Uma comitiva de representantes da sociedade civil da Ucrânia está no Brasil para relatar a situação do país invadido pela Rússia. Em Brasília, o grupo se encontrou com diversos parlamentares. Integram o grupo o professor de política comparada Olexiy Haran, da Universidade de Kiev; a diretora do departamento de cooperação internacional da Câmara de Comércio e Indústria da Ucrânia, Anna Liubyma; o reverendo Ihor Shaban, chefe da comissão para o diálogo Inter-religioso e assuntos ecumênicos da Igreja Greco-Católica Ucraniana; e a ativista pelos direitos humanos Oleksandra Drik, diretora do Centro de Liberdades Civis (CCL). Em 2022, a instituição foi laureada com o Prêmio Nobel da Paz.
Em entrevista ao Correio, Oleksandra foi categórica: a Ucrânia não se entregará, e a paz só será alcançada com a responsabilização dos culpados pelos crimes de guerra. “Obviamente, somos os maiores interessados que essa guerra acabe o mais rápido possível. Mas é importante entender e lembrar: nós não começamos isso e não vamos nos entregar”. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Qual a paz que a Ucrânia deseja?
Primeiro, é importante entender o contexto em que todos os eventos se deram. A guerra não está na Ucrânia há um ano, mas desde 2014 e, acredite, houve inúmeras tentativas de negociação de cessar fogo, por paz, de realinhar a Rússia a obrigações internacionais e nada nunca deu certo. Só foi piorando, primeiro com a Crimeia, depois uma invasão em grande escala há um ano. Isso significa que Putin e a Rússia não querem paz, por uma simples razão: eles querem que a Ucrânia e os ucranianos deixem de existir. Eles não acreditam na Ucrânia como uma nação separada. Putin mesmo, como presidente, segue repetindo isso em seus diversos pronunciamentos desde o começo da invasão. E nós, como uma organização de direitos humanos que tem combatido crimes cometidos pelo exército russo na Ucrânia, vemos isso quando certos territórios são desocupados.
O que vocês veem?
Quando o controle desses territórios é recuperado pelas forças armadas ucranianas, conseguimos apurar exatamente o que estava acontecendo nesses locais antes da retomada. E o que encontramos é assassinatos, estupros, torturas e sempre parecem ser as mesmas coisas em todos esses territórios. Basicamente, a sensação é de que, quando as forças russas chegam em solo ucraniano, destroem tudo e todos que encontram pelo caminho. Imagine que alguém entre na sua casa, matando sua esposa, marido, estuprando sua irmã, destruindo todos os móveis e dissesse ‘agora, isso é meu e vamos fazer a paz’. Você concordaria com isso? Você iria querer essa pessoa fora da sua casa, compensação pelo estrago e que essa pessoa fosse responsabilizada por isso. Acho isso justo, e é exatamente o que queremos.
O que é preciso para ter paz?
Para ter qualquer paz, primeiro precisamos que as tropas russas saiam da Ucrânia. Precisamos de responsabilização, de que a justiça seja entregue. Toda a documentação que estamos fazendo não é porque queremos ser historiadores, mas porque queremos justiça para todas as vítimas desses crimes. Para nós, são quatro graves crimes internacionais: crimes de guerra; contra a humanidade; genocídio; e crime de agressão. Três deles podem ser investigados pelo Tribunal Internacional de Crimes de Guerra. Mas o crime de agressão, atualmente, não há nenhuma instituição no mundo que possa responsabilizar a Rússia pelas ações militares e políticas neste crime.
Por que é preciso punir os crimes de agressão?
Se não houver responsabilização pelo crime de agressão — e por isso defendemos a instauração de um Tribunal Especial —, em cinco, sete, 10 anos poderemos ter somente militares de baixa ou média patente processados. Não dar atenção a isso é como abrir uma caixa de Pandora; é mandar a mensagem para todos no mundo de que é ok invadir outro país, desrespeitar territórios, matar a população e não ter responsabilidade pelas agressões cometidas. Outra consequência fala sobre o conceito de paz, muito importante aqui no Brasil.
