Nos últimos anos, pessoas em todo o mundo perderam centenas de milhares de dólares em um esquema de fraude online conhecido como golpe "abate do porco" ("pig butchering" no original), que usa falsos relacionamentos online para extorquir as vítimas por meio de falsos investimentos.
Mas por trás dos perfis em redes sociais e da manipulação psicológica há uma realidade ainda mais sombria — muitos dos golpistas são vítimas de tráfico humano, forçadas a conduzir a fraude a partir de complexos semelhantes a prisões no Sudeste Asiático.
Uma investigação do Serviço Mundial da BBC revelou como é a vida dentro desses complexos e ouviu o ex-chefe de uma das quadrilhas sobre as táticas sofisticadas que eles usam para atrair suas vítimas.
Em paralelo, a BBC News Brasil conversou com um dos mais de 10 brasileiros que foram ludibriados com falsas oportunidades de emprego, traficados para Mianmar e mantidos em situação análoga à escravidão por meses, como parte desse esquema.
Patrick desembarcou na Tailândia em julho de 2022, para o que acreditava ser uma favorável proposta de trabalho em um call center em Bangcoc. Logo que colocou os pés no aeroporto, porém, começou a desconfiar das intenções de seus novos patrões.
O carioca de 25 anos viajava ao lado de uma amiga, que foi abordada sobre a oportunidade de trabalho pelo Instagram e decidiu convidá-lo para se juntar a ela na empreitada.
"Em menos de três dias após aceitar o trabalho já nos compraram a passagem e estávamos embarcando", conta ele.
Mas assim que chegaram ao destino prometido, os amigos foram colocados em um carro e levados à força a uma cidade na fronteira de Mianmar. Lá encontraram um gigantesco complexo tomado por negócios ilegais.
O lugar que se assemelha a uma cidade artificial fica localizado no município de Myawaddy e é apenas uma das bases dos criminosos que aplicam o golpe "abate do porco" no sudeste da Ásia.
"Era como se fosse uma fortaleza, um lugar enorme cercado por muros e muita gente armada", descreve Patrick. Segundo o brasileiro, era ali que as vítimas dormiam, faziam suas refeições e eram obrigadas a aplicar as fraudes.
"Foi quando nos levaram para trabalhar que descobrimos realmente do que se tratava — um esquema ilegal para criar perfis falsos e dar golpes cibernéticos", diz.
"E você simplesmente não tinha a opção de não trabalhar."
O relato de Patrick é semelhante ao de outras vítimas encontradas pela investigação do Serviço Mundial da BBC: as pessoas traficadas são proibidas de deixar os complexos e obrigadas a trabalhar até 15 horas por dia, sob ameaça de tortura e agressões.
"Eles levam as pessoas para uma prisão lá dentro e fazem tortura até ela ser libertada. Ou então batem com paus, socos e chutes."
O brasileiro afirma nunca ter sido agredido fisicamente pelos capatazes que organizavam o golpe, mas diz ter sido coagido a trabalhar com ameaças financeiras — aqueles que se recusavam a aplicar os golpes ficavam sem receber uma pequena ajuda de custo que era usada para manter o básico da alimentação dentro do complexo.
Mas após cerca de quatro meses, Patrick e outros nove brasileiros que estavam presos em Mianmar foram libertados depois de uma negociação do Ministério das Relações Exteriores com as autoridades birmanesas e os rebeldes que controlam parte do país.
"Eu comecei a filmar e registrar o que acontecia lá dentro com um celular escondido. Mandei tudo para minha mãe no Brasil e, depois de um tempo, recebemos a notícia de que iríamos ser libertados."
As imagens feitas por Patrick foram entregues por sua família a uma rede de televisão no Brasil e, pouco depois, a Polícia Federal e a Interpol se envolveram no caso.
Mas não acabou aí. Após serem libertados do complexo em Mianmar, os brasileiros tiveram que passar vários dias em uma delegacia de polícia antes que as autoridades brasileiras conseguissem localizá-los e repatriá-los.
"Eles [os criminosos] prometeram nos levar de volta para a Tailândia, mas basicamente nos entregaram para os rebeldes", conta Patrick.
"Ficamos em uma cela com outras 40 pessoas durante uma semana sem ver a luz do sol. Quando finalmente nos localizaram, viajamos 13 horas de ônibus por Mianmar até a Tailândia."
Ele voltou para o Brasil, mas carrega até hoje os traumas daquele período. "Foi um inferno ficar naquele complexo. Eu ia dormir todos os dias sem saber se iria acordar", diz. "Comecei a fumar três maços de cigarro por dia, sendo que nunca tinha fumado antes."
Patrick conta que perdeu mais de 10 quilos nos quatro meses que passou em cárcere privado e viu sua saúde se deteriorar.
