ESTADOS UNIDOS

Como caso Allan dos Santos pode frear extradição de suposto espião russo aos EUA

O caso envolvendo a extradição de Allan dos Santos vem colocando as autoridades brasileiras e norte-americanas em lados opostos desde 2021

BBC
Leandro Prazeres - Da BBC News Brasil em Brasília
postado em 25/05/2023 07:43 / atualizado em 25/05/2023 07:43
 (crédito: Montagem/Agência Senado/Redes Sociais)
(crédito: Montagem/Agência Senado/Redes Sociais)

A suposta falta de cooperação dos Estados Unidos em processos de extradição como o do blogueiro Allan dos Santos faz com que a tendência hoje, no governo brasileiro, seja não enviar para os EUA o suposto espião russo Sergey Vladimirovich Cherkasov.

A informação foi repassada à BBC News Brasil por fonte com conhecimento do caso em condição de anonimato.

Em abril, os EUA pediram a extradição de Cherkasov, que está preso no Brasil e é apontado pelo FBI (a polícia federal norte-americana) como um agente de inteligência a serviço do governo russo que se passava por brasileiro.

Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) enviou uma nota afirmando que não se pronunciaria sobre o caso, argumentando que "não comenta casos concretos em andamento".

O Departamento de Justiça dos Estados Unidos informou que não se manifestaria sobre o caso.

O Ministério das Relações Exteriores (MRE), a Presidência da República e o Departamentos de Estado dos Estados Unidos também foram consultados pela BBC News Brasil, mas não enviaram resposta.

O entrelaçamento dos dois casos acontece por conta de uma sequência de eventos.

De um lado, os norte-americanos querem que Cherkasov seja extraditado para os Estados Unidos e não para a Rússia. Do outro, o governo brasileiro tenta, há quase dois anos e sem sucesso, que Allan dos Santos seja extraditado para o Brasil.

O caso envolvendo a extradição de Allan dos Santos vem colocando as autoridades brasileiras e norte-americanas em lados opostos desde 2021.

Naquele ano, o governo brasileiro solicitou a extradição de Allan dos Santos aos Estados Unidos. Em novembro de 2022, o governo brasileiro cancelou o passaporte de Allan dos Santos.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou a prisão preventiva e a extradição de Santos, em 2021, por sua suposta participação em uma organização criminosa com objetivo de desestabilizar as instituições democráticas no Brasil. O blogueiro respondeu, na ocasião, que "as ações do Alexandre de Moraes configuram as ações de um psicopata e de um tirano". (Veja mais detalhes do caso abaixo)

Após quase dois anos sem que o processo de extradição avançasse, o atual governo, liderado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), retomou conversas com as autoridades norte-americanas sobre o caso de Allan dos Santos.

No entendimento de fontes do governo brasileiro, porém, os diálogos não foram satisfatórios e, até agora, Allan dos Santos não foi extraditado ou deportado.

Pessoas familiarizadas com o caso de Allan dos Santos ouvidas pela BBC News Brasil em caráter reservado argumentam que as autoridades norte-americanas têm dito aos seus colegas brasileiros que parte dos crimes atribuídos ao blogueiro pelas autoridades brasileiras não constam do tratado de extradição entre Brasil e Estados Unidos, firmado em 1965.

Esse tratado seria uma espécie de "guia" para as extradições entre os dois países. Por isso, os norte-americanos não estariam dispostos a realizar a extradição do brasileiro.

A explicação não teria convencido as autoridades brasileiras uma vez que, caso os norte-americanos não quisessem extraditar Allan dos Santos, eles poderiam, em tese, deportá-lo. O argumento brasileiro é de que, como seu passaporte foi cancelado, Allan dos Santos estaria nos Estados Unidos na condição de imigrante ilegal.

Questionado sobre o assunto, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos disse, por meio de nota, que não comentaria o episódio. O Departamento de Estado, equivalente a um ministério das Relações Exteriores, não enviou resposta.

Allan dos Santos
Roque de Sá/Agência Senado
Allan dos Santos vive nos Estados Unidos desde 2020. Em 2019, ele foi um dos depoentes da CPMI das Fake News, no Congresso Nacional

Blogueiro e apoiador de Jair Bolsonaro

Allan dos Santos ficou conhecido nos últimos seis anos como uma das principais vozes da direita conservadora no Brasil.

Ele também ganhou notoriedade ao se tornar um dos principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

A partir de 2020, ele passou a ser alvo de investigações em pelo menos dois inquéritos sobre sua suposta participação em milícias digitais e na disseminação de ataques a autoridades como o ministro do STF Alexandre de Moraes.

