Tel Aviv — Sul de Israel, fronteira nordeste da Faixa de Gaza, a 60km de Tel Aviv e a 35km da Cisjordânia. Ao longe se ouvem disparos feitos por soldados durante exercícios de tiro ao alvo. O barulho quase intermitente de um UVA (drone ou veículo não tripulado) também empresta ao local uma atmosfera de tensão. No horizonte, a 500m, as primeiras casas e prédios do território palestino dividem a paisagem. Dali, é possível avisar Beit Hanoun, parte do campo de refugiados de Jabalia e a Cidade de Gaza.
Antes, a algumas centenas de metros, uma cerca de 8m de altura serpenteia por 20km até encontrar o Mediterrâneo. Foi erguida para impedir que militantes do Hamas e da Jihad Islâmica, ou mesmo um lobo solitário, invadam o Estado judeu e cometam atentados contra civis e militares. É a última linha de defesa israelense.
Os olhos não conseguem enxergar a fortaleza quase inexpugnável: abaixo da estrutura de arame está enterrada uma barreira de concreto com 1m de espessura — a profundidade é mantida em segredo pelas autoridades de Israel — e coberta por sensores de movimento. O custo da construção foi de US$ 1 bilhão.
Antenas vermelhas e brancas erguidas do lado israelense escondem câmeras e sensores que perscrutam cada milímetro de terra, dia e noite. A fronteira se estende por 45km de circunferência. Entre 2,3 milhões e 2,4 milhões de palestinos vivem na Faixa de Gaza, em 365km², uma das regiões de maior densidade demográfica do mundo.
Ex-porta-voz internacional das Forças de Defesa de Israel (IDF) e consultor do Fórum de Segurança e Defesa de Israel (IDSF), Jonathan Conricus explicou que os militares têm um sistema de monitoramento fronteiriço eficiente, que entra em alerta assim que alguém tenta se aproximar do lado de Gaza. "Até 2020, a ameaça subterrânea representava um desafio militar para as IDF e aterrorizava civis israelenses", disse o ex-comandante, que acumula 24 anos de experiência em Gaza e chegou a combater militantes do Hamas e da Jihad Islâmica. "Túneis foram escavados sob a fronteira e em direção a comunidades de Israel e a posições militares israelenses. Elas são uma arma muito eficaz, nas quais esses grupos trabalharam durante décadas. Eu me lembro de caçar túneis no sul da Faixa de Gaza, em 2004", acrescentou.
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Ele explicou que, no enclave, existe uma verdadeira indústria de túneis, com empreiteiros, operários e conhecimento acumulado. Algumas dessas galerias subterrâneas foram abertas dentro de casas comuns e se estendiam por 2 a 3km até o outro lado da fronteira. "Geralmente, são três homens a cada escala de oito horas, com a obra funcionando 24 horas por dia. O trabalho é todo manual. O solo é feito de arenito", relatou Conricus.
Nesse sistema de túneis, o Hamas fabrica foguetes e desloca as plataformas de lançamento até buracos abertos no solo, em meio às casas de civis, e cobertos para não serem detectados pela aviação israelense.
Até 31 de outubro de 2017, os judeus temiam que militantes palestinos literalmente "brotassem" em seus quintais. Naquele dia, Israel utilizou, pela primeira vez, uma nova tecnologia que detecta túneis do alto. Desde então, as IDF encontraram e destruíram 22 túneis sob a fronteira. "Nós desmantelamos todas essas galerias dentro do nosso território", disse Conricus. Nos últimos seis anos, nenhum outro túnel foi encontrado.
Entre o fim de 2017 e o começo de 2018, o Hamas iniciou a chamada "marcha do retorno". Dezenas de milhares de palestinos se reuniam nas cidades do enclave, marchavam em direção à cerca da fronteira e tentavam invadir Israel. O Hamas recrutou civis para tentar escalar a cerca, organizou ônibus, incitou os participantes nas mesquitas e mídias sociais. Também forneceu um dia livre de conexão à internet via wi-fi à vontade, um luxo para os moradores de Gaza. Muitos foram alvejados pelas IDF abaixo do joelho.
Em 2005, o então premiê israelense, Ariel Sharon, levou adiante o plano de retirada unilateral do enclave árabe. "Foi uma experiência inédita e muito traumática. Cerca de 8 mil civis israelenses foram despejados à força pelas IDF de suas casas na Faixa de Gaza. Eles foram reassentados em comunidades do sul do país", explicou Conricus.
O outro lado
Do outro lado da fronteira, em território palestino, a tensão e o medo também são constantes. "A vida, aqui na Cidade de Gaza, é baseada na rotina. Tudo se repete. Para nos sentirmos seguros, precisamos sair do território. A política e a guerra destroem sonhos em Gaza e a nossa saúde mental", lamentou ao Correio o fotógrafo freelance palestino Majdi Fathi, 43 anos.
