Certa vez, por deveres do ofício, este repórter acompanhava uma sessão na vetusta Academia Paulista de Letras, no Largo do Arouche, centro de São Paulo.
Era princípio de março e o encontro dos acadêmicos, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, trazia histórias protagonizadas por escritoras.
A um dado momento, Lygia Fagundes Telles (1918-2022) pediu a palavra e proclamou um inflamado discurso. Sua revolta era contra "a internet". Não por nenhuma idiossincrasia, mas pelo fato de que ali, ela constatava, havia muita gente atribuindo a autoria de "frases bonitinhas" à sua grande amiga, Clarice Lispector (1920-1977).
"E Clarice não era de escrever frases ‘bonitinhas’", disse Telles, enaltecendo o gigantismo e a profundidade literária da colega que "assina" milhares de posts de qualidade questionável nas redes sociais.
Se Facebook e afins contribuíram para a propagação de citações falsamente atribuídas a personalidades, não é de hoje que esse tipo de falseio existe — pode ser encontrado até em velhos livros de história.
A seguir, a BBC News Brasil contextualiza oito frases que se tornaram muito famosas — mas que não podem ser entendidas como verdade.
"Se eu não fora imperador, quisera ser mestre-escola. Nada conheço tão nobre como dirigir jovens inteligências, preparar os homens do futuro"
Mestre-escola é como eram chamados os professores do antigo curso primário, ou seja, os encarregados da alfabetização e da formação inicial dos alunos.
E a frase é atribuída a Dom Pedro II (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil. E geralmente aparece no sentido de reconhecer as virtudes humanas do monarca. Até aí tudo bem. O problema é que, ao contrário do que se afirma, esta frase não aparece em nenhuma das linhas dos diários do imperador.
"Todo mundo diz que ele escreveu isso no diário, mas não existe em nenhuma parte", afirma à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, biógrafo de diversos personagens da monarquia brasileira, inclusive dos dois imperadores.
De acordo com Rezzutti, a menção mais parecida com esta é quando ele diz que era um homem "nascido para se consagrar às letras e às ciências, mais do que a ocupar posição política".
"E se ele tivesse de optar por alguma coisa, preferiria ser presidente da República ou ministro a ser imperador, porque, no entendimento dele, isso lhe daria mais tempo para estudar e dedicar-se ao que realmente gostava", explica.
"Isso de ser mestre-escola, dizem que ele teria falado na França e que o Barão do Rio Branco [o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912)] anotou", acrescenta o pesquisador. "Mas Dom Pedro mesmo nunca deixou isso registrado em lugar nenhum."
"Eu não concordo com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo"
Pois é, a frase acima pode representar muito bem a visão do filósofo iluminista francês Voltaire (1694-1778). Pena que nunca foi dita por ele.
Conforme afirmam os historiadores Paul F. Boller Jr. e John H. George no livro They Never Said It: A Book of Fake Quotes, Misquotes and Misleading Attributions, essa que virou a máxima do direito da livre expressão teria sido uma invenção da escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall (1868-1956), em seu livro Os Amigos de Voltaire, de 1906, uma biografia do filósofo.
Em 1935, a própria Hall foi questionada a respeito. "Eu nunca tive a intenção de afirmar que Voltaire teria usado exatamente essas palavras e ficaria muito surpresa se essa frase fosse encontrada em algum de seus trabalhos", respondeu a biógrafa.
"Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto. Digam ao povo que fico!"
Atire o primeiro livro de história do Brasil quem nunca leu esta frase. Pois segundo historiadores contemporâneos, esta declaração atribuída a Dom Pedro I (1798-1834) em 9 de janeiro de 1822, quando ele declarou que não retornaria a Portugal, dando um passo importante no processo de emancipação política do Brasil, foi uma criação posterior, numa ideia de consolidação da historiografia nacional. Passou para os livros de História como o emblema do "Dia do Fico".
"O que foi registrado em ata é um texto muito maior que, a grosso modo, poderia ser resumido a isso. Mas ele mesmo nunca teria pronunciado essa frase em nenhum momento", diz Rezzutti, à reportagem.
Conforme ata da Câmara do Rio, onde ocorreu o ato, o que o então príncipe do Brasil teria declarado foi: "Convencido de que a presença de minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido de que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias."
"Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus"
Está na Bíblia em três dos quatro evangelhos: Marcos, considerado o mais antigo deles, Mateus e Lucas.
A frase teria sido a resposta de Jesus quando lhe questionaram se era lícito pagar os impostos aos dominadores romanos. E até hoje é interpretada pelos cristãos como uma justificativa sobre a necessidade de respeitar as regras e as autoridades terrenas.
