Durante 40 dias, Lesly Jacobo Bonbaire, 13 anos, guiou os três irmãos — Soleiny Mucutuy, 9; Tien Noriel Ronoque Mucutuy, 5; e Cristin Neriman Ranoque Mucutuy, 1 — pela selva amazônica e os manteve vivos com a pequena quantidade de farinha e de tapioca que encontraram no monomotor Cessna 206. Depois que os alimentos acabaram, os quais pertenciam ao piloto Hernando Murcia, a menina recorreu à floresta para buscar comida. Detalhes do pesadelo enfrentado pelas quatro crianças indígenas da etnia huitoto começaram a ser conhecidos.
Em entrevista ao Correio, Dairo Mucutuy Valencia, tio das crianças, confirmou que Lesly disse aos familiares que a mãe, Magdalena, permaneceu viva por pelo menos quatro dias. "As crianças ficaram ao lado dela. No quarto dia, ela pediu que partissem." Magdalena, o piloto e um funcionário de uma ONG morreram em decorrência de lesões causadas pela queda do avião.
"Lesly relatou-me que ela e os irmãos chegaram a ver as pessoas que participavam das buscas na selva. No entanto, afirmou que o medo os impediu de gritar ou de responder aos chamados", contou Dairo, por telefone. De acordo com o tio, a mais velha dos irmãos disse que o cão farejador Wilson, um pastor belga das Forças Armadas, esteve três dias com as crianças, antes de desaparecer. De acordo com Dairo, os meninos começam a se recuperar e apresentam mais apetite. "As meninas, Cristin e Lesly, são as que menos falam. Não temos buscado fazer muitas perguntas", disse.
Luis Acosta - Membros da Guarda Indígena participam das buscas às crianças, na Amazônia colombiana
Ainda segundo Dairo, Tien é o mais ativo dos irmãos. "Ele tem conversado e desejado caminhar. Ontem (sábado, 10/6), falei com Tien no hospital e eu o cumprimentei: 'Oi, sobrinho!'. Ele respondeu: 'Quero colocar meus sapatos e caminhar, mas me doem os pés'", contou. No sábado, um dia depois do resgate, as crianças clamaram fome e pediram para comer. Ao perguntarem para Tien do que se alimentaram na selva, os familiares se surpreenderam com a resposta. "Ele disse: 'Minha mamãe nos dava 'maraca' (fruto parecido com o cacau) e ovos de tracajá'. Também comeram farinha de mandioca. Não sabemos o motivo da referência à mãe, pois minha irmã está morta. Tien ainda repetia: 'Quero meu avô'", acrescentou o tio-avô.
Para Dairo, o que aconteceu com os sobrinhos é "um exemplo para o mundo". "Como uma menina de 13 anos sustenta os três irmãos durante 40 dias perdidos na selva?", questionou. Também por telefone, Fidencio Valencia, tio-avô das crianças, revelou ao Correio que eles conseguem se sentar e comer por conta própria. "Os médicos lhes deram papéis, para que possam escrever e ocupar o tempo. Eles também tomaram banho. Quero que se recuperem. Depois de algum tempo, vou perguntar-lhes como conseguiram sobreviver na floresta."
Dairo enviou à reportagem as fotos dos quatro sobrinhos no Hospital Militar, em Bogotá, mas não autorizou a divulgação. Em uma das imagens, Cristin aparece com um pijama rosa e um coelho de pelúcia da mesma cor. Lesly, a mais velha, está coberta e recebe soro por meio do pulso esquerdo. Tien veste um pijama azul com estampa do Mickey Mouse e tem um brinquedo sobre o cobertor. Soleiny também recebe soro intravenoso e usa um pijama rosa. Todos estão muito magros.
Resgate
Na tarde deste domingo (11/6), a televisão pública colombiana divulgou um vídeo do momento em que as crianças foram encontradas pelos seis homens da Guarda Indígena (leia entrevista). Nicolás Ordóñez Gomes, um dos integrantes da equipe de busca, relatou que Lesly carregava Cristin e correu até ele, ao vê-lo. "Ela disse: 'Estou com fome'. Um dos dois meninos estava deitado. Ele se levantou e me disse, de forma muito conciente: 'Minha mamãe está morta'. Nós trocamos a palavra por uma mais doce: 'A vovó está procurando por você. Sua família, seu pai, seu tio. Aí ele disse: 'Quero farinha com chouriço'."
Nas imagens, feitas com um celular e borradas pela tevê para não expor as crianças, os irmãos aparecem debilitados. Os socorristas cantam, fumam tabaco (uma planta sagrada para os indígenas) e agradecem com alegria. "Deus nunca nos decepciona quando pedimos com sinceridade. Encontramos as crianças. Bendito seja Deus. A fé nos colocou no caminho que queríamos. Aqui estão as crianças", disse outro resgatador indígena. Em outra cena, Cristin aparece nos braços de um dos homens.
Exército Nacional da Colômbia - Wilson, o pastor belga desaparecido, fotografado após encontrar tesoura deixada pelas crianças na mata
Edwin Manchola, também guarda indígena, descreveu à imprensa colombiana que, ao encontrarem os irmãos, retiraram tabaco, água benta e incenso, para 'livrá-los do mal que carregavam'. "Foi o que fizemos primeiro, por segurança", detalhou. Quarenta dias depois, terminava a Operação Esperança, que mobilizou militares, indígenas da região e helicópteros. As equipes vasculharam um perímetro de 2.656km na selva. Ontem (11/6), prosseguiam as buscas pelo cão Wilson, que farejou pistas deixadas pelas crianças e ficou ao lado deles por três dias.
