Ucrânia

Xi Jinping e Putin: muita conversa e nenhum sinal de paz

Ao receber Xi Jinping, Vladimir Putin reconhece o plano chinês como possível base para um cessar-fogo, mas descarta uma trégua imediata. Líderes reforçam aliança contra o Ocidente e alertam para o risco de confronto nuclear

Documentos de cooperação econômica; um acordo sobre o projeto de um gasoduto siberiano para fornecer gás russo à China, via Mongólia; um debate em torno de um pacto de defesa envolvendo Estados Unidos, Reino Unido e Austrália; e a preocupação comum com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Durante o segundo dia de reunião com Xi Jinping, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, admitiu que o plano de paz de 12 pontos elaborado por Pequim poderia servir de base para interromper a guerra na Ucrânia. No entanto, advertiu que a iniciativa somente poderá ser levada adiante "quando o Ocidente e Kiev estiverem prontos". Em um dos comunicados conjuntos, Xi e Putin alertaram sobre o risco de uma guerra nuclear e instaram as potências atômicas a não colocarem suas armas fora de seus territórios. 

"As partes reiteram que não pode haver vencedores em uma guerra nuclear, e ela jamais deve ser desencadeada", afirma a declaração conjunta de China e Rússia. Também ontem, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, alertou que "faltam cada vez menos passos" antes de uma "potencial colisão nuclear" entre Moscou e o Ocidente. O próprio Putin ameaçou uma "resposta", caso o Reino Unido envie à Ucrânia munições com urânio empobrecido. "Hoje soubemos que o Reino Unido (anunciou) não apenas a entrega de tanques à Ucrânia, mas também de mísseis com urânio empobrecido (...). Se isso ocorrer, a Rússia se verá obrigada a responder, avisou. "Parece que o Ocidente realmente decidiu combater a Rússia até o último ucraniano, não com palavras, mas com atos."

Enquanto Putin e Xi reforçaram a aliança contra potências ocidentais, o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, desembarcou na Ucrânia e mostrou indignação ao visitar a cidade de Bucha, símbolo das atrocidades da ocupação russa. Depois, reuniu-se com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no Palácio Mariinsky, em Kiev.

"É muito importante quando lideranças mundiais demonstram coragem visitando a Ucrânia, apesar de todos os riscos, e mostram respeito pelo nosso povo, o qual luta não apenas pela nossa independência, mas também pela preservação e pelo funcionamento das normas e da vida civilizada", disse Zelensky, em vídeo divulgado pelo Twitter. "Nossas conversas com o senhor Kishida foram bem produtivas. Essa visita ocorre no momento em que o Japão ocupa a presidência do G7, o grupo dos sete Estados democráticos." O presidente ucraniano relatou que debateu com o japonês temas como segurança, política, sanções econômicas e questões humanitárias. 

Yun Sun, codiretora do Programa Leste da Ásia e diretor do Programa China do think tank Stimson Center (em Washington D.C.), afirmou ao Correio que uma guerra nuclear não parece provável em um futuro próximo. "Não é como se a Rússia estivesse ficando sem opções de armas. Ela poderia usar bombas termobáricas", explicou. Esse armamento, também conhecido como bomba a vácuo, suga o oxigênio circundante do ar para gerar uma explosão de alta temperatura, o que potencializa a destruição. 

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Ceticismo

Para a especialista, a importância da visita de Xi a Moscou está no apoio da China à Rússia, quase 13 meses depois do início da guerra. "Isso é um tipo de aval internacional que os russos têm buscado", pontuou. Sun vê argumentos razoáveis contra e a favor do fim da guerra na Ucrânia, sob o ponto de vista da China. "A questão é que Pequim não conseguirá fazer o conflito parar. A oportunidade não está madura. Não haverá um acordo entre Xi e Putin sobre um cessar-fogo", advertiu. 

Sun vê a declaração de Putin de que o plano de paz de Xi Jinping poderia parar a guerra como uma "generalização muito ampla". "É uma forma de os russos dizerem 'não', sem fechar a porta completamente e constranger a China. Talvez chegue o dia em que a Rússia precise de diálogos de paz muito mais do que hoje. Por que fechar a porta?", acrescentou. 

