Os mercenários do Grupo Wagner, comandado pelo oligarca russo Yevgeny Prigozhin, estavam a 200km de Moscou. Eles ocuparam o quartel-general do Exército russo em Rostov-On-Don e garantiram que tomaram instalações militares da cidade de 1,2 milhão de habitantes, de onde várias incursões à Ucrânia foram planejadas. Também avançaram sobre a região de Lipetsk, a 400km da capital. Em uma reviravolta tão surpreendente quanto o início da rebelião contra o Kremlin, na noite deste sábado (24/6), Prigozhin ordenou que seus homens retornassem aos acampamentos, a fim de evitarem um "banho de sangue". "Não derramamos uma única gota de sangue dos nossos combatentes. Agora é a hora em que o sangue pode correr. Por isso, nossas colunas recuam, para retornarem aos acampamentos, de acordo com o nosso plano", declarou o líder do Grupo Wagner.
O presidente de Belarus, Alexander Lukashenko, tinha selado um acordo com os amotinados. Pelos termos, o Kremlin arquivará as acusações de incitação à rebelião armada contra Prighozin, que deverá partir da Rússia rumo a Belarus. Os integrantes do Grupo Wagner também não serão processados. Ao anunciar o pacto, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, explicou que a medida tinha o objetivo de "evitar derramamento de sangue, confrontos internos e lutas, com resultados imprevisíveis". No início da madrugada deste domingo (25, pelo horário local), o Grupo Wagner começou a abandonar Rostov.
Até o pacto ser fechado, um clima de apreensão tomou conta das autoridades e dos cidadãos russos. Pontes e rodovias foram fechadas; vídeos circulando nas redes sociais mostravam trincheiras sendo cavadas nos acessos a Moscou. O presidente da Rússia, Vladimir Putin, teria abandonado a capital e embarcado para São Petersburgo, sua terra natal, a 630km da capital. O Kremlin negou. O governo chegou a decretar feriado nesta segunda-feira (26).
"Aventura criminosa"
Horas antes, Putin havia feito um discurso à nação. Com o semblante cerrado, ele enviou um recado "a todos aqueles que foram enganados ou coagidos a uma aventura criminosa, conduzidos para o caminho de um grave crime: uma rebelião armada". "A Rússia está engajada em uma feroz batalha pelo seu futuro, repelindo a agressão de neonazistas e de seus mestres. (...) Estamos lutando pelas vidas e pela segurança de nosso povo, por nossa soberania e independência, pelo direito de sermos e de permanecermos Rússia, um Estado com mil anos de história", declarou. "Ações que dividem nossa unidade são uma traição. (...) Isso é uma facada nas costas de nossa nação e de nosso povo. Protegeremos nosso povo e nossa pátria de quaisquer ameaças, inclusive de traição em casa. O que estamos vendo agora é traição, pura e simples. Ambições excessivas e interesses pessoais levaram à traição." Com a distensão da crise, Putin agradeceu a Lukashenko pelo "trabalho realizado".
Diretor do Centro Carnegie Rússia-Eurásia em Berlim, o russo Alexander Gabuev admitiu ao Correio que a insurgência contra o Kremlin foi algo sem precedentes em duas décadas de poder de Putin. "Uma comparação próxima pode ser o impasse entre o presidente Boris Yeltsin e o Parlamento, em 1993. Ou o motim do general Lavr Kornilov, comandante supremo das Forças Armadas, contra o governo provisório, em fevereiro de 1917", afirmou. Ele não descarta um endurecimento do regime de Putin, como resposta à ameaça representada pelo Grupo Wagner. Gabuev mostra cautela ao analisar o desdobramento da crise. "É preciso ver como o acordo anunciado por Lukashenko se materializará."
Nina Khrushcheva, professora de Assuntos Internacionais na The New School (Nova York) e neta do ex-líder soviético Nikita Khrushchev (1894-1971), afirmou ao Correio que Prigozhin "não é mais um problema de Putin". "Por enquanto, o poder do presidente está intacto. Isto é, até que alguém o desafie, vendo quão frágil e delicado é o equilíbrio do Kremlin."
Por sua vez, Angelo Segrillo, professor de história da Universidade de São Paulo (USP), disse à reportagem que viu um pouco de "teatro" nas ações do Grupo Wagner. "Prigozhin é meio histriônico. Quando ele quer alguma coisa, ameaça e realiza ações espalhafatosas. Não creio que ele pensasse que pudesse tomar Moscou. O Grupo Wagner não tem condições de enfrentar o imenso Exército russo. Acho que ele fez isso mais para extrair concessões. Mas, errou no cálculo", explicou. O estudioso lembrou que o líder dos mercenários não se opunha a Vladimir Putin. "Pode-se dizer que eram até amigos. Prigozhin foi dono de um restaurante frequentado pelo presidente. Depois, fez negócios com Putin. O problema de Prigozhin era com o ministro da Defesa da Rússia, Serguei Choigu, e com o chefe do Estado-Maior, Valery Gerasimov.
Tensão crescente
Vicente Ferraro Jr. — doutor em Ciência Política pela USP, especialista em política da Rússia e conflitos em ex-repúblicas soviéticas — concorda com Segrillo e pontua que, nos últimos meses, houve uma crescente tensão entre o Grupo Wagner e a cúpula militar russa. "Ela foi motivada principalmente pela carência de munições no front. Prigozhin também reclamava que muitos recursos financeiros direcionados ao grupo acabavam desviados para o Ministério da Defesa pelo comando das Forças Armadas. Outro elemento de desgaste foram as elevadas baixas da Rússia na guerra, que teriam relação com os dois fatores citados. A gota d'água seria um ataque do próprio Exército de Moscou ao Grupo Wagner, algo negado pelo Kremlin", disse ao Correio.
Ainda segundo Ferraro Jr., a mobilização do Grupo Wagner, que começou na sexta-feira, após suposto ataque russo a seu acampamento, na Ucrânia, pode ser percebida como uma tentativa de golpe militar. Ele destacou que golpes militares contam com a "estratégia do primeiro passo". "Uma ala militar inicia o motim e propicia a adesão de outras alas. Isso ocorreu. Havia uma apreensão sobre qual seria o próximo passo e se mais grupos militares apoiariam os homens de Prigozhin." Ele observou que a quase falta de resistência no avanço do Grupo Wagner rumo a Moscou mostra que Prigozhin gozava do respaldo de parte do Exército russo. E considerou sintomática a reação da população de Rostov-On-Don, ao apoiar os mercenários.
Ferraro entende que a legitimidade de Putin foi desgastada. "O grupo de Prigozhin teve um avanço muito rápido, quase não encontrou obstáculos e chegou a se aproximar de Moscou. A reação local militar praticamente inexistiu, e vimos um certo desespero das elites e dos propagandistas do Kremlin", citou. "Esta é a maior crise política da Rússia em 30 anos, desde outubro de 1993, quando o Parlamento, em Moscou, foi bombardeado. A grande incógnita é se Putin respeitará os acordos. Ele não tem uma tradição de diálogo com grupos rebeldes."