Chile

Extrema direita lidera Constituinte e impõe derrota ao governo Boric

Vitória do ultraconservador Partido Republicano na escolha dos conselheiros responsáveis pela redação da Carta Magna expõe fragilidade do presidente Gabriel Boric

Rodrigo Craveiro
postado em 09/05/2023 06:00
Kast, fundador do Partido Republicano:
Kast, fundador do Partido Republicano: "Não nos escolheram somente pelas nossas ideias, mas também pelo nosso compromisso e coerência" - (crédito: Javier Torres/AFP)

O futuro do Chile está sob controle da direita e da extrema direita, que terão a tarefa de comandar a redação da nova Constituição. O ultraconservador Partido Republicano, liderado por José Antonio Kast, obteve 22 cadeiras do Conselho Constitucional, após vencer as eleições do último domingo (7/5), com 35% dos votos. A direita tradicional, com 21%, escolheu 11 conselheiros. O resultado mostra uma guinada política no país — em 16 de maio de 2021, uma coalizão formada por independentes e pela esquerda havia saído vitoriosa na última eleição que culminou no texto da Carta Magna, rejeitado por 62% dos votos durante referendo em 4 de setembro do ano passado. 

O triunfo da extrema direita representa uma derrota acachapante para Gabriel Boric. Em um ano e meio de governo, o presidente esquerdista não apenas perdeu o controle da criação da Constituição, como foi obrigado a fazer duas reformas ministeriais — em setembro de 2022 e em março passado. 

Na primeira manifestação pública sobre o resultado da eleição do Conselho Constitucional, Boric procurou demonstrar sobriedade. "O povo do Chile expressou, uma vez  mais, suas posições de maneira democrática, elegendo conselheiras e conselheiros constituintes, aos quais convido a atuarem com sabedoria e temperança, na redação de um texto que interprete a grande maioria do país", escreveu no Twitter.

Do ponto de vista prático, o presidente se reuniu com os ministros do Comitê Político, em Huechuraba, uma das 32 comunas de Santiago do Chile. Ao fim do encontro, ficou decidido que o governo apresentará uma proposta de aumento do salário mínimo e não descarta uma aproximação à Chile Vamos, uma coalizão política de centro, centro direita e direita. Uma estratégia para conter o ímpeto do Partido Republicano e se antecipar ao risco de travamento da agenda do governo. 

Revanche

"Não nos escolheram somente pelas nossas ideias, mas também pelo nosso compromisso e coerência. E por nossa ligação com os problemas do dia a dia. Triunfaram as ideias de senso comum", declarou à imprensa Kast. O resultado nas urnas teve sabor de revanche para o líder do Partido Republicano, que foi derrotado por Boric no segundo turno da eleição presidencial de dezembro de 2021.

Em seu perfil no Twitter, ele alertou que "os Republicanos nada têm a celebrar". "Nosso país não está bem e há muito trabalho a ser feito. Mas, há esperança. Temos que agradecer (ao povo) pela confiança. O nosso compromisso, a partir de hoje, é dar tudo de nós para servirmos ao Chile e aos chilenos."

A agência France-Presse (AFP) informou que o conselho eleito anteontem terá a incumbência de revisar a ajustar um projeto previamente criado por especialistas e dotado de 12 princípios essenciais imutáveis. Os artigos que consagram o Chile como uma economia de mercado com participação estatal e privada, por exemplo, não poderão ser modificados. As sessões do novo Conselho Constitucional, com início em junho de 2023, terão um prazo de seis meses para a entrega de um projeto de Carta Política. Além da consolidação de poder dos ultraconservadores, partidos tradicionais da esquerda chilena foram alijados do processo. 

Professor de ciência política da Universidad de Santiago de Chile, Marcelo Mella afirmou ao Correio que o triunfo eleitoral de domingo confere à extrema direita e à direita liberal moderada a possibilidade de aprovarem propostas de artigos para a elaboração de um novo texto constitucional, que será votado em plebiscito em 17 de dezembro de 2023. "É um cenário inverso, oposto ao que ocorreu durante o primeiro processo constituinte, quando a coalizão de Boric — integrada pela Frente Ampla e pelo Partido Comunista — teve a oportunidade de vetar e de aprovar as propostas", explicou. "O resultado da votação estabelece uma correlação de forças entre os partidos políticos, que se mostra relevante para o início da corrida presidencial, a três anos da eleição. O desempenho do Partido Republicano abre a possibilidade de que Evelyn Matthei, prefeita de Providencia, comande amplos setores da direita."

Ainda segundo Mella, a vitória da extrema direita vai além do efeito imediato na conformação do órgão da Constituinte. "Ela ditará o início do processo de negociação para a lista parlamentar e as eleições presidenciais de 2025", observou. O estudioso lembrou que o triunfo ultraconservador ocorre em meio a uma percepção de crise da sociedade chilena, mais intensa em setores de vulnerabilidade social e estimulada pela pandemia da covid-19 e pelos efeitos de alteração dos órgãos públicos após os distúrbios sociais, em 2019. "A votação do Partido Republicano foi muito forte nos setores mais pobres do Chile", afirmou o professor. 

Enfraquecimento

De acordo com o chileno Ricardo Mena, oficial de Programas para Chile e Cone Sul do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA Internacional), o resultado do último domingo (7/5) enfraquece a margem de ação do governo Boric para o restante do processo da Constituinte. Ele salientou que a campanha do Partido Republicano para eleger os conselheiros baseou-se no ataque a problemas contingentes que, necessariamente, não têm a ver com a Constituição.

"Mas, os ultraconservadores trouxeram para a mesa o baixo desempenho do governo Boric em temas que preocupam os chilenos. A partir de agora, o governo terá mais peso na mochila, pois terá que procurar melhorar a sintonia fina como o  povo, o que implica abdicar de vários assuntos da sua agenda que não necessariamente contribuem para isso", afirmou Mena ao Correio. Ele citou os temas da imigração e da segurança como entraves para Boric construir uma estratégia. 

Mena admitiu que esperava um resultado favorável para a direita, mas reconheceu que os números da ultradireita surpreenderam a todos. Na opinião dele, a vitória do Partido Republicano deposita um cenário de mais incerteza a um processo de muita contestação. "O Conselho Constitucional ficará totalmente sob controle de um setor que se opunha terminantemente à mudança na Carta Magna", disse. 

Conselheira do Instituto Nacional dos Direitos Humanos do Chile e ex-candidata ao Conselho Constitucional, Constanza Valdés teme o futuro da proteção aos direitos humanos. Ela lembrou à reportagem que os ultraconservadores estarão envolvidos na redação de uma Constituição que jamais desejavam. "O Chile enfrenta um momento complexo, pois o populismo conservador tem ganhado cada vez mais espaço em todos os âmbitos da sociedade. Preocupa-me que a cultura dos direitos humanos retroceda e que o negacionismo encontre amparo institucional. Parece que a extrema direita ressurge com força, lamentavelmente."

Claudia Heiss, diretora do curso de Ciências Políticas da Universidade do Chile, advertiu à AFP que o Partido Republicano terá a premissa de "não precisar negociar com ninguém". "Eles podem escrever a Constituição que desejarem e terão o poder de veto a qualquer modificação", comentou. O Partido Republicano, entre outras ideologias, se opõe ao aborto e adota um viés anti-imigração. 

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    Simpatizantes do Partido Republicano celebram, em Santiago do Chile Foto: Javier Torres/AFP
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