Por quê?
Se leis internacionais, desenhadas depois da Segunda Guerra Mundial e base da Organização das Nações Unidas, não podem ajudar a prevenir nem resolver guerras, os países chegarão à conclusão de que a única forma de se proteger é com mais armas, incluindo nucleares. É esse o tipo de mundo que queremos? Acho que não. Todos no território estão sofrendo o tempo todo. Os bombardeios acontecem o tempo todo. Temos uma ferramenta que informa quando há bombardeio aéreo. Só hoje (terça-feira), foram três alarmes. Sempre que o alarme é acionado, é preciso ir para um abrigo. Imagine passar seu dia dessa forma. Não dá para ter uma vida normal.
Como interromper tanta destruição e sofrimento?
Ninguém mais do que a Ucrânia quer paz, mas paz não significa se entregar. O fim da guerra só pode vir quando as tropas saírem da Ucrânia e com o reconhecimento de que ucranianos são vítimas de agressão. Não é a primeira vez na história da Ucrânia, nem da Rússia, no sentido de crimes de guerra. Teve a Georgia, a Chechênia, Síria, Mali, Líbia, tantos lugares em que ou o governo russo ou grupos afiliados ao governo russo vem cometendo crimes de guerra. A única razão que eles continuam fazendo isso, é porque eles seguem impunes.
O grupo do qual você faz parte adota a estratégia de visitar outros países para conseguir apoio ao fim da guerra e a essa responsabilização russa?
É por isso que estamos aqui. Nós, da sociedade civil, sem filiação com o governo, tentamos passar a mensagem de que esse é o desejo do povo ucraniano. Não são políticos fazendo isso. Estamos tentando explicar o que está acontecendo, as origens dessa guerra russa na Ucrânia, o que está acontecendo no local e trazendo essa experiência em primeira pessoa. Mas também entendemos que isso é algo que precisa ser explicado em detalhes. As vítimas desse conflito estão espalhadas pelos continentes.
Explique, por favor.
O último levantamento da ONU que eu vi sobre o assunto, no fim do ano passado, aponta que 1,6 bilhão de pessoas em 94 países foram diretamente afetadas por esse conflito. O dado se refere à insegurança alimentar, crise energética e financeira. Então, é importante estabelecer essas relações diretas, explicando que, por exemplo, a Rússia está usando como arma comida e fertilizantes, aumentando os preços, que não estão submetidos a sanções. Estão vitimizando os cidadãos desses países, fazendo-os pagar por essa guerra. E isso é um problema aqui no Brasil. É preciso explicar que, ao pagar esses preços exorbitantes por fertilizantes russos, você está pagando por essa guerra. E a Rússia vem constantemente subindo preços, vazando dinheiro para continuar essa guerra.
Bolsonaro esteve na Rússia pouco antes do começo dessa invasão, chegou a demonstrar simpatia a Vladimir Putin e usou os fertilizantes para manter uma certa “neutralidade” na questão. Por outro lado, agora, o presidente Lula entregou propostas para o fim do conflito e o vice-ministro ministro das Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin, afirmou que está sendo “analisado”. Como vê essa mudança?
Não posso comentar sobre a política interna do Brasil, porque isso é para o povo e governo brasileiro decidirem como agir ou reagir. O que eu posso fazer é entregar informação em primeira mão e abordar um pouco da narrativa e propaganda russa, que não são verdades, mas que muitas vezes são usadas para embasar certas decisões e que enganam, complicando questões que são diretas na maioria das vezes. O Brasil tem sido muito ativo no apoio às resoluções da ONU na questão, não todas, mas a maioria, especialmente as que abordam a soberania e integridade territorial da Ucrânia, e, claro, somos agradecidos a isso e esperamos que o Brasil siga apoiando resoluções que são relacionadas à agressão russa contra a Ucrânia. Isso é importante, porque o Brasil tem assento permanente no Conselho de Segurança e algumas resoluções que virão em breve tratam especificamente sobre responsabilização.
Como vê o apoio dos outros países?
