Cercada por gramados verdes, a Flat House, que fica em uma fazenda no condado de Cambridgeshire, no Reino Unido, parece um caso típico de um celeiro convertido em casa.
Mas basta entrar no imóvel para surpreender-se.
"As paredes me lembram as cabanas feitas com fardos de feno que costumávamos fazer quando crianças", diz a proprietária da Flat House, Gemma Barron.
"Ela tem uma ótima acústica. E, no ano passado, desligamos o aquecimento por 24 horas no meio do inverno e ela permaneceu quente."
Iluminada, arejada e confortável, essa casa é incomum por causa do material usado para construí-la: o cânhamo, uma subespécie da planta Cannabis sativa, a maconha.
A diferença do cânhamo para a maconha é o teor da substância psicoativa THC (tetrahidrocanabinol). No cânhamo, ele é muito baixo (menor que 0,33%) ou inexistente. Na maconha, ele é mais alto — embora também varie, dependendo se o cultivo é para saúde ou para recreação.
O cânhamo é cultivado há séculos para uso industrial de suas fibras, especialmente no setor têxtil. No Brasil, no entanto, seu cultivo é proibido.
Com crescimento rápido, baixo consumo de água e propriedades de captura de carbono, o cânhamo tem sido cada vez mais usado na construção na forma de concreto de cânhamo, ou hempcrete — um material resistente feito pela mistura do núcleo lenhoso da planta com um aglutinante feito de água e cal.
O hempcrate tem um ótimo isolamento térmico, o que melhora a eficiência energética dos edifícios e reduz as emissões de gases de efeito estufa ao longo do tempo. Ele também continua a absorver carbono ao longo de sua vida útil.
Alta demanda por materiais sustentáveis
Os materiais sustentáveis estão em alta demanda, pois a indústria da construção visa reduzir sua pegada de carbono. Prédios e construções são responsáveis por aproximadamente 37% das emissões globais de dióxido de carbono (CO2).
Isso se deve à forte dependência da indústria de combustíveis fósseis; de materiais cuja produção libera muito carbono, como concreto, aço e vidro; além dos gases de efeito estufa emitidos no aquecimento e resfriamento dos prédios.
Além de ser renovável, o cânhamo captura carbono do ar durante seu crescimento, o que o torna uma alternativa sustentável. Segundo a Comissão Europeia, um hectare (10 mil m²) de cânhamo sequestra entre nove e 15 toneladas de CO2 e leva apenas cinco meses para crescer — o que significa que é melhor do que a silvicultura (crescimento de florestas) comercial usada tipicamente para sequestro de carbono.
Além disso, a produção de cânhamo é indicada para remover metais pesados do solo e para ajudar a regenerá-lo.
"Otimizar a maneira como projetamos, construímos e renovamos nossos edifícios tem um papel crítico a desempenhar na redução das emissões", diz Yetunde Abdul, chefe de ação climática do Conselho Green Building do Reino Unido.
"Uma parte importante da solução envolve explorar alternativas naturais de baixo carbono para materiais de construção vitais, como concreto de cânhamo ou madeira".
Mas uma série de desafios deve ser superada antes que o cânhamo possa ser usado em larga escala na indústria da construção. Isso inclui mudanças em regulamentações governamentais, certificações técnicas, financiamento e infraestrutura para aumentar a produção industrial de cânhamo, além da simplificação das cadeias de suprimentos e de esforços para torná-lo mais acessível.
Hoje, na forma de hempcrete, a planta é usada principalmente por arquitetos com mentalidade ecológica e alto orçamento na Europa e na América do Norte, principalmente devido a questões de legislação. Nessas regiões, a produção de cânhamo tem sido regulamentada e se desenvolvido conforme caem as restrições em torno do cultivo da cannabis.
Apesar do nome, o hempcrete não funciona como concreto; não pode ser usado estruturalmente e, portanto, precisa ser combinado com materiais de suporte de peso, como madeira ou pedra.
