Ex-editor-chefe adjunto do Novaya Gazeta, o principal meio de comunicação independente da Rússia, Kirill Konstantinovich Martynov foi obrigado a abandonar Moscou, no ano passado, e a fundar um jornal em Riga, capital da Letônia. Em 2021, Dmitry Muratov, seu colega e editor-chefe do jornal, foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz pela defesa da liberdade de expressão. Membro do Conselho de Administração da Memorial, organização não-governamental russa laureada com a mesma honraria no ano passado, Pavel Andreyev não esconde o medo em um país marcado pela repressão. Durante visita a Brasília para um evento promovido pela União Europeia, os dois falaram ao Correio sobre a situação dos direitos humanos na Rússia de Vladimir Putin e sobre a guerra na Ucrânia. Hoje, eles seguem para São Paulo, em um tour que inclui Uruguai, Argentina e Chile.
Para Martynov, o governo Putin tem lutado contra a liberdade de expressão e adotado leis e práticas que baniram o execício do jornalismo livre. "Mesmo antes da guerra na Ucrânia, houve uma enorme campanha contra jornalistas. Na última sexta-feira, o Ministério da Justiça russo rotulou vários colegas de agentes estrangeiros, o que é uma ideia incrivelmente estúpida, além de inconstitucional e fora do senso comum", afirmou o representante da Novaya Gazeta. "Nossas publicações são marcadas e precisamos fornecer todas as nossas contas bancárias ao Ministério da Justiça, quatro vezes por ano. Isso é totalmente ilegal, pois viola a privacidade. Também ficamos impedidos de trabalhar em universidades." Martynov recebeu a alcunha de agente estrangeiro.
Em 2021, o Novaya Gazeta foi alvo de um ataque químico. "Um cara veio até a nossa redação e arremessou uma substância química. Ninguém ficou gravemente ferido, mas esse atentado foi uma mensagem para que interrompêssemos nossas atividades", disse Martynov. Ele relatou que, meses antes da eclosão da guerra, a polícia russa começou a inventar casos criminais contra jornalistas. "Os agentes vão até sua casa, levam seu celular e seu notebook e tentam encontrar algo que o incrime."
Martynov lembrou que, em 6 de março de 2022, dez dias depois da invasão à Ucrânia, Putin criou uma lei proibindo jornalistas de usarem o termo "guerra" e obrigando-os a se referirem à ação bélica como "operação militar especial". "As autoridades nos forçam a usar uma única fonte oficial ao cobrirmos qualquer história relacionada à guerra", denunciou. Segundo o ex-editor, muitos jornalistas estão presos, e centenas viram-se obrigados a fugir do país.
Arquivos
Pavel Andreyev, da ONG Memorial, explicou que a entidade começou a ser vista pelo Kremlin como um problema ainda na década de 1990. "Nós decidimos abrir todos os arquivos da KGB (o serviço secreto russo), da qual Putin foi agente. Nossa ONG é composta principalmente por dissidentes soviéticos. No passado, Putin participou de prisões e perseguições contra essas pessoas."
Ele acredita que o Nobel da Paz lançou os holofotes da comunidade internacional sobre a Rússia. "Espero que o prêmio forneça uma proteção adicional aos integrantes da Memorial, que estão em grande perigo. Yan Rachinsky (um dos fundadores) é o que mais corre risco de repressão, pois adota uma retórica contundente. O Nobel representa uma motivação para continuarmos nossa luta pelos direitos humanos. A partilha do prêmio com o ucraniano Centro pelas Liberdades Civis e com o preso político bielorrusso Ales Bialiatski indica que a sociedade civil pode trabalhar unida", disse Andreyev, ao acusar Putin de tentar separar as organizações de defesa dos direitos humanos da sociedade. "Sinto medo, é algo angustiante. Não apenas por mim, mas também por meus colegas."
Martynov concorda com Andreyev e sublinha que nunca obteve tanto solidariedade e atenção desde o anúncio do Nobel. "É uma situação realmente estranha quando você recebe o Nobel da Paz e seu país começa uma guerra, uma invasão, quatro meses depois. Precisamos fazer algo. Muratov vendeu a medalha dada pelo Comitê Nobel Norueguês por US$ 103,5 milhões (cerca de R$ 543 milhões) e doou o dinheiro para as Nações Unidas, a fim de ser revertido para os refugiados", disse. Ele entende que o legado do Nobel precisa devolver a paz à Europa. A única maneira de isso acontecer, na opinião de Martynov, é impedir Putin de prosseguir com a "guerra criminosa" na Ucrânia. "Putin fez uma aposta: quer se tornar presidente de algo como uma nova União Soviética sem a ideia do comunismo. O que ele quis fazer foi repetir a invasão à Crimeira, em 2014."
Propaganda
Em 24 de fevereiro de 2022, Putin ordenou a invasão da Ucrânia apostando em uma vitória rápida. O confronto se arrasta por 383 dias, sem a perspectiva de fim. "Putin acredita na própria propaganda. Ele destrói todos os sistemas de feedback dentro da Rússia: a mídia independente, os líderes da oposição e as vozes independentes no âmbito de seu governo. Putin não quer que as pessoas saibam a verdade, e pretende mostrar apenas o que acredita", criticou Andreyev. "Se Putin quer uma paz durável e estável, a decisão-chave será a democratização da Rússia. A forma de proteger os ucranianos é pela restauração dos direitos da mídia independente." Martynov adverte que a guerra afetará o futuro da Rússia e defende um cenário mais realista: um cessar-fogo firmado após uma contraofensiva do Exército ucraniano e o "congelamento" do conflito.
Desde 2014, o jornalista e analista político russo Konstantin Eggert vive em uma espécie de autoexílio em um pequeno Estado báltico. "Nos últimos nove anos, Putin eliminou a maior parte dos veículos de mídia independentes e tentou destruir a Novaya Gazeta, além de fechar o escritório da Deutsche Welle. Para jornalistas russos, permanecer no país e reportar a guerra de Putin é algo extremamente perigoso", alertou. Ele citou o caso de um jovem que, seis dias atrás, criou um grupo no aplicativo Telegram para informar sobre a invasão. "O rapaz foi identificado, preso, levado à Corte e sentenciado a 8 anos e meio de prisão em uma colônia penal. Não existe democracia na Rússia, atualmente. É um regime que destrói os direitos humanos, encoraja a repressão contra pessoas LGBTQIA e lança um conflito nunca visto na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945."
Consultada pelo Correio, a Embaixada da Rússia respondeu que o embaixador Alexey Kazimirovitch Labetskiy disse "não estar pronto para discutir sobre pessoas que atuam contra o interesse do país", "que querem garantir somente os direitos para elas, mas não os deveres".