Kiev e Moscou trocaram acusações, após a explosão que destruiu a usina hidrelétrica de Kakhovka, no sul da Ucrânia. Por volta das 2h50 da madrugada desta terça-feira (6/6) (20h50 de segunda-feira, 5/6, em Brasília), a detonação fez com que a barragem de concreto cedesse. A força da água inundou vilarejos e cidades, arrastou casas e carros e forçou a remoção de milhares de moradores. Vídeos divulgados nas redes sociais mostravam uma parede de água explodindo contra imóveis, além de residências submersas. O zoológico Kazkova Dibrova, em Nova Kakhovka, ficou tomado pela enchente; todos os animais morreram.
Em um primeiro momento, não havia informações sobre o número de mortos. No entanto, John Kirby, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, disse que os Estados Unidos monitoram os impactos. "Nós sabemos que há vítimas, inclusive, provavelmente, muitas mortes", comentou. Ele antecipou que os EUA "não podem dizer, de forma conclusiva, o que aconteceu neste momento".
"A Rússia detonou uma bomba de destruição ambiental em massa. Este é o maior desastre ambiental causado pelo homem a atingir a Europa em décadas. A Rússia é o mais perigoso terrorista no mundo", declarou o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. De acordo com ele, forças de Moscou controlavam a usina hidrelétrica e a represa por mais de um ano. "É fisicamente impossível explodi-la de alguma forma do lado de fora, com um bombardeio. Ela foi minada pelos invasores russos, e eles a explodiram", denunciou. A água da represa de Kakhovka era utilizada para resfriar os reatores da usina nuclear de Zaporizhzhia, situada 150km subindo o Rio Dnipro. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) anunciou que "não há perigo imediato" e que mantém especialistas na central para monitorarem a situação.
O ministro da Defesa russo, Sergey Shoigu, rejeitou as acusações e culpou as tropas da Ucrânia pela "encenação de um ataque terrorista diversivo", depois que as forças de Moscou frustraram as tentativas de Kiev de lançar a contraofensiva. Citado pela agência de notícias Tass, Shoigu disse que soldados ucranianos tomaram posições defensivas na margem direita do Rio Dnipro e reiterou que o ataque contra Kakhovka teria sido obra de Kiev para impedir "operações ofensivas do Exército russo" na região de Kherson. Ainda segundo o ministro, o incidente na represa foi "um ato de larga escala de sabotagem planejado com antecedência pelo regime de Kiev". A represa de Khakovka estava sob controle da Rússia desde o início do ano passado, pouco após a invasão.
Em nota, o Ministério das Relações Exteriores russo pediu à comunidade internacional "que condene as ações criminosas das autoridades ucranianas, que são cada vez mais desumanas e representam uma grave ameaça à segurança regional e global". Moscou avisou que pretende levar a questão ao Conselho de Segurança da ONU e à Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
Em entrevista ao Correio, Anatoliy Tkach — encarregado de negócios da Embaixada da Ucrânia em Brasília — denunciou um "ataque terrorista" e um "crime de guerra". "Mais de 80 assentamentos estão na zona de possível inundação. No território controlado pela Ucrânia, são 16 assentamentos em que 17.130 pessoas precisam ser retiradas. No território não controlado pela Ucrânia, na margem esquerda do Rio Dnipro, a situação é mais grave. Ali, são 20 assentamentos e cerca de 25 mil pessoas sujeitas à retirada", explicou. Ele garantiu que as forças russas não estão removendo os civis.
"Crime em massa"
Tkach frisou que os crimes de guerra são aqueles cometidos pelos militares contra a população civil e a infraestrutura civil. "Foi, evidentemente, um crime em massa contra a população civil. Isso trará consequências catastróficas para a população não somente do sul da Ucrânia, mas também para os outros países. A explosão da barragem trará consequências ecológicas e econômicas. Também representa uma ameaça de radicação e de insegurança alimentar."
O encarregado de negócios ucraniano defendeu a responsabilização do presidente russo, Vladimir Putin. "Cada criminoso tem que ser punido. Isso se aplica tanto aos soldados russos que cometeram crimes de guerra no território como para os responsáveis pelas ordens para a realização desses crimes, o que corresponde à liderança militar e política da Rússia", disse, pouco depois, durante uma coletiva na Embaixada da Ucrânia.
Tkach revelou ser contrário à ocupação, por parte da Rússia, de um assento no Conselho de Segurança da ONU. "A carta das Nações Unidas em nenhum momento diz que a Rússia é integrante do Conselho de Segurança. Se em algum momento Moscou quisesse fazer o procedimento formal de adesão, não seria possível, pois a Carta prevê que podem formar parte quaisquer nações, desde que sejam pacíficas."
"A Rússia terá que pagar pelos crimes de guerra cometidos na Ucrânia. A destruição da barragem, um ataque ultrajante à infraestrutura civil, põe em risco milhares de pessoas da região de Kherson. A Europa está mobilizando apoio por meio do nosso mecanismo de proteção civil", escreveu no Twitter Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia.
Ao visitar Kherson, o coronel e deputado ucraniano Roman Kostenko — secretário do Comitê Parlamentar sobre Segurança Nacional, Defesa e Inteligência — falou ao Correio sobre a situação. "Estamos vendo a cidade ser inundada. O nível da água subiu de forma significativa. Vários bairros estão ilhados. Casas, carros e árvores de assentamentos mais ao norte, e que sofreram consequências devastadoras, flutuam, rio abaixo", relatou.
Kostenko classifica o ataque como "outro passo desumano dado por um país terrorista". "É um desastre provocado pelo homem. Os efeitos disso se mostram terríveis", advertiu. De acordo com ele, o funcionamento normal da usina nuclear de Zaporizhzhia está em perigo. "O mundo não deveria perdoar a Rússia. Todos os países civilizados devem fazer esforços máximos para punir Moscou."
Também em Kherson, o jornalista Sergiy Nikitenko contou à reportagem que moradores de centenas de casas foram retirados. "Não há pânico. A cidade não está debaixo d'água, mas há áreas inundadas. O volume do Rio Dnipro está aumentando. Veremos qual será a situação pela manhã", disse, às 22h de ontem (16h em Brasília).
Olexiy Haran, professor de política comparativa da Universidade Nacional de Kiev-Mohyla, afirmou acreditar que o temor de uma contraofensiva forçou os russos a explodirem a barragem. "Eles tentaram impedir a contraofensiva de Kiev a partir da margem direita do Rio Dnipro", avaliou. O estudioso aposta que o atentado terá "enormes consequências, como danos ecológicos e terras inutilizadas para a agricultura". "Isso levará à fome."