Mas, como isolante térmico — muito necessário em regiões mais frias —, ele é uma opção com menor pegada de carbono do que materiais de base petroquímica, como fibra de vidro e placa de espuma.
O hempcrate "serve para tudo", diz Summer Islam, cofundadora da empresa Material Cultures, o estúdio que projetou e construiu a Flat House em 2020.
"Sua alta massa térmica significa que o hempcrate aquece e libera calor lentamente, regulando a temperatura interior ao longo do dia."
O material também é hidroscópico, acrescenta ela, por isso absorve e libera umidade, tornando-se resistente ao mofo.
Placas pré-fabricadas
O cânhamo usado para Flat House foi cultivado nas terras vizinhas da fazenda Margent Farm.
O projeto representa o que se costuma chamar de "ecologia circular", uma abordagem de construção na qual os edifícios emergem e podem se reintegrar naturalmente à paisagem.
O hempcrete foi usado em forma de painel pré-fabricado para criar as paredes da casa, encaixadas em uma estrutura de madeira. Dentro da casa, os materiais são deixados expostos, com a aparência de "fardo de feno" do hempcrete visível.
Uma desvantagem do hempcrete é que ele se deteriora quando exposto ao tempo chuvoso, então o estúdio Material Cultures precisava encontrar uma nova solução para o exterior da Flat House, enquanto ainda aproveitava todo o potencial da planta.
Em vez da barreira de cânhamo, a prática voltou-se para o exterior fibroso da fábrica, conhecido como fibras bast, que já são usadas em escala industrial para substituir a fibra de vidro na engenharia aeroespacial e automotiva.
O Material Cultures comprimiu termicamente essas fibras de cânhamo com uma resina natural à base de açúcar para criar painéis de revestimento resistentes à chuva que cobrem a casa. A empresa continua a produzir estes painéis, atraindo grande interesse de outros arquitetos que pretendem utilizar o material.
O estúdio também planeja usar o hempcrate e madeira local em um novo projeto no Reino Unido chamado Projeto Phoenix, um bairro de 700 casas construídas com sustentabilidade.
Renascimento
O hempcrete não é uma novidade: tem sido usado na construção há milhares de anos.
No entanto, o século passado viu o surgimento de materiais de construção mais modernos e a criminalização do cultivo de cânhamo devido à sua associação com o uso recreativo de cannabis.
Na França, no entanto, o cultivo de cânhamo nunca foi proibido, o que contribuiu para que o país se tornasse um dos líderes globais em cânhamo industrial.
Após o renascimento moderno do concreto de cânhamo no final do século 20, vários projetos de construção usando o material foram feitos em todo o país.
Em 2020, um bloco de habitação social de sete andares foi concluído em Paris, onde o concreto de cânhamo foi usado como material de isolamento primário, acompanhado por uma estrutura de madeira. O escritório de arquitetura por trás do projeto, Barrault Pressacco, já havia usado concreto de cânhamo ocasionalmente na década anterior, mas o prédio habitacional foi o momento de uso do material em maior escala.
O cofundador do escritório, Thibaut Barrault, descreve o hempcrete como "arquitetonicamente virtuoso", elogia seu desempenho térmico, respirabilidade, impactos no bem-estar e sequestro de carbono. No entanto, aponta que não é uma solução perfeita.
"O cânhamo é ótimo, mas o uso de cal (para compor o hempcrate) ainda é algo questionável do ponto de vista de sustentabilidade", diz ele.
A produção de cal requer o aquecimento do calcário a aproximadamente 1 mil °C, o que emite muitos gases do efeito estufa.
"Não existe uma solução para salvar o mundo", diz Barrault.
Mas, por enquanto, o hempcrete continua sendo uma opção vantajosa. A empresa de Barrault está usando o material em um grande edifício residencial e comercial atualmente em construção em Paris, e também está pesquisando se o hempcrete pode ser usado em projetos de retrofit de prédios (grandes reformas).
As grandes reformas de prédios para atualizá-los se tornaram essenciais para melhorar a eficiência energética dos edifícios sem o enorme custo de carbono e desperdício de uma demolição e reconstrução.