Entretanto, para o historiador André Leonardo Chevitarese, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele, provavelmente não foi exatamente essa expressão a utilizada por Jesus.
Isto porque há citações semelhantes em evangelhos apócrifos, como o de Tomé e o de Egerton, e uma análise mais minuciosa faz com que os pesquisadores entendam que se tratou de uma criação posterior.
"Em Egerton, esse dito circulou de maneira independente, com um outro contexto, o que pode sugerir que a história contida em Marcos possa não ser original, mas, sim, criação do próprio evangelista", explica Chevitarese, à reportagem da BBC News Brasil.
De qualquer forma, mesmo aparecendo em narrativas distintas, a mensagem em si seria verdadeira. "O núcleo central da história parece ser no seu todo autêntico, isto é, a orientação sobre pagar ou não impostos às autoridades", diz o historiador.
"O que implica dizer que Jesus esteve às voltas com essa questão, ou com essa armadilha", acrescenta.
"Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade"
Aqui a culpa é atribuída à tecnologia. E o próprio astronauta Neil Armstrong (1930-2012) chegou a dar explicações em entrevistas, mas o erro já estava espalhado de tal forma que não teve jeito: ficou assim para a história a primeira declaração de um ser humano ao pisar na lua.
O que acontece é que o sentido da frase, tal e qual acabou entrando para a história, compromete a ideia de contraste planejada por seu autor, Armstrong. Ele contrastava a humanidade coletiva com a façanha de um único indivíduo.
Ele afirma que teria dito "Um pequeno passo para um homem" (ressaltando o sentido individual solitário), e não para "o homem" — que, nesta acepção, parece ter o mesmo sentido de humanidade. Segundo o astronauta diria depois, o mal-entendido foi devido à estática da transmissão.
"Se não têm pão, que comam brioches"
Segundo a versão amplamente conhecida, a rainha Maria Antonieta (1755-1793), quando informada que o povo francês passava fome e não tinha nem sequer pão, teria dito esta frase insensível.
Pois tudo indica que seja uma invenção, criada para reforçar a fama negativa da monarca frente à população daquela época. O historiador Jacques Barzun (1907-2012) certa vez afirmou que essa história — ou variações dela — circulavam pela Europa como uma velha anedota muito anterior ao próprio nascimento de Maria Antonieta.
Tudo indica que a frase tenha se eternizado graças ao livro As Confissões, do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
No sexto volume da obra autobiográfica, Rousseau relata, em determinado momento, que queria pão para acompanhar um pouco de vinho.
"Finalmente, me recordei da história de uma grande princesa a quem foi dito que os camponeses não tinham pão, e que ela respondeu: ‘que comam brioche’."
Ele não menciona o nome da tal nobre. Mas nem poderia ser Antonieta, já que embora As Confissões só tenham sido publicadas em 1782 (depois da morte do autor), os textos foram escritos nos anos 1760, quando a futura rainha da França ainda era uma criança.
"Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes"
Isaac Newton (1641-1727), certo? Até é verdade que o grande físico inglês, que entrou para a história como aquele que descobriu a gravidade, escreveu essa sentença modesta. Mas não foi uma ideia original sua.
Conforme apontam os historiadores Boller e George, Newton usou a frase em uma carta a seu colega cientista Robert Hook (1635-1703).
Acontece que a mesma ideia aparecia no livro A Anatomia da Melancolia, publicado antes do nascimento de Newton pelo cientista inglês Robert Burton (1577-1640). E o pai da teoria da gravidade conhecia o trabalho de Burton.
"Pigmeus apoiados sobre ombros de gigantes veem mais do que os próprios gigantes", era a frase original.
Que nem era tão original. Segundo os autores de They Never Said, há construções semelhantes tanto em obras do século 12 quanto em textos do século 6. Ou seja: como a própria frase diz, foram levas de autores se apoiando em levas de gigantes anteriores…
"O Estado sou eu"
A história é que o então jovem Luís 14 (1638-1715), do alto do seu absolutismo, teria proferido esta frase.
Segundo o livro They Never Said, a narrativa é de que isso teria ocorrido quando ele entrou no Parlamento de Paris, interrompendo um debate que lá ocorria.
Contudo, embora a declaração ajude os estudantes de Ensino Médio a memorizarem os preceitos do absolutismo francês, não há nada que indique que ela tenha ocorrido de fato.
"Não há evidência que ele tenha alguma vez feito isso, mas ele certamente acreditava nas palavras que lhe foram atribuídas", pontuam os historiadores Boller e George.