Estados Unidos

"Meu filho nada fez", diz pai de jovem baleado na cabeça por tocar campainha

Pai de Ralph Yarl, o garoto norte-americano de 16 anos atingido por dois tiros ao tocar a campainha em endereço errado, em Kansas City (Missouri), fala ao Correio, aponta viés racista, cobra justiça e se diz surpreso com a recuperação do adolescente

Rodrigo Craveiro
postado em 20/04/2023 06:00
 (crédito: Paul Yarl)
(crédito: Paul Yarl)

"A história de sobrevivência do meu filho é um milagre. Ele está melhor do que o esperado. A rápida alta hospitalar foi um milagre, assim como as doações recebidas", disse ao Correio, por telefone, o engenheiro Paul Kaunty Yarl, 49 anos, pai de Paul Ralph Yarl. Há exatamente uma semana, o garoto negro, de 16 anos, foi buscar os irmãos gêmeos caçulas, Alex e Adrien, de 12, na casa de colegas de escola brancos, por volta das 22h. Ralph errou o endereço, em Kansas City (Missouri), e tocou a campainha da casa errada. As ruas tinham nomes praticamente iguais: as crianças estavam na Northeast 115th Terrace e Ralph foi até a Northeast 115th Street.

Armado com um revólver calibre .32, Andrew Lester, 84, abriu a porta e disparou duas vezes: uma bala atingiu a cabeça de Ralph, acima do olho esquerdo; outra feriu-lhe o braço direito. O atirador chegou a ser detido e liberado, sem acusações. Na terça-feira, entregou-se à polícia, pagou fiança de US$ 200 mil (cerca de R$ 998 mil) e retornou para casa.

Paul não tem dúvidas de que o atentado contra o filho teve viés racista. "Por ser um garoto negro, por ter ocorrido à noite e por Ralph ter ido à casa de um estranho que não esperava por ele e atirou... Então, com certeza, há um viés racista, não apenas no que diz respeito ao atirador, como também à lei. O atirador foi liberado", explicou. "O atirador é idoso, tem 84 anos e, provavelmente, é um racista há muito tempo." O adolescente se recupera na casa da mãe, a enfermeira Cleopatra Nagbe, e tem surpreendido os médicos. Consegue se sentar, pronunciar poucas palavras e caminhar lentamente. Ainda não se sabe se ficará com sequelas permanentes.

Na noite de segunda-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, chegou a falar ao telefone com Ralph. "Nenhum pai deveria se preocupar com a possibilidade de seu filho levar um tiro após tocar a campainha errada. Temos que manter a luta contra a violência armada. Ralph, nós o veremos no Salão Oval quando estiver se sentindo melhor", tuitou o democrata. 

Faith Spoonmore, tia do rapaz, abriu uma campanha de arrecadação de doações no site GoFundMe para ajudar na recuperação. Até a noite de ontem, 88.200 pessoas haviam doado US$ 3,3 milhões (cerca de R$ 16,7 milhões). Paul Yarl se emociona ao falar do filho. "Ele é um bom garoto, nunca se meteu em confusão e nada fez para merecer ser baleado na cabeça e, especialmente, duas vezes", disse.

Como o senhor avalia a recuperação de Ralph?

A recuperação de Ralph começou. Ele está na casa de sua mãe. Ela é uma enfermeira registrada e tirou uma folga do trabalho para ser a cuidadora de nosso filho. Está fazendo um grande trabalho. Ralph será submetido a exames no neurologista para checar suas funções cerebrais e avaliar se houve, ou não, um dano permanente. Estamos ansiosos para a marcação dos exames. Ralph consegue se sentar e caminhar lentamente. Também pode falar umas poucas palavras. Temos buscado limitar suas atividades cerebrais para que possa se curar. É claro que ele está dormindo bastante. Estamos dando espaço para que ele consiga descansar, dormir. Mas, sua recuperação está em progresso agora. 

Como ocorreu  o crime, no último dia 13, e quem socorreu seu filho?

Eu não estava lá naquela noite e tudo o que sei partiu de conversas com testemunhas. Alguns vizinhos também contaram o que viram para rádios e jornais. O que sei é que, sangrando, Ralph deixou a casa onde foi baleado e se dirigiu até as residências de vizinhos. Ele bateu nas portas e pediu socorro. Uma das vizinhas ligou para a polícia e perguntou se ela poderia ajudar meu filho. Os policiais a aconselharam a não fazê-lo e a ficar dentro de casa. Argumentaram que, se ela saísse para socorrer Ralph, o atirador ainda poderia estar lá e disparar contra a mulher. Então, Ralph ficou lá fora, à própria sorte, ferido, sangrando e implorando por ajuda. 