Até o momento, o hempcrete tem sido usado principalmente em pequenos projetos residenciais, devido a problemas relacionados às cadeias de suprimentos, restrições de escala e custos.
"Em última análise, a capacidade de fabricação no Reino Unido ainda não está voltada para a produção em larga escala", diz Islam.
"O maquinário para isso é muito caro e não é distribuído em todo o país."
O que é preciso, diz ela, é investimento — em negócios, infraestrutura, qualificação e certificação de materiais.
Até que isso aconteça, o hempcrete continuará sendo um material caro e escasso para se trabalhar, agravado pelo alto custo do seguro por ser classificado como "fora do padrão".
Regulação
Paloma Gormley, outra cofundadora da Material Cultures, argumenta que a "enorme quantidade de investimento" dos fabricantes de materiais de alto custo de carbono nas aprovações de seus produtos permitiu que eles dominassem o mercado, tanto em termos de acessibilidade quanto de credenciamento.
"Há um processo equivalente que precisa acontecer para materiais como o hempcrete".
A regulamentação, mesmo para o cultivo exclusivo de cânhamo, é outro grande obstáculo.
Nos EUA, por exemplo, o cultivo industrial de cânhamo era ilegal até 2018, devido à planta ser considerada uma substância controlada.
O próprio hempcrete só foi aprovado para o código de construção residencial do país em 2022. Permanece proibido em projetos comerciais até pelo menos 2025.
Na África do Sul, o cânhamo foi finalmente designado como cultura agrícola em 2021, possibilitando seu cultivo no país.
O escritório Wolf + Wolf Architects, com sede na Cidade do Cabo, fez seu nome na arquitetura de cânhamo nos últimos 15 anos, mas até recentemente dependia das importações da planta.
"Comecei a trabalhar na minha primeira casa de canabis em 2007", diz o fundador e diretor do escritório, Wolf, que usa apenas o sobrenome. "Fiquei fascinado com todos os seus usos e pude ver o impacto positivo que poderia ter na descarbonização do ambiente construído."
O Wolf + Wolf está atualmente concluindo um arranha-céu na Cidade do Cabo usando concreto de cânhamo em forma de bloco pré-fabricado. O edifício é considerado o mais alto do mundo construído com o material.
O escritório de arquitetura também está trabalhando atualmente em quatro casas de cânhamo e começou a projetar outro prédio alto feito com cannabis. Wolf está otimista.
"O interesse na África do Sul pelo cânhamo como material de construção está crescendo exponencialmente. É o início de uma nova indústria no país", diz ele.
Devido à legalização do cultivo e do aumento da compreensão sobre os inúmeros benefícios do material, o uso do hempcrete está aumentando, apesar de estar concentrado principalmente na Europa e na América do Norte.
A Comissão Europeia informou que a área de terras da UE dedicadas ao cultivo industrial de cânhamo cresceu 75% entre 2015 e 2019, com a França sendo responsável por 70% da produção total.
No Brasil, o material ainda não pode ser usado na construção civil e seu cultivo é proibido.
No entanto, isso pode mudar em breve.
Em novembro de 2022, a ONU publicou um relatório descrevendo os benefícios do cânhamo industrial.
A organização alertou que, para explorar plenamente o potencial do cânhamo, os países precisariam esclarecer o status legal da planta, enfrentar as restrições das estruturas regulatórias e cooperar regionalmente para facilitar o estabelecimento de cadeias de produção.
A Material Cultures acredita que a adoção de materiais de construção sustentáveis, como o cânhamo, pode fazer parte de uma mudança em direção a uma abordagem de construção na qual os recursos naturais de origem local são usados.
Embora o que o ambiente realmente precise neste momento seja uma redução drástica no ritmo de construção, o importante é que, quando você construir, isso seja feito "de maneira eficiente em termos de recursos, enxuta e ponderada", diz Islam.
O cânhamo, de rápido crescimento e sequestrador de carbono, então, parece uma alternativa interessante.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.
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