Jornal Correio Braziliense

África

Confronto militar no Sudão faz mais de 100 mil civis fugirem do país

Combates entre paramilitares das Forças de Apoio Rápido e do Exército se intensificam. ONU adverte para o risco de "catástrofe total". Previsto para durar sete dias, novo cessar-fogo começa a vigorar amanhã. Bombardeios atingem hospitais

A sudanesa Hind Mohamed, 34 anos, decidiu abandonar Cartum e o país natal na última sexta-feira. Hoje, encontra-se refugiada na Etiopia. A gerente de projetos é um dos 100 mil sudaneses que fugiram da guerra entre os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (FAR) e o Exército do Sudão. "Eu deixei minha  terra porque estava com medo de que as coisas piorassem. Eu e minha família corríamos grave perigo. Vimos casas sendo pulverizadas pelas bombas e pessoas atingidas por tiros dentro de suas casas. Nosso primeiro plano era sair de Cartum e irmos a um estado mais seguro. Então, viajamos até Wad Madani, no estado de Al Jazirah", contou ao Correio.

Antes que os combates chegassem à região, Hind; os três filhos, um deles bebê; a mãe idosa; duas irmãs e duas sobrinhas partiram, de carro, até a Etiópia. "Pensamos  em ir até o Egito, mas o caminho para a Etiópia é mais curto. Não tivemos opção, porque o aeroporto de Cartum está destruído e fora de serviço. Não foi uma viagem fácil, mas acho que tomamos a decisão correta."

As FAR e o Exército acordaram um novo cessar-fogo, com duração de uma semana, a partir de amanhã. No entanto, nenhuma das tréguas anunciadas até hoje foi cumprida pelas partes em combate. A Organização das Nações Unidas (ONU) advertiu que a situação no Sudão caminha para uma "catástrofe total". O país é um dos mais pobres do mundo e sofria os efeitos de um conflito sangrento em Darfur, no leste. 

"Nós calculamos que mais de 100 mil pessoas fugiram para os países vizinhos", disse Olga Sarrada, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). Outros 334 mil sudaneses foram deslocados internamente para outras regiões. O Acnur estima que o número de refugiados chegará a 800 mil. Desde o início da guerra, em 15 de abril, mais de 500 pessoas morreram nos combates e pelo menos 4 mil ficaram feridas.

A situação humanitária tem se deteriorado; hospitais da região norte de Cartum foram alvos de bombardeios. Apenas 16% dos estabelecimentos de saúde na capital funcionam em plena capacidade. O Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) da ONU advertiu que o programa de ajuda para o Sudão, em 2023, conta com apenas 14% do financiamento previsto. São necessários US$ 1,5 bilhão (ou R$ 7,5 bilhões) para fazer frente à crise. 

"Terra sem lei"

Ibrahim Alhaj Alduma, 30 anos, pesquisador, morador de Cartum, conseguiu uma rota de fuga para Nairóbi, com uma delegação do Quênia, e aguarda a data da partida. "A capital não é nada segura. É uma terra sem lei. As armas estão por todos os lugares. Qualquer um pode pará-lo e saquear tudo o que desejar. Todas as delegacias de polícia permanecem fechadas, desde o início dos combates", relatou à reportagem.

De acordo com ele, Cartum é palco de "vários combates" e bombardeios aéreos contra o mercado central, a região sul da capital e a localidade de Ombada — parte da cidade de Omdurman. "Os confrontos prosseguiam mesmo durante o cessar-fogo. Eu vi quiosques destruídos de pequenos comerciantes e os corpos de três comerciantes de chá." As mulheres foram mortas pelo bombardeio ao Hospital do Nilo Oriental. Uma criança também morreu no ataque.

Alduma disse esperar que o Exército sudanês ponha fim à guerra com uma vitória rápida ou uma negociação que garanta a fusão das FAR e de todos os grupos paramilitares em um único exército nacional. "Defendo um contingente que proteja a Constituição e a transformação democrática no Sudão, impedindo militares de exercerem cargos políticos", comentou. 

Preocupação entre embaixadores

 

O Conselho dos Embaixadores Árabes no Brasil, sediado em Brasília, afirmou acompanhar "com grande preocupação e atenção os infelizes desdobramentos" no Sudão e destacou que os confrontos "afetaram o processo de estabilidade e desenvolvimento" no país africano. "O Conselho aprecia a aceitação pelas partes conflitantes de uma trégua humanitária para permitir que os cidadãos sudaneses e residentes tenham acesso às suas necessidades básicas e necessárias de alimentos e tratamento", disse o comunicado. O grupo também reafirma as recomendações emitidas pelo Conselho da Liga dos Estados Árabes, no nível de delegados permanentes, em 16 de abril, com focona cessação imediata de todos os confrontos armados, na ênfase à importância de um rápido retorno ao caminho pacífico para a resolução da crise sudanesa, e no compromisso da Liga dos Estados Árabes de envidar todos os esforços para ajudar o "irmão Sudão" a encerrar essa crise de maneira duradoura.

 

Eu acho...

Arquivo pessoal - Hind Mohamed, gerente de projetos em Cartum (Sudão)

"Não tenho grandes esperanças em relação ao cessar-fogo. As partes envolvidas no conflito firmaram vários acordos antes. De repente, mudam de ideia e tudo volta à estaca zero. Eu sinto como se estivesse vivendo um pesadelo. Ainda não consigo acreditar que isso esteja acontecendo em meu país."

Hind Mohamed, 34 anos, gerente de projetos, moradora de Cartum, hoje refugiada na Etiópia