Os países têm demonstrado apoio de diversas formas, mas para a Ucrânia o principal apoio que precisamos é o militar. Sei que o governo brasileiro tem sido relutante em fornecer esse tipo de apoio militar, por várias razões, e uma das que foi mencionada é que é difícil estar no papel de mediador na negociação por paz se fornecer apoio militar. Pode parecer surpreendente, mas no dia seguinte ao anúncio de que o Centro de Liberdades Civis receberia o prêmio Nobel da Paz, a presidente da organização fez, durante o pronunciamento — e lembro que essa é uma organização de direitos humanos – ela pediu por mais armas para a Ucrânia. Pode parecer estranho, mas infelizmente essa é a única maneira de interromper as atrocidades, porque a Rússia só entende a língua da força.
O que motiva Putin?
Como eu disse, muitas tentativas de negociação falharam, porque Putin é motivado pelo desejo irracional de restaurar o Império Russo e acredita que a Ucrânia deveria fazer parte. Somos vizinhos, temos uma história com a Rússia, mas talvez isso não seja claro para os demais países do mundo. Putin começou a se preocupar porque ele vem perdendo no campo de batalha. O exército ucraniano tem sido bem-sucedido no avanço da recuperação de certos territórios. Outro apoio é o financeiro, algo que a Ucrânia vem recebendo bastante de países ocidentais, para ajudar o déficit orçamentário. A economia do Estado não consegue estar funcionando plenamente com o país em guerra. Diria que há diversas formas de demonstrar apoio, seja humanitário, ou militar, econômico.
Quais serão as consequências desse conflito?
Acredito que essa guerra mudou e mudará ainda mais toda a estrutura para garantia da paz no mundo todo. Essa guerra mudará o sistema existente, porque, precisamos reconhecer, a razão primária para a ONU ter sido criada é prevenir guerras. A ONU falhou e agora não está em posição para reagir de forma apropriada, porque o Conselho de Segurança, que é a única instância que pode decidir obrigações a serem cumpridas por seus membros, tem um impasse. Isto porque um dos membros permanentes está violando a Carta da ONU, ao invadir um dos países fundadores. Obviamente, algo tem que mudar. Há a vontade do Brasil de ter um assento permanente no Conselho de Segurança e há conversas sobre mudanças no sistema da ONU. Isso definitivamente deve ser feito, mas pode levar anos. E ucranianos estão morrendo agora, todos os dias. Precisamos entender que deveria haver prioridades, e que a lei internacional deveria estar sendo cumprida.
A comitiva cumpriu uma agenda com diversos parlamentares. Houve alguma abertura para estas informações que vocês trouxeram?
Primeiramente, somos a sociedade civil falando com o governo ou instituições oficiais de Estado. Não viemos para negociar entre governos, então eu não esperaria esse nível de comunicação ou algum nível de comprometimento com a Ucrânia nessas reuniões. Mas, ao mesmo tempo, acho extremamente importante entregar essa mensagem em nome da sociedade ucraniana e explicar algumas coisas que podem não ser óbvias, acho que fomos bem-sucedidos nisso e levantamos interesse. Fomos bem-sucedidos, também, em derrubar algumas das narrativas da propaganda russa que foram muito divulgadas. Ao mesmo tempo, é difícil dizer neste momento a extensão dos efeitos das conversas na tomada de decisões, o que estamos fazendo agora é criar conexões e estabelecer relações que precisam continuar. Acho que é importante termos colocado uma cara para um problema que parece ser tão distante, mas não é.
A guerra está próxima de chegar ao fim?
É difícil prever e não sou uma expert militar. Mas diria que, com certeza, a Rússia já perdeu muito estrategicamente. Inicialmente, o plano era conquistar Kiev em três dias, então estrategicamente Putin falhou, porque as forças ucranianas impediram que a capital fosse tomada. Agora eles estão tentando exaurir recursos diversos da Ucrânia. Obviamente, somos os maiores interessados de que essa guerra acabe o mais rápido possível. Mas é importante entender e lembrar: nós não começamos isso e não vamos nos entregar.
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