"Desenvolvi estresse pós-traumático ao chegar no Brasil. No começo tinha alguns surtos, me tremia todo e não conseguia parar de chorar."
"Mas agora estou um pouco melhor."
O golpe
Quando Xiaozui trabalhava como golpista, ele considerava sua voz profunda e rouca seu maior trunfo. Ao falar por telefone com seus alvos, diz que poderia levá-los a fazer qualquer coisa.
Ele chamava suas vítimas de "porcos" e seu objetivo era "engordá-las" e, eventualmente, "abatê-las".
Os termos usados pelos golpistas descrevem a estratégia usada e ensinada a todos os envolvidos, de nutrir um relacionamento romântico com as vítimas antes de fazê-las investir o máximo de dinheiro possível em falsos esquemas de investimento em criptomoedas.
"A chave para o esquema de abate de porcos são as emoções", disse Xiaozui, de quase 20 anos e nascido na China, à BBC de um esconderijo na capital do Camboja, Phnom Penh.
Xiaozui parece relaxado em seu pijama Gucci falsificado e chinelos, um cigarro sempre equilibrado entre os lábios ou dedos. Ele diz que sua operação roubou milhares de dólares ao longo dos anos e que até escreveu um manual para ensinar outras pessoas a atrair vítimas em potencial.
"No meu manual, os golpistas devem inventar uma história comovente, para acionar o 'amor de mãe'", diz.
Um de seus perfis favoritos era fingir ser um executivo de negócios traído por sua ex-esposa. Ele diz que o perfil conquistava muita simpatia de suas vítimas do sexo feminino.
Depois de trocar mensagens, Xiaozui costumava pegar o telefone e encantar seus alvos com sua voz. "Na nossa indústria, chamamos isso de 'terapia de palavras'", diz ele.
Fraudadores como Xiaozui são chamados de "cães" na linguagem interna do golpe. Eles costumam encontrar suas presas em sites de relacionamento, nas redes sociais e em aplicativos de mensagens.
"Nosso perfil geralmente é de alguém bonito, rico e atencioso", explica Xiaozui, acrescentando que todas as imagens que eles usaram foram compradas online ou roubadas de influenciadores de mídia social.
Ele diz que, em alguns casos, os golpistas usam até mesmo softwares de deep fake para conversar por vídeo com seus alvos, fingindo ser as pessoas dos perfis, e tornar o golpe mais convincente.
Eventualmente, a conversa migra de assuntos cotidianos para uma oportunidade de investimento em ações de criptomoedas.
"Você cria um sonho", diz Xiaozui.
"Por exemplo, se meu alvo mora em Pequim, eu diria a ela que quero morar com ela em Pequim. Mas um apartamento lá custa milhões de dólares, então precisamos trabalhar duro juntos para ganhar dinheiro."
Segundo Patrick, o golpe era dividido em várias fases: a identificação das vítimas, o período inicial em que o suposto relacionamento era criado e, por fim, a extorsão por meio dos falsos investimentos.
Ele diz que os brasileiros eram obrigados a atuar na fase inicial do esquema, buscando perfis com potencial para serem enganados e reunindo seus dados.
"Nossa função ali era obter as informações básicas sobre as vítimas: nome, onde mora, o que gosta de fazer e se tem dinheiro ou não", relata Patrick. "Mas eu escolhia de propósito perfis que sabia que não iam dar em nada, porque nunca quis dar golpe em ninguém."
‘Minha família me culpou’
Foi com um desses esquemas que Joyce foi enganada em janeiro de 2022. A funcionária de um escritório chinês de 36 anos pensou ter conhecido um parceiro romântico online. Ele disse que se mudaria de Xangai para Pequim para viver com ela.
"Ele parecia um indivíduo solitário e trabalhador vivendo em uma cidade grande. Assim como eu", disse Joyce à BBC.
"Eu nunca imaginei que era um golpista."
Joyce foi persuadida a depositar dinheiro em uma conta de investimento e depois levada a acreditar que estava obtendo lucros com isso. Depois que ela esgotou todas as suas economias, o golpista a incentivou a fazer empréstimos para que ela pudesse continuar investindo.
Quando ela desconfiou e tentou sacar o dinheiro do "esquema de investimento", não conseguiu.
Ela perdeu mais de US$ 100 mil (R$ 520 mil) no total, a maior parte em empréstimos. "Foi a primeira vez que vi meu pai chorando. Minha família me culpou por ser burra. Comecei a chorar", diz ela.
Se Joyce não pagar seus empréstimos, pode ser colocada na lista negra do sistema de crédito social da China, o que afetará todos os aspectos de sua vida.
Desde então, ela assumiu empregos paralelos para obter uma renda extra, incluindo apresentações de dança clássica em plataformas de transmissão ao vivo na internet.
