Europa

Ataque choca Portugal e autoridades temem onda de xenofobia

Afegão de 29 anos mata duas mulheres a facadas e fere gravemente professor em centro islâmico de Lisboa. Autoridades não confirmam atentado terrorista e temem que a extrema direita utilize o caso para fomentar o ódio aos estrangeiros

Vicente Nunes - Correspondente
postado em 29/03/2023 06:00
 (crédito:  Vicente Nunes/CB/D.A Press)
(crédito: Vicente Nunes/CB/D.A Press)

Lisboa — Apontado por várias pesquisas como um dos países mais seguros do mundo, Portugal tomou um choque ontem. O afegão Abdul Bashir, de 29 anos, matou a facadas duas mulheres que trabalhavam com refugiados no centro islâmico Ismaili e feriu gravemente um professor de português. O crime ocorreu por volta das 11h e levantou a possibilidade de um ataque terrorista, que não foi confirmado pelas autoridades. O homem, segundo agentes de segurança, portava uma "faca de grandes dimensões" e teve de ser contido com um tiro na perna. Ele foi operado e colocado sob custódia da Polícia Judiciária.

A tragédia só não foi maior porque a Polícia de Segurança Pública (PSP) chegou ao Centro Ismaili em apenas um minuto após ser acionada. Foram mortas Mariana Jadaugy, 24, licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa e mestra pela Universidade de Lisboa, e Farana Sadrudin, 49, engenheira pela Escola Superior de Tecnologia de Setúbal. As vítimas, que são portuguesas, eram especialistas em acolhimento a imigrantes, auxiliando no preparo de documentos e na busca por emprego e moradia. Elas teriam sido esfaqueadas ao tentarem conter o ataque do afegão ao professor. "Foi um acontecimento terrível", disse o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.

O assassino — pai de três filhos, de 9, 7 e 4 anos — desembarcou em território luso há um ano, dentro de um acordo assinado entre o governo português e autoridades da Grécia, principal porta de entrada de refugiados na Europa. Ele havia perdido a mulher durante um incêndio em um centro de acolhimento grego e acabou entrando em um programa de proteção internacional. Segundo o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, foram seguidos todos os trâmites de segurança para o recebimento de Bashir. O ministro pediu, inclusive, que não se use esse crime para alimentar a xenofobia, defendida por integrantes da extrema direita.

"Todas as informações que temos são de que o homem responsável pelo ataque tinha um comportamento pacífico e frequentava o Centro Ismaili, se relacionando com a comunidade", afirmou Carneiro. "Portanto, tudo indica que foi um fato isolado, e lamentamos muito o que ocorreu", acrescentou. O presidente da República endossou esse discurso. "Não podemos generalizar, julgar uma comunidade inteira, com bons serviços prestados a Portugal, por uma pessoa. É injusto", assinalou. Na avaliação do primeiro-ministro António Costa, é preciso apurar todos os fatos e não fazer julgamentos precipitados.

Nada descartado

A Polícia Judiciária, que assumiu o caso, fez buscas e apreensões no apartamento em que o afegão morava, no município de Odivelas. Os investigadores querem averiguar as relações de Bashir — ainda que, neste momento, o entendimento seja de que ele agiu sozinho. Há indícios de que o homem enfrenta sérios problemas emocionais. Nada, porém, está descartado. O governo, enfatizou o primeiro-ministro, atuará com todo o rigor que o fato exige para dar as explicações que a sociedade portuguesa espera. A pressão política sobre o governo está forte, vinda de todos os lados, da esquerda à direita.

Presidente do principal partido de oposição, o PSD, Luís Montenegro afirmou que "esse crime hediondo deve ser punido exemplarmente". Líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins assinalou que o duplo assassinato precisa de resposta contundente. Para o líder da Iniciativa Liberal, Rui Rocha, o "ato chocante merece profunda condenação". Presidente do Chega, da extrema direita, André Ventura disse que o governo "tinha sangue nas mãos" por causa da "bandalheira da política de portas abertas" e que é preciso "um reforço no controle" de imigrantes provenientes de Estados "onde impera uma cultura de violência". Tais declarações mereceram repúdio de especialistas, por estimularem a perseguição a estrangeiros e um discurso de ódio.

