Na noite de ontem, a fachada da sede da Prefeitura de Bordeaux (sudoeste da França) — um prédio de 245 anos — ardia em chamas, enquanto protestos ocorriam em Paris e em 200 cidades. As maiores manifestações populares desde 1968 mobilizaram pelo menos 1 milhão de pessoas e aumentaram a pressão contra a reforma da Previdência defendida pelo presidente Emmanuel Macron. Por meio de decreto, o chefe de Estado impôs o adiamento da idade da aposentadoria de 62 para 64 anos até 2030 e antecipou para 2027 a exigência de contribuir durante 43 anos, e não 42 como atualmente, como premissa para se ter direito à aposentadoria integral.
O ministro do Interior, Gérard Darmanin, anunciou que o nono dia de revolta deixou 80 detidos e 123 policiais feridos. Em grande medida as passeatas transcorreram de forma pacífica. No entanto, além de Bordeaux, houve confrontos entre forças de segurança e manifestantes em Paris, além de incidentes em cidades como Nantes (oeste) e Toulouse (sudoeste). O movimento de oposição às mudanças nas aposentadorias obteve reforço de uma greve dos aeroportos, escolas e refinarias de petróleo.
Philippe Martinez, líder do sindicato CGT, advertiu que Macron jogou "um tanque de gasolina no fogo". Por sua vez, Laurent Berger, chefe do CFDT, pediu à população que se focasse em "ações não violentas", ante o temor de as organizações trabalhistas perderem o apoio da opinião pública. "A responsabilidade da situação explosiva não recai nas organizações sindicais, mas no governo", advertiram os sindicatos, ao convocarem uma nova onda de mobilizações para a próxima terça-feira. O Ministério do Interior e o CGT estimam que entre 1,089 milhão e 3,5 milhões de pessoas participaram dos atos de ontem — Paris registrou um recorde, com entre 119 mil e 800 mil.
Morador de Paris, o comerciante Louis (ele não quis revelar o sobrenome), 28 anos, disse ao Correio que decidiu abandonar as ruas, no início da noite, porque a polícia perseguia manifestantes. "Os agentes espancaram as pessoas de modo aleatório", denunciou. "O ambiente era muito bom, com a presença de uma grande multidão, mas os policiais tentaram barrar o avanço dos protestos."
Louis afirmou ser contrário à reforma da Previdência. "É um retrocesso no progresso social que fizemos. Especialmente porque Macron presenteou os grandes empresários com regalias tributárias", desabafou. "Muitos impostos foram removidos durante o seu governo, e o orçamento dedicado às forças armadas também é imenso." Também em Paris, a fonoaudióloga Lauren Briens, 61, decidiu sair às ruas depois de uma entrevista que Macron deu às emissoras TF1 e France 2, na quarta-feira.
Na ocasião, o presidente disse que a reforma é "necessária", classificou os manifestantes de "sediciosos" e comparou os protestos aos atos golpistas de 6 de janeiro de 2021, em Washington, e de 8 de janeiro passado, em Brasília. "Estou muito chateada, nos trataram como crianças", reclamou Briens. Na entrevista de anteontem, Macron disse que assumia a "impopularidade" da reforma e anunciou que ela deve começar a vigorar "até o fim do ano", pelo "interesse geral".
"Raiva"
Historiador e especialista em movimentos das minorias, Christophe Bourseiller afirmou ao Correio que os franceses são muito ligados às formas democráticas. "Eles não apoiam uma imposição da reforma previdenciária por parte do governo, que evitou a votação na Assembleia Nacional (Parlamento). O uso do Artigo 49.3 está na raiz da raiva social. O que era um movimento de protesto tornou-se manifestação de crise social em transformação", explicou.
Ainda de acordo com Bourseiller, os franceses não compreendem que Macron se recusa a ouvir o veredicto das ruas. "Hoje, na França, existe uma raiva sem precedentes. Certamente, não estamos no nível de maio de 1968. As empresas privadas não participam da greve. Mas, neste momento, há um sentimento de insurreição", admitiu o estudioso. "Se o presidente quiser acalmar as coisas, não tem outra solução que não seja submeter sua reforma à votação."