Negócio em expansão
O golpe "abate do porco" teve como alvo inicialmente, por volta de 2017, indivíduos na China. Mas desde então se tornou global, fazendo vítimas na Ásia, Europa e América do Norte.
As autoridades chinesas conseguiram reprimir o esquema cibernético dentro de suas fronteiras, mas as operações fraudulentas foram reiniciadas no sudeste da Ásia, principalmente no Camboja, em Laos, Mianmar, na Tailândia e nas Filipinas.
A rede parece ainda ter se expandido recentemente para além da Ásia, com novas operações nos Emirados Árabes Unidos e na Geórgia.
A empresa ilegal comandada por Xiaozui ficava sediada na cidade costeira cambojana de Sihanoukville, muito visitada por turistas por suas praias de areia branca.
No entanto, nos últimos anos, também se desenvolveu na região um vasto negócio de cassinos, muitos dos quais estão sendo usados como fachada pelas gangues de golpes online.
Em Sihanoukville, Xiaozui gerenciou uma equipe de 40 golpistas, incluindo alguns que foram traficados e forçados a trabalhar.
"Comprei e vendi pessoas", diz Xiaozui, acrescentando que o tráfico humano é comum na indústria.
"Dólares ambulantes"
Didi foi um dos traficados por outro grupo em Sihanoukville.
"Os traficantes até negociaram meu preço na minha frente", diz ele, que afirma ter custado US$ 20 mil (R$ 103 mil).
O ex-funcionário de um cibercafé de 30 anos deixou a China em janeiro de 2022 para o que acreditava ser um emprego bem pago no universo dos games online.
Em vez disso, foi traficado para um complexo de cassinos murado chamado Huang Le, em Sihanoukville, e forçado a atrair potenciais vítimas de golpes online.
A equipe da BBC estabeleceu contato com Didi enquanto ele estava preso dentro do complexo e ele passou a enviar vídeos diários sobre sua situação.
"Eles me disseram, que se eu tentar escapar, eles vão me matar", sussurra Didi em um dos vídeos gravados secretamente no banheiro de seu dormitório.
Ele tinha que trabalhar 12 horas por dia, abordando pelo menos 100 pessoas online na Europa e nos Estados Unidos todos os dias. Se não entregasse resultados, enfrentaria punições, incluindo eletrocussão e espancamento.
Existem milhares de outros rapazes e moças como Didi que foram enganados pela indústria de golpes cibernéticos. Outro ex-golpista disse à BBC que foi sequestrado nas ruas e traficado para um dos complexos de fraude.
A extorsão de trabalhadores chineses é tão conhecida em Sihanoukville que alguns se referem a eles como "dólares ambulantes".
Até mesmo Xiaozui, que era vice-chefe de uma empresa fraudulenta, acabou por cair em desgraça com as gangues. Ele foi espancado depois de pedir um aumento de salário.
Ele diz que acabou escapando depois de ser vendido para outra gangue, mas que seria morto se seu antigo chefe o encontrasse.
Xiaozui afirma estar arrependido: "Na verdade, odeio esta indústria. Já ouvi os gritos desesperados das vítimas. Só quero viver uma vida normal agora".
Depois de quatro meses de cativeiro, Didi nos mandou uma mensagem de despedida: "Não aguento mais... não quero machucar ninguém... tchau".
Ele ficou offline por meio dia, mas acabou ressurgindo com uma mensagem esperançosa: "Saí em segurança".
Ele escapou do complexo durante a noite, após encontrar um pequeno buraco na parede onde um dos aparelhos de ar-condicionado estava pendurado. Pulou de uma janela do terceiro andar e conseguiu pegar um táxi para fugir.
A BBC conseguiu rastrear o proprietário do complexo Huang Le no Camboja, o empresário Kuong Li.
O império de negócios de Li abrange imóveis, cassinos, hotéis e construção. Ele foi homenageado como um "Oknha", o título mais alto concedido a civis pelo rei do Camboja, e já foi fotografado ao lado de autoridades proeminentes do país em eventos públicos e privados.
Apesar da evidência esmagadora da realização de tráfico de pessoas, abuso físico e operações fraudulentas dentro do complexo de Huang Le, ninguém foi preso ou acusado de qualquer crime.
A BBC apresentou essas alegações a Kuong Li, mas ele não respondeu às tentativas de contato.
A polícia de Sihanoukville também foi questionada sobre por que nenhuma ação foi tomada contra aqueles que operam dentro do complexo de Huang Le. Também não houve respostas.
Assim como Patrick, Xiaozui e Didi conseguiram escapar, mas dezenas de milhares de golpistas continuam a operar o esquema do "abate do porco".
Fotografia de Natália Zuo. Reportagem adicional de Natalia Zuo e Jake Tacchi
*Os nomes de alguns dos entrevistados foram alterados para proteger suas identidades
- Assista ao documentário original produzido pela BBC Eye
- Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c99ywk980qqo
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