Entre os crimes atribuídos a ele, segundo as investigações, estariam a participação e promoção de uma organização criminosa cujos objetivos seriam: atacar integrantes de instituições públicas, desacreditar o processo eleitoral, reforçar a polarização, gerar animosidade na sociedade brasileira e promover o descrédito dos poderes da República.

Ainda de acordo com as investigações, Santos seria um dos líderes dessa organização.

O blogueiro vem negando as acusações feitas contra ele e, em manifestações em suas redes sociais, diz ser vítima de perseguição política.

Em meio ao avanço das investigações, em 2020, ele se mudou para os Estados Unidos.

Procurada pela BBC News Brasil, a defesa de Allan dos Santos enviou uma nota. O advogado dele, Renor Oliver Filho, diz que o jornalista é alvo de perseguição promovida pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, que determinou sua prisão e solicitou sua extradição.

"Diante da implacável perseguição do ministro Alexandre de Moraes, o jornalista Allan dos Santos se viu obrigado a enfrentar dificuldades para prover o sustento de sua família, composta por sua esposa e três filhos pequenos", diz um trecho da nota.

A defesa também afirma que Allan dos Santos não foi condenado por nenhum crime junto ao STF e que tenta, há mais de um ano, ter acesso aos autos dos processos em que ele figura como investigado.

Russo suspeito de espionagem

Do outro lado desse tabuleiro jurídico-diplomático, está Sergey Cherkasov.

Ele está preso no Brasil desde 2022, quando retornou ao país após ser impedido de entrar na Holanda. Lá, ele tentou entrar no país fazendo-se passar por brasileiro para atuar como estagiário no Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga crimes de guerra. A tentativa aconteceu dois meses depois de a Rússia invadir a Ucrânia.

Cherkasov cumpre pena de 15 anos de prisão em uma penitenciária federal em Brasília pelo uso de documentos falsos e é investigado por lavagem de dinheiro. Documentos obtidos pela BBC News Brasil mostram que, para a Polícia Federal, há indícios de que Cherkasov atuava como um agente de inteligência russo.

Ainda não há indícios de que ele teria espionado instituições, pessoas ou empresas no Brasil. No país, ele admitiu ter usado documentos falsos e se passar por um brasileiro chamado Victor Müller Ferreira.

Cherkasov, no entanto, negou atuar como espião. Em uma audiência no STF, ele se recusou a responder quando foi perguntado sobre o tema. Ele ainda responde a um inquérito por lavagem de dinheiro.

As suspeitas levantadas pelos norte-americanos, até agora, são de que ele usava a sua personalidade falsa brasileira para se infiltrar em instituições de ensino norte-americanas e europeias para obter informações de interesse russo.

Nos Estados Unidos, Cherkasov é acusado de ter atuado como agente de inteligência sem autorização em território norte-americano e ter coletado informações de forma ilegal.

Segundo a acusação, ele faria parte de um programa de espionagem russo chamado "Ilegais", considerado a elite dos serviços de inteligência do país. O programa consiste no recrutamento e treinamento de jovens russos e no envio deles para diversos países.

Para não despertar a atenção de possíveis inimigos, eles assumem uma personalidade totalmente diferente e vivem como se fossem nativos.

Historicamente, a Rússia não admite o uso desse tipo de espião.

A Embaixada da Rússia no Brasil tem, reiteradamente, se negado a comentar o caso.

Em agosto do ano passado, antes do pedido dos EUA, o governo brasileiro recebeu um pedido de extradição para Cherkasov enviado pelo governo da Rússia. No pedido, a Rússia não admitiu que ele era um espião. A alegação é de que Cherkasov é acusado de crimes como tráfico de drogas em seu país. Ao longo do processo, o russo declarou que quer ser entregue ao país.

O relator do caso no STF, Luiz Edson Fachin, autorizou a entrega de Cherkasov aos russos, mas condicionou o procedimento ao fim de investigações conduzidas pela Polícia Federal sobre suspeitas de lavagem de dinheiro possivelmente associadas às suas atividades de inteligência no Brasil.

No Brasil, a decisão final sobre extraditar ou não uma pessoa é atribuição do Poder Executivo. Por isso, a definição sobre Cherkasov possivelmente recairá sobre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Extradição e política internacional

Cesare Battiti
Getty Images
Condenado no seu país natal por terrorismo, Cesare Battisti driblou por mais de trinta anos a Justiça italiana

Para o professor de Direito Penal Internacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Rui Dissenha, condicionar uma extradição a fatores políticos é uma prática comum em outros países.

