Manolis Makaris, cardiologista do Hospital Geral de Kalamata, começou a receber várias fotos de desaparecidos no naufrágio de um barco pesqueiro superlotado de migrantes, na quarta-feira, a cerca de 47 milhas náuticas (ou 87km) da costa do Peloponeso, na Grécia. O envio das imagens aconteceu depois que o médico usou o celular para que sobreviventes entrassem em contato com familiares. Em entrevista exclusiva ao Correio, por telefone, ele confirmou que as vítimas de uma das maiores tragédias da história do Mar Mediterrâneo lhe relataram que 750 pessoas estavam na embarcação.
"A comunicação com essas pessoas foi extremamente difícil. Como falam árabe, tivemos que usar o Google Tradutor. Elas me disseram que havia cerca de 750 pessoas no barco. Um paciente relatou-me que 100 crianças estavam nos deques inferiores, outro citou ao menos 50, além de mulheres. Eles não precisaram o número, porque provavelmente não tinham como saber qual era a situação nos outros compartimentos", disse Makaris.
Até o fechamento desta edição, 78 corpos e 106 migrantes com vida tinham sido retirados do mar. As autoridades da Grécia informaram que nove egípcios foram detidos, suspeitos de tráfico humano. Entre os presos, estão o capitão do barco pesqueiro antigo e superlotado, que virou antes de naufragar. "Não sabemos o que há no porão, (...) mas sabemos que muitos traficantes trancam as pessoas para manter o controle", declarou Ilias Siakantaris, porta-voz do governo da Grécia, ao canal estatal ERT.
"O pesqueiro tinha de 25m a 30m de comprimento. O convés estava lotado e presumimos que o interior também",admitiu, por sua vez,o porta-voz da Guarda Costeira, Nikolaos Alexiou,à mesma emissora. Os sobreviventes são, em sua maioria, da Síria (47), do Egito (43) e do Paquistão (12).
Especialistas e ONGs criticaram de forma contundente a política migratória europeia, intitulada Fortaleza Europa. Eftychia Georgiad, diretora de programas do Comitê Internacional de Resgate (IRC) na Grécia, denunciou "o fracasso da União Europeia (UE) em desenvolver meios legais de imigração". De acordo com ela, a situação "fecha as portas a pessoas que buscam proteção". Yves Pascouau, especialista em temas migratórios, associou os naufrágios a "efeitos das medidas e ações" colocadas em prática desde a crise migratória de 2015-2016 e da "construção de um espaço protegido do resto do mundo". Ele lamentou o fato de que a UE se foca no "controle das fronteiras" e na "expulsão de pessoas em situação irregular".
Segundo Makaris, dos 30 sobreviventes que recebeu no hospital, a maioria não corre risco de morrer. "São casos de pneumonia, infecções respiratórias, hipotermia,rabdomiólise (síndrome clínica que envolve a ruptura do tecido muscular esquelético), além de ingestão de água", contou o médico. "Entre os pacientes, há um garoto de 16 anos com pneumonia moderada."
Fontes portuárias citadas pela agência France-Presse revelaram que o barco partiu da costa do Egito, sem passageiros, e fez uma escala em Tubruk, cidade do leste da Líbia, onde os migrantes embarcaram. Dois navios-patrulha, três helicópteros e nove embarcações vasculham a região, uma das mais profundas do Mediterrâneo, com pontos que chegam a 3.900m. A Organização Internacional para as Migrações (OIM) admitiu "temer que centenas" tenham morrido em "uma das tragédias mais devastadoras no Mediterrâneo".
Por meio de um comunicado, a Frontex (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira) informou que detectou a presença do barco na terça-feira, mas que os passageiros "recusaram a ajuda". Hans Leijtens, chefe da agência, partiu para a Grécia, ontem, a fim de "compreender melhor o que ocorreu desde que a Frontex interveio"."Também estou aqui para demonstrar minha solidariedade e ajudar os colegas gregos, que estão fazendo tudo o possível para salvar vidas."
Imagens divulgadas pela Guarda Costeira mostram um barco de pesca azul em péssimas condições e apinhado de gente, de um extremo a outro, inclusive no teto da cabine de comando. Siakantaris afirmou que o motor da embarcação sofreu uma pane na noite de terça-feira e que o barco foi a pique entre 10 e 15 minutos, no Mar Jônico.
Tima Kurdi — tia de Alan Kurdi, o garoto de 2 anos morto em um naufrágio, em 2015, e cuja foto do corpo na praia tornou-se símbolo da tragédia — foi informada pelo Correio sobre a existência de dezenas de crianças na embarcação. "Essas crianças são inocentes. Por que elas têm que arriscar suas vidas e fazer essa jornada dolorosamente perigosa? Porque têm esperança, e a Europa fracassou com elas. Sinto vergonha", desabafou. "É desumano. A comunidade internacional é responsável. É hora de despertar. Em 2015, líderes mundiais prometeram que a foto de meu sobrinho e a tragédia seriam as últimas."