França

Reforma da previdência na França pode ter alto custo político para Macron

Presidente ordena à primeira-ministra, Élisabeth Borne, a ativação do artigo 49.3 para forçar a adoção da lei sobre as aposentadorias sem a necessidade de votação no Parlamento

Rodrigo Craveiro
postado em 17/03/2023 04:00
 (crédito: Loic Venance/AFP)
(crédito: Loic Venance/AFP)

O governo de Emmanuel Macron pagou para ver. Contra quase tudo e todos, o presidente da França determinou à sua primeira-ministra, Élisabeth Borne, que ativasse o artigo 49.3 da Constituição para a adoção da polêmica reforma previdenciária sem a necessidade de votação na Assembleia Nacional. "Não podemos apostar no futuro das nossas pensões", declarou Borne, ao acionar o mecanismo, ante a iminência de uma derrota no Parlamento. Com a manobra, considerada de alto risco por cientistas políticos, Macron tende a amargar um aumento da impopularidade, enquanto sua premiê corre o risco de sofrer uma moção de confiança. Pela reforma de Macron, a idade da aposentadoria seria adiada de 62 para 64 anos até 2030. Por sua vez, a exigência de contribuição com 43 anos (e não 42, como antes) para receber a pensão completa seria adiada para 2027. 

A sessão em que Borne ativou o artigo 49,3 foi caótica e tensa, e precisou ser interrompida por dois minutos. Enquanto a premiê discursava, parlamentares da oposição de esquerda cantaram a Marselhesa, o hino nacional, e gritaram, enquanto Borne viu-se forçada a alterar a voz. Os legisladores exibiram cartazes com a frase "64 anos é não" — uma alusão à idade de aposentadoria. Os gritos de "Demissão! Demissão!" ecoaram no Hemiciclo. Foi a 100ª vez em que o artigo foi acionado em 65 anos. Mesmo assim, o mecanismo deve causar um tensionamento com os sindicatos. Ontem, protestos se espalharam por Paris e pelo interior.

Para impedir a adoção da reforma, os deputados têm a única opção de aprovarem uma moção de censura ao governo, o que pode custar o cargo da primeira-ministra. Líder do partido de extrema-direita Reagrupamento Nacional, Marine Le Pen não perdeu tempo e apresentou a primeira moção. "É a confirmação de um fracasso total de Macron", declarou. Antes de Borne ativar o artigo 49.3, o diário liberal L'Opinion advertiu que a atitude "reforçaria a imagem de brutalidade" do poder presidencial e "alimentaria a crise social". Em caso de fracasso da moção de censura, a esquerda pretende apresentar um recurso ante o Conselho Constitucional para travar a promulgação do decreto de Macron.

Riscos

"Na França, o presidente tem mais poderes do que o premiê. Em algumas situações, ele pode editar um decreto sem anuência do Parlamento. O presidente consegue até ordenar algumas coisas ao primeiro-ministro, o que não é comum em um regime parlamentarista", afirmou ao Correio Demétrius Pereira, professor de relações internacionais da ESPM-SP e do Centro Universitário Belas Artes. De acordo com ele, uma moção de confiança afetaria Borne. "Ela poderia perder o cargo, levar à dissolução do Parlamento e provocar eleições. A nova configuração da Assembleia Nacional poderia não ser tão favorável a Macron."

Demétrius admite que a medida tomada pelo Executivo, sem consultar o Legislativo, pode soar como autoritária. "A França tem um histórico de uma população bastante engajada na defesa dos direitos sociais, e isso ocorre desde a Revolução Francesa. É um país conhecido pelo fato de os direitos sociais serem bastante protegidos", lembrou.

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  • Parlamentares da esquerda Nupes protestam contra a premiê (C)
    Parlamentares da esquerda Nupes protestam contra a premiê (C) Foto: Alain Jocard/AFP
  • Manifestante sobre semáforo  segura placa com palavras de ordem contra Macron, em Place de la Concorde, em Paris
    Manifestante sobre semáforo segura placa com palavras de ordem contra Macron, em Place de la Concorde, em Paris Foto: Thomas Samson/AFP

Hipertexto - Drible no Parlamento

O artigo 49.3, utilizado pelos presidentes para driblar o Parlamento da França, afirma que  "o primeiro-ministro pode, após deliberação do Conselho de Ministros, levantar a responsabilidade do governo ante a Assembleia Nacional sobre a votação de um texto". Os deputados podem impedir a aplicação da lei apenas se, nas "24 horas seguintes", apresentarem moção de censura contra o governo, a qual deverá ser submetida à votação, especifica o artigo da Constituição de 1958. Apesar da má reputação do texto, os diferentes governos da Quinta República se voltaram para ele. O último antecessor de Macron, François Hollande, denunciou seu uso pelo primeiro-ministro conservador Dominique de Villepin, em 2006, como uma "negação da democracia". Naquele ano, o socialista estava na oposição. Uma década depois e durante sua presidência, seu primeiro-ministro Manuel Valls usou esse dispositivo em até seis ocasiões. Nenhum dos 16 chefes de governo que usaram esse instrumento desde 1958 sucumbiu a uma moção de censura apresentada em resposta. O primeiro-ministro socialista Michel Rocard (1988-1991) usou o procedimento 28 vezes e ficou a cinco votos de de cair em novembro de 1990.

 

 

 

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