"Esse tipo de consideração diplomática é bastante comum. Na maior parte dos países, a extradição tem duas fases. Uma jurídica e outra, política. Isso acontece porque as extradições são procedimentos que podem influenciar a política externa de um país e, por isso, em parte dos casos, quem tem a decisão final é o governo e não o Judiciário", afirmou.

Para o advogado e também professor de Direito Internacional da UFPR Frederico Glitz, é pouco provável que o governo brasileiro deixaria explícito que uma eventual recusa em extraditar Cherkasov aos Estados Unidos teria como motivo a demora na extradição de Allan dos Santos.

"A legislação brasileira prevê esse grau de discricionariedade ao Poder Executivo. Dificilmente o governo daria essa justificativa aos Estados Unidos formalmente porque poderia ensejar algum questionamento judicial", afirmou Glitz.

Ele cita, no entanto, que esse tipo de disputa política pode ter consequências nas relações do Brasil com os Estados Unidos. Ele menciona como exemplo a extradição do militante italiano de esquerda Cesare Battisti, condenado por homicídio na Itália e que fugiu para o Brasil.

Em 2010, o STF determinou que ele poderia ser extraditado para o país europeu, mas, após a decisão, o governo do então presidente Lula não autorizou sua entrega ao país. Battisti só foi entregue à Itália em 2019, após fugir do Brasil e ser localizado na Bolívia.

"A decisão de não entregá-lo à Itália teve repercussões nas relações com o país. Quando o Brasil pediu a extradição de Henrique Pizzolato, envolvido no caso do Mensalão, os italianos dificultaram o processo", afirmou o advogado.

O professor Rui Dissenha rebate eventuais críticas de que condicionar a extradição de Cherkasov à de Allan dos Santos poderia ser interpretada como uma "chantagem".

"Eu não classificaria como chantagem. Trata-se de um espaço de negociação entre os países. Não necessariamente essa negociação vai acontecer de forma aberta."

Contexto conturbado

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva
Reuters
Em reunião do G7, no Japão, Lula condenou a invasão Rússia à Ucrânia, mas disse que nem Putin e nem Zelensky querem discutir a paz

A indefinição em torno das extradições de Cherkasov e Allan dos Santos acontece em um momento marcado por dúvidas quanto ao posicionamento do governo brasileiro em relação aos Estados Unidos.

O principal ponto de discordância vem sendo a guerra na Ucrânia, conflito em que os Estados Unidos dão suporte aos ucranianos contra a Rússia.

Lula diz que sua posição é de neutralidade e que ele tenta convencer países não envolvidos no conflito para criar condições de debater o processo de paz.

Nos últimos meses, no entanto, o presidente Lula tem dado declarações que chamaram atenção da comunidade internacional ao responsabilizar tanto o presidente russo, Vladimir Putin, quanto o presidente Volodymyr Zelensky pela guerra.

Em visita à China, em abril, Lula chegou a dizer que os Estados Unidos deveriam parar de "incentivar" a guerra na Ucrânia.

Na semana passada, durante participação na reunião do G7 (grupo das sete economias mais industrializadas do mundo), no Japão, Lula alterou o tom do discurso, condenou a invasão russa, mas voltou a dizer que, no momento, nem Putin e nem Zelensky estariam interessados em discutir a paz na região.

"Sinto que nem Putin nem Zelensky estão falando em paz neste momento", disse.

Lula também criticou o discurso do presidente dos EUA, Joe Biden, durante a cúpula do G7. Segundo o brasileiro, o líder dos Estados Unidos defendeu uma postura de confronto com a Rússia e que isso não "ajuda" na resolução da guerra.

"O discurso do Biden é de que tem que ir para cima do Putin até ele se render, pagar tudo o que estragou. Esse discurso não ajuda, na minha opinião", disse.

Ainda durante sua passagem pelo Japão, Lula chegou a receber um pedido de Zelensky para uma reunião bilateral. Segundo o governo brasileiro, teriam sido abertas três possibilidades de horário para o encontro com o líder ucraniano, mas Zelensky não foi à reunião com o presidente brasileiro.

Ao falar sobre o assunto, Lula disse que não faltarão oportunidades para se encontrar com o presidente da Ucrânia, mas afirmou que ficou chateado com a situação.

"Eu não fiquei decepcionado, eu fiquei chateado porque eu gostaria de encontrar com ele e discutir o assunto, por isso que eu marquei com ele aqui no hotel. Apenas isso. Veja, o Zelensky é maior de idade, ele sabe o que faz", afirmou Lula.

O governo ucraniano, por sua vez, afirmou que o encontro não foi possível devido a um "conflito de agendas".

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