Em 2018, Maria Silvia Fiengo e Francesca Pardi estavam entre os primeiros casais do mesmo sexo da Itália a serem registrados como pais.
O prefeito de Milão, Giuseppe Sala, assumiu uma postura progressista e permitiu que crianças nascidas de pais do mesmo sexo fossem reconhecidas na ausência de uma legislação nacional clara.
Para Maria Silvia e Francesca — e seus quatro filhos Margherita, os gêmeos Giorgio e Raffaele e Antonio — serem finalmente reconhecidos como uma família depois de anos de barreiras legais e discriminação foi "verdadeiramente incrível".
Esta semana, no entanto, o que era considerada uma grande vitória pela igualdade e aceitação da comunidade LGBTQIA+ sofreu um revés.
O governo de direita da Itália instruiu a Prefeitura de Milão a parar de registrar os filhos de pais do mesmo sexo, reacendendo um debate em torno da agenda conservadora da primeira-ministra, Giorgia Meloni.
Famílias, ativistas e opositores políticos protestaram contra a proibição em Milão neste sábado (18/3).
"Explique ao meu filho que não sou a mãe dele", dizia uma placa erguida em meio a um mar de bandeiras de arco-íris que enchiam uma das praças centrais da cidade.
Meloni, que lidera o partido de extrema-direita Irmãos da Itália, fez da retórica anti-LGBT um dos pilares de sua campanha eleitoral, prometendo proteger os valores tradicionais.
"Sempre fomos uma família, mas sermos reconhecidos oficialmente como tal pelo nosso próprio prefeito nos fez sentir bem-vindos", diz Maria Silvia Fiengo. "Hoje, vendo o que o governo está fazendo e sabendo que outras famílias não poderão ter a mesma oportunidade, nos sentimos desanimados".
A Itália legalizou as uniões civis entre pessoas do mesmo sexo em 2016 sob um governo de centro-esquerda.
No entanto, a forte resistência de grupos católicos e conservadores fez com que a lei não concedesse direitos de adoção também a casais do mesmo sexo. Os opositores disseram que isso encorajaria a barriga de aluguel, que ainda é ilegal na Itália.
Isso deixou um vácuo regulatório em torno de vários aspectos da vida familiar LGBT, incluindo a adoção. Soluções para contornar entraves burocráticos foram alcançadas individualmente, à medida que os casos iam para a Justiça.
Algumas autoridades locais, incluindo o prefeito de centro-esquerda de Milão, decidiram que os filhos de casais do mesmo sexo seriam registrados de forma independente.
Mas Sala anunciou que foi forçado a interromper a prática depois que recebeu uma carta do Ministério do Interior. Ele citou uma decisão da Suprema Corte da Itália exigindo a aprovação do tribunal para o reconhecimento legal do status parental.
"É um claro retrocesso, política e socialmente, e me coloco no lugar daqueles pais que pensaram que poderiam contar com essa possibilidade em Milão", disse o prefeito em seu podcast diário Buongiorno Milano, acrescentando que não tinha outra escolha senão cumprir a ordem da Justiça.
Crianças a quem é negado o direito de ter ambos os pais reconhecidos em sua certidão de nascimento são deixadas em um limbo legal.
Suas famílias enfrentam uma série de desafios. No cenário mais extremo, se o pai legalmente reconhecido morrer, os filhos poderiam ficar sob a tutela do Estado e enfrentar a perspectiva de ficarem órfãos.
Na comunidade LGBT da Itália, isso levou a um crescente sentimento de frustração e ansiedade, enquanto a abordagem hostil do governo de Meloni aos direitos LGBT exacerbou ainda mais o problema.
"As crianças acabam tendo acesso limitado a serviços e benefícios essenciais, como assistência médica, herança e pensão alimentícia", diz Angelo Schillaci, professor de direito da Universidade Sapienza, em Roma.
"Atualmente, apenas um dos pais é reconhecido pela lei, o outro é um fantasma. Na vida real, pais e filhos brincam juntos, cozinham juntos, praticam esportes e saem de férias juntos. Mas, no papel, eles estão separados; o Estado não os vê. É uma situação paradoxal", acrescenta o acadêmico.
Giorgia Melonia, a primeira-ministra da Itália, eleita em setembro passado, tem sido uma defensora da família tradicional e dos valores cristãos, fazendo campanha contra o que ela chama de "ideologia de gênero" e o "lobby LGBT".
Meses antes de chegar ao poder, ela propôs uma lei que transformaria a barriga de aluguel em crime universal, e isso ainda está na agenda de seu partido.
"Já existem meninos e meninas com duas mães e dois pais na Itália, a primeira-ministra Meloni deveria entender isso", diz Alessia Crocini, presidente da associação Rainbow Families, de apoio a famílias LGBT.
"Devemos garantir aos nossos filhos os mesmos direitos que seus pares."
"Nos sentimos atacadas como pais", diz Angela Diomede, que participou do protesto em Milão com sua esposa e sua filha de seis anos.
"Não entendo essa obsessão do governo em visar crianças, não leva a lugar nenhum."
O Senado da Itália também rejeitou esta semana uma proposta para um certificado de paternidade europeu padronizado que seria reconhecido em todos os 27 estados-membros da União Europeia.
Para as crianças, significaria prova de paternidade, e para os pais, a garantia de serem reconhecidos em todo o bloco, protegendo direitos como herança e cidadania.
Mas para o ministro da infraestrutura da Itália, Matteo Salvini, de extrema direita, foi um passo longe demais.
"Bruxelas (sede do Parlamento Europeu) não pode nos impor o conceito de família: uma criança precisa de uma mãe e de um pai. Filhos não se compram, não se alugam, não se escolhem na internet", disse.
Riccardo Magi, um parlamentar da oposição a favor do certificado europeu, rebateu: "O mundo vai para um lado, o governo [italiano] vai para outro."
O debate está sendo acompanhado de perto da cidade de Udine, no nordeste do país, por Stefano Zucchini e seu marido, Alberto.
Eles têm dois gêmeos de seis anos, nascidos no Estado americano da Califórnia por meio de barriga de aluguel, e esperam ser legalmente reconhecidos como uma família um dia.
Nos EUA, ambos são reconhecidos como pais. Mas, na Itália, Stefano é considerado pai solteiro, e esse status legal torna a vida em família complicada.
"Mesmo coisas que são normais para a maioria das pessoas, como levar as crianças ao jardim de infância ou a uma consulta médica, podem se tornar um desafio", diz ele à BBC.
"Eles não nos veem, mas nosso amor continua forte como sempre. Isso, com certeza, existe."
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