"Vladimir Putin utiliza um sabre nuclear enquanto ataca cidades ucranianas, supervisiona crimes de guerra e tenta subjugar uma nação soberana. Enquanto isso, Xi fornece cobertura para que o presidente russo se comporte de forma tão grotesca, enquanto lidera seu próprio país em uma expansão massiva de armas nucleares e ameaça uma agressão contra Taiwan", disse ao Correio Rebbecca L. Heinrichs, especialista em controle de armas  e não proliferação nuclear pelo Hudson Institute, também em Washington. 

Segundo Heinrichs, Putin faz muitas "ameaças exageradas" para tentar impedir os Estados Unidos e aliados de fornecerem armas à Ucrânia. "O Reino Unido repassou a Kiev armas inteiramente aceitáveis à defesa da Ucrânia. Tudo o que o Reino Unido deu aos ucranianos foi com o objetivo de repelir os invasores russos e defender a soberania da Ucrânia e a segurança da Otan. Putin teria muito menos que reclamar se planejasse a retirada de suas tropas da ex-república soviética."

Presidência da Ucrânia/AFP - O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, recebe o premiê japonês, Fumio Kishida, no Palácio Mariinsky, em Kiev
Mikhail Tereshchenko/Sputnik/AFP - Xi Jinping e Vladimir Putin participam de cerimônia de assinatura de acordos, em Moscou: cooperação econômica

Perseguição a ganhadores do Nobel

Enquanto Vladimir Putin reforçava a aliança sino-russa com Xi Jinping, a polícia de Moscou realizava buscas nas casas de seis líderes e ativisas da Memorial — organização não governamental laureada com o Nobel da Paz em 2022. A maioria deles foi levada para o Comitê de Investigação, onde prestaram depoimento. Por telefone, Nataliya Sekretareva, integrante da diretoria e chefe da equipe jurídica da Memorial, explicou ao Correio que as autoridades russas abriram dois casos criminais. "Um deles é contra Oleg Orlov (um dos ativistas mais antigos da ONG), sob a acusação de 'repetidamente desacreditar as Forças Armadas da Rússia'. Ele foi multado duas vezes, no ano passado, por participar de protestos de rua. O último exemplo de 'descrédito' data de 14 de novembro de 2022, por uma postagem no Facebook em que criticava autoridades", comentou. 

De acordo com Sekretareva, os ativistas da Memorial respondem em outro caso criminal, por "reabilitação do nazismo". "Essa acusação de baseia no fato de que três pessoas no banco de dados da Memorial supostamente colaboraram com ocupantes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial", disse. Apesar de não existirem suspeitos formais no segundo caso, as batidas da polícia nas residências dos integrantes da Memorial continuavam até a noite de ontem.

A chefe da equipe jurídica da Memorial denuncia "um ato de perseguição ao que restou da sociedade civil na Rússia". "As três pessoas suspeitas no segundo caso foram oficialmente reabilitadas pelas autoridades como vítimas de repressão política. O acesso aos arquivos do Estado é restrito. Por isso, mesmo que tivessem cometido outros crimes, a Memorial não poderia verificá-los, pois as autoridades negam acesso aos autos", afirmou Sekretareva. Ela acusa o governo Putin de pretender intimidar as pessoas. 

Eu acho...

Arquivo pessoal - Yun Sun, codiretora do Programa Leste da Ásia e diretor do Programa China do think tank Stimson Center (em Washington D.C.)

"O desejo de contrariar os Estados Unidos é a mais importante convergência entre China e Rússia. Ambos desejam ver uma ordem mundial que não seja dominada pelos norte-americanos. Se isso constitui uma Guerra Fria, depende da definição. Pode-se argumentar que, com a situação na Ucrânia, a guerra não é mais 'fria'."

Yun Sun, codiretora do Programa Leste da Ásia e diretor do Programa China do think tank Stimson Center (em Washington D.C.)

Timothy Devine - Rebbecca L. Heinrichs, especialista em controle de armas e não proliferação nuclear pelo Hudson Institute

"Xi quer que Putin prevaleça. Ele não é um mediador neutro. Qualquer proposta da China favoreceria a Rússia, consolidaria os ganhos territoriais russos e deveria ser rejeitada. Todas as nações estão certas em querer que a guerra acabe, para que a Rússia seja castigada e pare de ameaçar nações soberanas e de interromper o comércio de commodities globais."

Rebbecca L. Heinrichs, especialista em controle de armas e não proliferação nuclear pelo Hudson Institute (em Washington)