Porta-voz do Centro Ismaili, Faizal Ali afirmou que toda a comunidade muçulmana está de luto e chocada com as mortes de Mariana e Farana. Ele ressaltou que a instituição, conhecida por seu trabalho humanitário, dará todo suporte às famílias das vítimas. O Centro também acolherá os três filhos do assassino. "Confiamos no esclarecimento do caso e de tudo o que aconteceu", frisou, lembrando que o professor atacado conseguiu se deslocar sozinho para um hospital — de lá, foi levado a um centro especializado para ser operado.

Vizinhos próximos ao Centro Ismaili mostraram-se atordoados pela violência que tirou a vida das duas mulheres. Sem quererem se identificar, afirmaram que nunca haviam presenciado nenhum fato que pudesse remeter ao que se viu ontem. Pelos relatos deles, o clima sempre foi pacífico no local, que recebia centenas de pessoas ao longo do dia para aulas de português e inglês, para alimentação dos mais carentes e para apoio emocional, uma vez que ali era referência para as comunidades islâmicas.

Tráfico de pessoas

Além do rápido esclarecimento das razões que levaram a um crime tão brutal para acalmar a população, o grande desafio de Portugal será integrar os imigrantes à sociedade local. O país enfrenta o mesmo problema de outras nações europeias, onde parte dos estrangeiros fica relegada a guetos, sem o apoio e a infraestrutura necessária para uma vida digna. São comuns os relatos de pessoas vivendo em situações aviltantes. Há imóveis abrigando até 50 cidadãos, a maioria de países asiáticos. Recentemente, dois indianos morreram em um incêndio no centro de Lisboa e quase duas dezenas ficaram feridas.

Há outro problema sério: o tráfico de pessoas. Grupos especializados têm cooptado cidadãos em países com péssimas condições de vida, oferecendo trabalho em Portugal. Quando chegam, são levados para trabalhar na agricultura, principalmente no Alentejo. Quando acaba a colheita, são abandonados à própria sorte. É frequente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) libertar pessoas em condições análogas à escravidão. O prefeito de Lisboa, Carlos Moedas, tem criticado muito o que chama de omissão do poder público e de abusos do setor privado. Portugal contabiliza, atualmente, mais de 800 mil estrangeiros formais, sendo que um terço é de brasileiros.

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Quem são as vítimas

Mariana Jadaugy, 24 anos

Vítima de ataque em Lisboa. Mariana Jadaugy, 24 anos, trabalhava no Centro Ismaili de Lisboa.
Vítima de ataque em Lisboa. Mariana Jadaugy, 24 anos, trabalhava no Centro Ismaili de Lisboa. (foto: Fotos: Redes Sociais/Reprodução)

A jovem se descrevia nas redes sociais como apaixonada pelas relações internacionais e uma comunicadora alegre. Era muito presente no Centro Ismaili, tornando-se uma das referências no acolhimento a refugiados. Desde muito cedo, Mariana sabia que o seu caminho seria lidar com migrações. Tanto que se especializou no tema e aprofundou o aprendizado em um mestrado que lhe abriu muitas portas para estender as mãos aos vulneráveis.

Farana Sadrudin, 49 anos

 Segunda vítima de ataque em Lisboa. Farana Sadrudin, 49 anos, morta a facadas em Centro Islâmico de Lisboa.
Segunda vítima de ataque em Lisboa. Farana Sadrudin, 49 anos, morta a facadas em Centro Islâmico de Lisboa. (foto: Redes Sociais/Reprodução)

Sobrinha do representante da comunidade ismaelita em Portugal, Nazin Ahmad, tinha como uma de suas principais preocupações ajudar os refugiados a se inserirem no mercado de trabalho e a conseguir moradias dignas. Sempre ressaltava que lidava com pessoas em situação tão difícil, que aquilo mexia com ela profundamente. Ela completaria 50 anos em 3 de abril próximo e comemoraria a data na República Dominicana.

Linhagem direta de Maomé

O afegão que matou duas mulheres a facadas em Lisboa faz parte do grupo ismaelita, que é xiita. É a única comunidade muçulmana liderada por um imã vivo, com descendência direta do profeta Maomé, o príncipe Karim Aga Khan. Em todo o mundo, essa ala muçulmana conta com cerca de 15 milhões de pessoas. Em Portugal, são aproximadamente 8 mil.

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