Um milagre também é feito de heróis, de união, de fé, de perseverança e da vontade de sobreviver. Por quatro vezes, a palavra "milagre" foi repetida pelos militares à frente da Operação Esperança, por meio dos radiotransmissores. Foi a senha para anunciar aos integrantes das equipes de busca que as quatro crianças tinham sido encontradas com vida, por volta das 17h desta sexta-feira, 9/6 (19h em Brasília). Durante 40 dias, os irmãos Lesly Jacobo Bonbaire, 13 anos; Soleiny Mucutuy, 9; Tien Noriel Ronoque Mucutuy, 5; e Cristin Neriman Ranoque Mucutuy, 1, estiveram desaparecidos na selva amazônica, após sofrerem um acidente aéreo. O monomotor Cessna 206 em que viajavam caiu a 175km da cidade de San José del Guaviare, às 7h34 de 1º de maio. O piloto Hernando Murcia; a mãe dos meninos, Magdalena Mucutuy; e o diretor de uma ONG, Yetara Herman Hernández; morreram.
Os irmãos foram localizados poucas horas depois que dez soldados e oito indígenas encontraram novas pistas. A angústia, o desespero e a incerteza deram lugar ao alívio para familiares e autoridades. Os pequenos se recuperam no Hospital Militar de Bogotá e "estão fora de perigo", anunciou o ministro da Defesa, Iván Velásquez.
"As crianças estão em processo de hidratação. No geral, o estado de saúde delas é aceitável. De acordo com os informes médicos, estão fora de perigo", esclareceu Velásquez. O titular da Defesa revelou que Tien passou o quinto aniversário na selva. Cristin, a caçula, também fez um ano na mata. Ele elogiou Lesly, a mais velha. "Precisamos reconhecer sua liderança. Foi por ela que os três irmãozinhos puderam sobreviver, com os seus cuidados e o conhecimento da selva." Velásquez agradeceu às comunidades indígenas que participaram do resgate e às forças militares. Cristin requer mais atenção do ponto de vista nutricional.
O major-general Carlos Rincón Arango, médico do Hospital Militar, explicou que os irmãos recebem cuidados de uma equipe multidisciplinar. "Eles estão completando um protocolo de avaliação, com exames clínicos e imagens diagnósticas. Começamos o tratamento de recuperação nutricional e de terapia e apoio psicológico. Estão em condições clínicas, físicas e mentais aceitáveis", disse. De acordo com ele, os quatro apresentam lesões na pele e picadas de insetos. Todos permanecerão hospitalizados por duas ou três semanas.
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro; a primeira-dama, Veronica Alcocer; e a filha Sofia Petro visitaram os pequenos e levaram presentes. "O encontro de saberes: indígenas e militares. O encontro de forças por um bem comum: guarda indígena e as forças militares da Colômbia. O respeito à selva", escreveu no Twitter, ao publicar fotos da passagem pelo Hospital Militar. "Aqui se mostra um caminho diferente para a Colômbia: creio que este é o verdadeiro caminho da paz. Aqui há uma nova Colômbia. Que é de vida, antes de mais nada. O objetivo que nos une é a vida", celebrou.
A Operação Esperança rastreou 2.656km e envolveu soldados e 73 indígenas, além de helicópteros — um deles reproduziu, por meio de alto-falante, a voz de María Fátima Valencia, avó materna dos meninos. Ao longo do tempo, os socorristas encontraram pistas que sugeriam que ao menos uma das crianças estaria viva: tesouras, mamadeira, frutas mordidas, abrigos feitos com folhas. Além de tempestades elétricas frequentes, a selva onde estavam perdidas guarda perigos, como onças, serpentes venenosas, escorpiões e outros animais.
"Sofri muito"
Às 2h15 de sábado, 10/6 (0h15 na Colômbia), o Correio entrevistou, por telefone, María Fátima e o irmão, Fidencio Valencia, enquanto percorriam os 121km entre Villavicencio, no estado de Meta, e a capital. "Foi um milagre. Estou muito contente", desabafou a avó, uma indígena huitoto. O luto e o medo abriram espaço para a alegria em reverem as crianças. "Sofri muito. Sepultei minha filha e, quatro dias depois, comecei a orar pelos netos. Vou recuperar o que morreu em mim". Ela relatou que recebeu a notícia sobre o resgate às 17h30 de sexta-feira (hora local). "Meu filho telefonou e me disse: 'Nós os encontramos'. Depois, minha sobrinha Olga. Por fim, um morador da nossa comunidade disse que estava com eles no helicóptero."
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Horas depois, a tia-avô tornou a falar com a reportagem, desta vez diante das crianças, no Hospital Militar. O reencontro tinha ocorrido às 4h (6h em Brasília). "Eles estão muito mal. Não os deixam comer. Agora estou olhando para eles. A bebezinha e os meninos... Apenas Lesly falou comigo. Ela afirmou que o avião tinha caído", comentou. Segundo María Fátima, a sabedoria indígena ajudou os netos. "Eles viviam de pepa de monte (tipo de semente). Nós, indígenas, sabemos o que é pepa de monte e o que não presta. Toda a água da vida matou-lhes a sede. Essas coisinhas que eles comiam por aí", disse. "Eles viram a mamãe morta e reuniram forças."
Fidencio, 47, disse ao Correio sentir "alegria" e "satisfação". "Dou graças a Deus por todas as pessoas que me apoiaram na busca e nas orações. Quero agradecer ao presidente e aos militares", relatou. Ele garante ter uma explicação para os netos estarem vivos. "Foi a parte espiritual que trabalhamos. Como tio-avô, trabalhei muito espiritualmente para que o conhecimento indígena fosse válido para eles." Segundo Fidencio, a alegria, a paz e a tranquilidade foram essenciais para as crianças.
"Devo agradecer a Deus por estarem com vida. Eu lhes dei alegria. Fiquei contente, vendo os meninos e as meninas emocionados. As meninas, que são tão guerreiras... As crianças ficaram caminhando pela selva. Nada lhes aconteceu. Não se encontraram com nenhum animal. Nada, nada", desabafou Fidencio.
De acordo com o tio-avô, os quatro netos estão "muito acabados". "Pouco a pouco perguntamos algumas coisinhas para eles, mas precisamos deixar que descansem. Estão assustados, por seus corpos e por todos os ruídos da selva. Quase nada falaram", comentou Valencia.
A ex-senadora Ingrid Betancourt, mantida refém pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) entre 2002 e 2008 na selva de Guaviare, classificou como "muito extraordinário o fato de as crianças terem sobrevivido por 40 dias". "A ação dos militares foi decisiva. Mas, restam perguntas: como percorreram os 5km que as separavam do avião? A distância é enorme, avançar na selva é muito difícil, principalmente quando não se tem facões ou botas. Receberam ajuda de comunidades indígenas? Tiveram acesso a mantimentos lançados de helicópteros?", questionou ao Correio. Ingrid lembrou que a selva reúne animais ferozes, excesso ou falta de água, árvores que despencam, buracos, "muros" de vegetais, rios caudalosos e doenças, como leishmaniose e malária.