Exército Nacional da Colômbia - Wilson, o pastor belga desaparecido, fotografado após encontrar tesoura deixada pelas crianças na mata
Luis Acosta - Membros da Guarda Indígena participam das buscas às crianças, na Amazônia colombiana
"A selva nos mandou uma mensagem"
Luis Acosta, coordenador nacional da Guarda Indígena da Colômbia e líder das buscas às crianças na floresta colombiana, fala ao Correio sobre os rituais para entrar na mata e os perigos enfrentados pelos socorristas
Durante 25 dias, 85 indígenas buscaram os quatro irmãos desaparecidos na densa selva da Amazônia colombiana. A equipe foi comandada por Luis Acosta, 49 anos, coordenador nacional da Guarda Indígena da Colômbia. "Eu liderei a operação de resgate com humildade, com toda a palavra, caminhando atrás, com os mais velhos, buscando nos rios e na mata", afirmou ao Correio, por telefone. Ele credita o sucesso das buscas a uma conjunção de saberes ocidentais e tradicionais. De acordo com Acosta, antes de ingressarem na mata, os indígenas — divididos em pelo menos 14 grupos — realizaram rituais com tabaco, yagé (o chá ayahuasca) e coca. O coordenador da Guarda Indígena revelou que seis homens encontraram os quatro irmãos, na tarde de sexta-feira. E admitiu as dificuldades durante as buscas, como as chuvas intensas, serpentes venenosas e o esturro de onças.
Como os indígenas contribuíram com as buscas às crianças?
Tiveram um papel fundamental. As quatro crianças estavam em zonas indígenas, as quais apenas os povos indígenas conhecem, na selva da Amazônia. Enquanto indígenas, temos a uma cosmovisão de pensamentos sobre como se mover na selva. Com esse conhecimento ancestral e territorial que as crianças e os indígenas têm, nós conseguimos — em coordenação com o Exército da Colômbia — o feliz desfecho de encontrá-las com vida. Houve muita esperança e sabedoria. A partilha dos saberes ocidental e tradicional nos levou a essa feliz conclusão.
Quantos indígenas participaram da operação e quantos encontraram os irmãos?
Éramos 85 indígenas. Seis de nossos homens chegaram, primeiro, às crianças e notificaram o Exército da Colômbia. Durante as buscas, nos dividimos em grupos e nos distribuímos por várias regiões. Eu estava em outra região realizando a coordenação.
Que saberes tradicionais os indígenas utilizaram durante os trabalhos de resgate?
Nós realizamos alguns rituais de abertura, cerimônias em que pedíamos a permissão para entrar na selva. Usamos mambe (folhas de coca piladas e misturadas com cinza de embaúba) e tabaco. Alguns povos usaram yagé (ayahuasca, um chá enteógeno), outros fizeram medicinas com a coca ancestral. Houve vários rituais, antes de ingressarmos na mata. O yagé foi usado para limpar o terreno e o espírito, e ver com mais profundidade a selva. Em todo o território da Colômbia, todos os povos indígenas se sentaram em suas malocas e fizeram uma mensagem nacional para ajudar nessa força espiritual em prol das buscas e auxiliar as crianças a resistirem.
Na sua opinião, como os quatro irmãos resistiram por 40 dias?
Os povos indígenas sobreviveram 500 anos... Viveram por 500 anos graças à sabedoria de nossos avós. Aos ensinamentos de nossos avozinhos. Sobre como viver no território onde estamos. Os meninos utilizaram os ensinos transmitidos pelos avós, pelos mais velhos. Eles lhes deram essa ferramenta para que, quando caíssem na selva, pudessem entendê-la, viver dentro dela e não se angustiar. Também para saberem o que comer e não comer na selva, e como se orientarem na floresta, sem caírem em desespero. É um exercício de conhecimento ancestral; a formação ancestral que as crianças tinham sobre a selva lhes permitiu sobreviver. A esperança e a força enviadas por meio da ajuda espiritual também fizeram com que permanecessem vivas.
Que tipos de perigos os indígenas enfrentaram?
Nós enfrentamos chuva intensa, animais e serpentes. À noite, escutávamos o barulho dos gatos-do-mato, que nos assustavam. E ouvimos o esturro de onças. Também tivemos picadas de insetos, com o risco de contrairmos malária ou dengue. Além disso, existiu o risco de nos perdermos na selva e de precisarmos também ser procurados. Alguns militares e indígenas caíram e se feriram. Houve gente com febre e com diarreia. Consseguimos superar, ao usar a medicina tradicional e a ocidental.
Que sentimentos ficam, agora, depois da localização das crianças?
Creio que os quatro irmãos mandaram uma mensagem. A terra e a selva amazônica nos mandaram uma mensagem, dizendo que devemos nos unir para defender a vida, proteger a mãe selva e as crianças. Na Colômbia, as crianças têm sido muito afetadas pelos maus-tratos. A selva está sendo afetada pelas multinacionais, pelas mineradoras. Isso é um chamado para que protejamos a Mãe Terra e as crianças, para que tudo se mantenha em harmonia.
EU ACHO...
"Quando soubemos que o avião tinha desaparecido, foi muito duro. Estávamos perdendo quatro sobrinhos e uma irmã. Estávamos quase que perdendo uma família. Eu assimilava essa dor, mas não podia demonstrá-la às pessoas. Quando tornei a vê-los foi uma alegria. Mas é triste vê-los nesse estado. A última vez que os vi, antes do acidente, estavam com boa saúde. Sentimos alegria e o fim desse peso no coração. Graças a Deus, apareceram."
Dairo Juvenal Mucutuy Valencia, 30 anos, tio materno das quatro crianças