O senhor vê um viés racista nesse crime? Ele foi baleado por ser negro?

Sim, vejo um viés racista no que aconteceu com meu filho. Eu nunca esperava que isso pudesse ocorrer. Ralph é o filho mais excelente que um pai poderia ter. Desde que ele nasceu, nunca recebi um telefonema de ninguém, nem mesmo da escola, dizendo que Ralph estava em apuros. Nem mesmo uma ligação de emergência. Então, eu fiquei chocado ao receber uma mensagem da mãe de Ralph na qual ela dizia estarem no setor de emergência hospitalar. Por ser um garoto negro, por ter ocorrido à noite e por Ralph ter ido à casa de um estranho que não esperava por ele e atirou... Então, com certeza há um viés racista, não apenas no que diz respeito ao atirador, como também à lei. O atirador foi liberado. Se Ralph fosse o atirador e tivesse atingido um homem branco, meu filho estaria na cadeia pelo tempo que durasse a investigação. Provavelmente, os policiais simplesmente não o deixariam sair à rua. Sim, foi racismo. 

Se pudesse estar frente a frente com o homem que atirou em seu filho, o que diria a ele?

Se eu pudesse falar com o atirador, eu lhe diria para que se declarasse culpado. Mas o atirador entrou na sala do tribunal e se declarou inocente. Eu aguardo que o caso seja levado à Corte. Aguardo as evidências apresentadas pelos advogados ao júri. E que eles façam a coisa certa: condenem o atirador. Não havia razão para que Ralph fosse baleado. Mesmo que Ralph representasse uma ameaça para a casa, o atirador poderia facilmente ter chamado a polícia. Ele poderia ter telefonado para o 911. Não deveria ter pego a sua arma e disparado para tentar matar Ralph. O atirador tem que se declarar culpado. Eu discordo da declaração de inocência, mas ele tem o direito de fazê-lo. Estarei envolvido durante todo o processo para que o veredicto de culpa seja alcançado. 

O senhor acredita que o crime do qual Ralph foi vítima deveria ser produto de intenso debate nos EUA sobre o racismo?

Eu gostaria de me distanciar da política ao abordar o caso, como os temas do racismo e da violência das armas. Quero me focar em Ralph e em seu bem-estar. Mas, para responder à questão sobre se o que ocorreu com Ralph deveria incitar um debate sobre racismo... Não sei... O atirador é idoso, tem 84 anos e, provavelmente, é um racista há muito tempo. Na área em que ele vive não há negros. Talvez ele tenha aprendido a acreditar que todos os negros são criminosos. É óbvio que isso é um pensamento racista. Se podemos chamá-lo de racista? É possível. Mas, eu não quero me aprofundar nesse debate. Eu tenho a crença de que o racismo desempenhou um papel no comportamento do atirador em relação a Ralph. 

De que modo vê a arrecadação de US$ 3,3 milhões para ajudar o seu filho, por meio do site Go Fund Me? 

O fato de as doações para o meu filho terem ultrapassado os US$ 3 milhões é algo chocante para mim. Assim como é chocante o fato de meu filho ter sido baleado. Assim como são chocantes todo o amor e as orações que nossa família tem recebido. Antes do atentado contra Ralph, a nossa família era formada apenas por pessoas comuns. Não havia exposição midiática, não havia nenhuma história ali. Sentimos gratidão por essa quantidade de doações. Como pai de Ralph, eu tenho que me preocupar para que ele receba uma boa educação escolar. Ele irá para uma boa escola, assim que estiver pronto. Meu único foco é que esse fundo seja usado para que ele tenha uma educação completa. Esse fundo ajudará em outras coisas. A mãe de Ralph e outros familiares provavelmente terão uma ideia sobre como usar o fundo. O meu foco, minha alegria e minha gratidão estão no fato de que as doações ajudarão Ralph em seu processo de cura, nas despesas médicas e em sua educação. Com esse fundo, ele deverá ter os melhores médicos. 

Na condição de pai de Ralph, como o senhor está lidando com as emoções?

O meu primeiro filho tem o meu nome: Paul Ralph Yarl. A possibilidade de perdê-lo seria chocante para mim. Ele tem tanto potencial para ser um bom cidadão! Para ser um jovem maravilhoso neste mundo. Ele é um bom garoto, nunca se meteu em confusão e nada fez para merecer ser baleado na cabeça e, especialmente, duas vezes. Ele seria a última pessoa que alguém gostaria de matar. Estou tão confuso, triste e sofrido. Qualquer pai teria as mesmas emoções. 

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