Gaivotas povoam o céu enquanto atravesso quilômetros de águas resplandecentes em algum ponto entre o Oceano Atlântico e o Golfo do México.
O céu funde-se com o mar azul-petróleo, que passa a ser turquesa quando sua profundidade diminui, perto dos canais entre as ilhas de coral e calcário.
Uma imensidão azul se estende até onde a vista alcança.
Enquanto ajusto meus óculos de sol, observo um movimento súbito pelo canto dos olhos: um golfinho-nariz-de-garrafa.
O golfinho estava com seus amigos e o grupo logo fez um balé aquático, saltando em arcos graciosos antes de mergulhar de volta nas ondas.
Barcos de pesca navegavam lentamente à minha volta e tive vontade de lançar uma linha, mas teria sido difícil enquanto dirigia meu carro a 80 km/h pela autoestrada.
Viajar de Miami até a ilha de Key West, na Flórida (EUA), nem sempre foi um passeio despreocupado como é hoje.
No início do século 20, a única forma de fazer o trajeto até o ponto mais ao sul dos Estados Unidos era uma viagem de barco que levava um dia inteiro, dependendo do clima e das marés.
Mas, graças a uma impressionante maravilha da engenharia – a Overseas Highway, com 182 km de extensão na ponta sul dos Estados Unidos, atravessando 44 ilhas tropicais com 42 pontes – eu pareço estar flutuando ao longo de um colar de ilhas arenosas e manguezais, enquanto dirijo até o ponto onde a América do Norte e o Caribe se encontram.
Sonho ferroviário
A Overseas Highway, na verdade, começou como a Over-Sea Railroad. A ferrovia foi criada pelo visionário empreendedor Henry Morrison Flagler (1830-1913), conhecido como "o Pai da Flórida Moderna".
Em 1870, Flagler tornou-se um dos fundadores da Standard Oil Company, ao lado do magnata dos negócios John D. Rockefeller (1839-1937). A empresa passaria a ser uma das maiores e mais poderosas do mundo no início do século 20.
Depois de visitar a Flórida e reconhecer o potencial turístico do "Estado do Brilho do Sol", Flagler investiu grande parte do seu dinheiro na região, construindo resorts de luxo que transformaram um dos Estados mais pobres dos Estados Unidos em um paraíso de inverno para os viajantes da Era de Ouro americana, vindos do nordeste do país.
Mas faltava uma forma de fazer com que os hóspedes chegassem aos luxuosos resorts de Flagler, que ficavam em lugares remotos.
Para isso, em 1885, ele conectou uma série de ferrovias dispersas ao longo da costa atlântica da Flórida, ligando Jacksonville, no extremo norte do Estado, a Miami, perto da ponta sul.
Miami teria sido o fim da linha. Mas, quando os Estados Unidos começaram a construir o Canal do Panamá, em 1904, Flagler percebeu que havia um imenso potencial em Key West – o pedaço de terra norte-americano mais perto do Canal e o porto mais profundo do sudeste dos Estados Unidos.
Na época, o local já era um centro agitado e florescente, graças às indústrias do charuto, extração de esponjas marinhas e pesca. Na verdade, Key West foi a maior cidade da Flórida até 1900.
Mas a localização remota da ilha dificultava e encarecia a movimentação de mercadorias para o norte do Estado.
Flagler decidiu então ampliar a ferrovia em 251 km para o sul, até Key West. A maior parte da distância seria coberta sobre mar aberto, atravessando o arquipélago de Flórida Keys.
A construção do chamado ramal de Key West foi considerada impossível por muitos de seus contemporâneos. Sua visão foi apelidada de "Loucura de Flagler" pelos críticos.
Entre 1905 e 1912, três furacões atingiram o local da construção, matando mais de 100 trabalhadores. Mas o incansável Flagler seguiu adiante.
A construção levou sete anos e custou US$ 50 milhões (US$ 1,56 bilhão em valores de hoje, ou cerca de R$ 7,8 bilhões).
Quatro mil imigrantes afro-americanos, europeus e das Bahamas precisaram enfrentar os jacarés, cobras e escorpiões, em severas condições de trabalho, para construir a ferrovia.
A estrada de ferro foi finalmente completada em 1912 e considerada a "oitava maravilha do mundo".
Na viagem inaugural, uma locomotiva a vapor chegou a Key West, trazendo Flagler de Miami. Com 82 anos de idade, ele saltou do seu vagão de luxo particular e teria sussurrado para um amigo: "Posso morrer feliz. Meu sonho foi realizado".
O vagão de luxo usado por Flagler encontra-se atualmente em exposição no Museu Flagler, em Palm Beach, na Flórida.
"O fato de que Flagler financiou [mais de US$ 30 milhões] do próprio bolso naquela época foi bastante notável", segundo o historiador da Flórida Brad Bertelli.
"Jeff Bezos ou Bill Gates poderiam ter feito isso hoje em dia. Elon Musk, com sua SpaceX, talvez seja a melhor comparação moderna."
A ferrovia operou até 1935, quando o furacão mais mortal em um século varreu quilômetros de trilhos.
Em vez de ser reconstruída, a obra-prima de Flagler entrou em uma nova fase para receber o recém-descoberto amor dos americanos pelos automóveis.
Em 1938, o governo dos Estados Unidos decidiu construir uma das mais longas rodovias sobre a água do mundo, utilizando as pontes aparentemente indestrutíveis de Flagler, que conseguiam suportar ventos de até 320 km/h.
Operários cobriram os trilhos com asfalto para receber os carros e a Overseas Highway transformou para sempre a distante Florida Keys, para que pudesse se tornar o próspero destino turístico que é hoje.
