Estado de Direito e o princípio da separação de poderes."

Medina lembra que a medida aprovada nesta segunda-feira (24/7) é apenas a primeira parte menos prejudicial da reforma. "A reação popular impedirá o governo de implementar os passos adicionais do plano, os quais têm a ver com nomeações no Judiciário. Creio que o tribunal invalidará a emenda atual. Haverá várias semanas de agitação até que a Suprema Corte decida", acrescentou. 

Por sua vez, o advogado Guy Lurie — especialista do The Israel Democracy Institute (IDI, em Jerusalém) e pós-doutor em direito pela Universidade de Haifa — adverte: "A democracia está sob ataque em Israel". Segundo ele, a primeira cláusula do plano de Netanyahu reduz os poderes de revisão das decisões do governo, por parte da Suprema Corte. "Com isso, prejudica-se uma importante verificação do poder do governo e uma proteção crucial ao Estado de Direito no país", alertou. 

Em Tel Aviv, opositores à reforma do Judiciário israelense retiram cercas de metal da rua
Em Tel Aviv, opositores à reforma do Judiciário israelense retiram cercas de metal da rua (foto: AFP)
 

Lurie teme que, embasado na emenda, o governo atue de forma irresponsável. "Netanyahu poderá ter impunidade, por exemplo, para fazer nomeações corruptas; demitir o procurador-geral, mesmo sem justa causa; e abrir caminho para ataques ao Estado de direito", disse à reportagem. Pesquisas feitas pelo IDI mostraram que a medida aprovada pelo Knesset é "extremamente impopular" entre os israelenses — apenas um terço da população demonstra apoio a ela. "Ainda menos pessoas avalizam a maneira unilateral como ela passou pelo Parlamento, com uma pequena maioria." Ainda de acordo com Lurie, a revisão judicial das decisões do governo se baseava nos poderes legislados da Corte, em voga desde a criação da máxima instância do Judiciário israelense, em 1948. 

Professor de ciência política da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan (subúrbio de Tel Aviv), Gerald Steinberg considera em grande parte sem sentido a lei que proíbe a "razoabilidade". "Há outras quatro dimensões no pacote da reforma do Judiciário, todas mais significativas do que a emenda aprovada hoje (nesta segunda-feira). Não é provável que alguma delas seja adotada agora", explicou.

  • Mulheres vestidas como aias da série Handmaid´s Tale protestam em Tel Aviv
    Mulheres vestidas como aias da série Handmaid´s Tale protestam em Tel Aviv Foto: Jack Guez/AFP
  • Policial montado a cavalo confronta ativista, também em Tel Aviv: nervos à flor da pele
    Policial montado a cavalo confronta ativista, também em Tel Aviv: nervos à flor da pele Foto: Jack Gaez/AFP
  • Em Tel Aviv, opositores à reforma do Judiciário israelense retiram cercas de metal da rua
    Em Tel Aviv, opositores à reforma do Judiciário israelense retiram cercas de metal da rua Foto: AFP
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