A viagem e as atrações do caminho
Mais de um século depois da inauguração da ferrovia, 20 das 42 pontes originais ainda transportam viajantes de Miami para Key West.
A viagem pode ser feita em menos de quatro horas, mas fazer paradas pelo caminho é parte da diversão. Uma série de paradas fascinantes e pouco exploradas ajuda os visitantes a apreciar melhor esta maravilha da engenharia e seus impactos duradouros sobre o arquipélago.
Localizada a 111 km ao sul de Miami, Key Largo é a ilha mais ao norte de Florida Keys e a primeira grande parada do trajeto.
Jacarés, cobras e outras criaturas que vivem na água podem ter apavorado os operários de Flagler, mas, atualmente, os viajantes vêm a Key Largo (autoproclamada "capital mundial do mergulho") para maravilhar-se com a sua abundante vida marinha.
O Santuário Marinho Nacional de Florida Keys e o Parque Estadual dos Recifes de Coral John Pennekamp atraem mergulhadores dispostos a explorar o único recife de coral vivo da América do Norte.
As ervas marinhas oferecem um habitat fundamental para os peixes, peixes-boi e tartarugas-marinhas. Mas a principal atração é o Cristo do Abismo – uma estátua de bronze submersa de Jesus Cristo com 2,74 metros de altura que vem atraindo visitantes que nadam em torno dos seus braços abertos desde 1965.
Depois que você se secar, siga até a comunidade de Islamorada, a meio caminho entre Miami e Key West. Lá ficava uma das estações da Over-Sea Railroad.
Em Islamorada, fica o Centro de História e Descoberta de Keys, onde você pode assistir a um documentário de 35 minutos apresentando a construção da ferrovia e seus muitos obstáculos.
O museu também exibe artefatos da era de ouro dos trens, incluindo louça dos vagões-restaurantes e um menu original da época que oferecia filé de lombo a US$ 1,60 (cerca de R$ 8).
Continuamos a viagem. Entre 1908 e 1912, cerca de 400 trabalhadores moravam em um acampamento em Pigeon Key, uma minúscula ilha de coral a 56 km ao sul de Islamorada. Eles construíram a parte mais difícil da ferrovia: a famosa Ponte das Sete Milhas (popularmente, a "Old Seven", em inglês) – 11 km ligando as ilhas centrais às do sul de Florida Keys.
Em 1909, o engenheiro civil William J. Krome (1876-1929) recebeu a desafiadora tarefa de cruzar 11 km de mar aberto.
As equipes de construção trabalharam 24 horas por dia, instalando mais de 700 pilares de sustentação no meio do oceano, às vezes cerca de nove metros abaixo do nível do mar, para construir a ponte mais longa da ferrovia.
Eles foram auxiliados por mergulhadores, que ajudaram a criar pedestais de concreto submarinos para suportar o peso da linha férrea.
Os restos do antigo acampamento de construção podem ser visitados atravessando de trenzinho a velha ponte, da cidade de Marathon até Pigeon Key.
O trecho tem 3,5 km e é a única parte acessível da ponte original. Ele foi reaberto em janeiro de 2022, depois de uma reforma que levou cinco anos e custou US$ 44 milhões (cerca de R$ 220 milhões).
Fechada ao tráfego (exceto pelo trenzinho), a ponte que antes se deteriorava agora é uma pista segura para bicicletas e patins, 20 metros acima da água cristalina do mar, ou para observar a vida marinha, como tartarugas e tubarões-lixa.
Atualmente, apenas quatro moradores permanentes residem em Pigeon Key. A ilha, com dois hectares de superfície, é agora um Marco Histórico Nacional dos Estados Unidos. Lá, utiliza-se principalmente energia solar.
Pigeon Key também abriga um museu que oferece visitas guiadas a diversas construções que antes abrigavam trabalhadores e conta como era o dia a dia das equipes que construíram a Ponte das Sete Milhas.
Chegando ao extremo sul
Os viajantes que hoje percorrem toda a extensão da Overseas Highway sabem que a jornada termina quando avistam o Marco Zero da rodovia US-1, em Key West.
A boia preta e branca marca o ponto mais ao sul dos Estados Unidos, o que significa que os visitantes estão agora mais próximos de Cuba (145 km de distância, ao sul) do que de Miami (212 km ao norte).
Aqui, muitos turistas se dirigem rapidamente à rua principal da cidade, a Duval Street, ou ao Museu Casa de Ernest Hemingway. Mas vale a pena dar uma olhada no Museu Sails to Rails ("De Velas para Trilhos") – pequeno, mas repleto de informações.
O museu conta os 500 anos de história de Key West e mostra como esta ilha tropical de 18 km² evoluiu de um paraíso de piratas para tornar-se um centro comercial e um destino turístico famoso pela sua atmosfera descontraída.
Os artefatos da era da ferrovia incluem o vagão-pagador – uma espécie de banco sobre rodas para fornecer os salários dos funcionários da ferrovia. A exibição intitulada Oitava Maravilha do Mundo Moderno mostra a evolução da ferrovia e explica como cada obstáculo foi superado, forçando até o limite a tecnologia disponível no início do século 20.
"Se eu fosse destacar o evento mais importante da história de Florida Keys, sem dúvida seria a construção da Over-Sea Railroad de [Henry M.] Flagler", afirma o escritor e historiador de Florida Keys Dori Convertito.
"Com sua visão, dedicação, empreendedorismo e antevisão do futuro, Florida Keys foi conectada pela primeira vez ao continente americano. As vantagens comerciais e de deslocamento para os moradores e visitantes da ilha são inegáveis", segundo ele.
"Ela influenciou para sempre a trajetória da economia de Florida Keys e abriu as portas para a indústria do turismo que temos hoje em dia."
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.