Segundo ele, o barulho dos drones e dos caças israelenses é "muito irritante". "Não conseguimos dormir. Quando ouvimos o som, ficamos com medo de Gaza ser bombardeada", disse Fathi. "Eu espero pela paz e o retorno de nossas terras e de Jerusalém aos palestinos. Não sou político, mas, na condição de cidadão de Gaza, odeio a guerra. Os políticos devem encontrar uma solução para que os dois povos vivam em paz", acrescentou.
Morador do bairro de Rimal, na Cidade de Gaza, a 10km da fronteira norte, o jornalista Shuaib Yousef, 39, admitiu ao Correio que se acostumou com os drones. "Eles estão no céu, dia e noite. Mas a coisa mais difícil é sempre escutá-los na escuridão. Meus filhos dizem: 'O que é esse som?'. Esperamos que a calma prevaleça e que vivamos em paz e em prosperidade", desabafou, por meio do WhatsApp. Yousef também se mostra esperançoso em relação a um futuro de calmaria. "Acho que os dois povos concordam com a vida em paz. O problema são os governos. A saída é o estabelecimento de um Estado palestino, e todo o conflito acabará."
*O repórter viajou a convite da Embaixada de Israel
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A vida no kibbutz brasileiro
A apenas 7,5km da fronteira com a Faixa de Gaza e a 9km da cidade de Sderot, o "kibbutz mais brasileiro do mundo" concentra 950 habitantes — 60% deles são brasileiros, filhos ou netos. Em meio a muita vegetação, os moradores de casas simples de Bror Hayil têm playground para as crianças, centro de convivência para os idosos, sinagoga, enfermaria, academia, além do Barbosa — um restaurante batizado em homenagem ao compositor paulista Adoniran Barbosa. Um pequeno museu cultiva a memória de Oswaldo Aranha, diplomata gaúcho que teve papel fundamental na criação do Estado de Israel, em 1948.
A 100m dali, um monumento a Adoniran: um vagão pintado de verde e amarelo, carinhosamente chamado de "Trem das Onze", referência a um de seus maiores sucessos. Para os 70 mil habitantes de cidades e de dezenas de kibbutzim ao longo do "envelope de Gaza, incluindo os de Bror Hayil, a vida em 95% do tempo é quase um paraíso. Segundo eles, os 5% restantes são um inferno.
Gerente do Restaurante Barbosa, Eti Abutbul nasceu em Bror Hayil e tem parentes no Brasil. "Gosto da vida no kibbutz, onde se diz que 'Deus é brasileiro'. Mas tem os foguetes... Meus filhos estudam perto de Sderot e sofrem mais. Estou dura como pedra, não tenho medo", disse à reportagem. "Um dia, a paz sairá. As pessoas que jogam foguetes para cá sabem que há mães dos dois lados. Nenhuma mãe quer que o seu filho morra."
Diretor de vendas de uma empresa na área de high-tech, Yanai Gilboa-Glebocki, 58, é filho de Bror Hayil e tem pais brasileiros. "Nos últimos 22 anos, vivemos uma realidade em que, às vezes, em intervalo de meses, temos disparos de foguetes de Gaza para Israel. Não é fácil, mas, desde 2009, o Exército conta com o sistema 'Domo de Ferro', que intercepta a maioria desses projéteis", afirmou ao Correio.
Ele citou o acionamento das sirenes antiaéreas durante a madrugada como uma experiência "muito difícil". "Temos crianças e adultos que sofrem de transtorno do estresse pós-traumático." Quando há um disparo de foguete, os moradores de Bror Hayil e de kibbutzim próximos têm 15 segundos para buscar abrigo. Algumas casas possuem um quarto reforçado, que serve de esconderijo. Yanai frisou que os vizinhos do outro lado da fronteira "sofrem muito mais". "O Exército de Israel é mais forte. Um dia, vamos precisar que eles invistam em educação, e não em mísseis."
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Complexidade
Ofir Libstein, prefeito do Conselho Regional de Sha'ar HaNegev, região vizinha ao enclave palestino, é responsável por 9,3 mil moradores de 12 comunidades do "envelope". "Algumas estão a menos de 1km de Gaza e, por isso, têm enfrentado uma realidade de segurança complexa ao longo das duas últimas décadas", contou ao Correio.
Há ocasiões em que os lançamentos de foguetes evoluem para dias de intensos combates e operações militares. "Túneis do terror, balões incendiários e tumultos ao longo da fronteira são a rotina de nossos cidadãos, a qual vem de mãos dadas com múltiplos custos e desafios, como o bem-estar mental e físico da comunidade, a economia e o desenvolvimento", acrescentou o prefeito, que vive no kibbutz de Kfar-Aza, 17km ao sul de Bror Hayil e a 2km da Faixa de Gaza.
Na ânsia de criar um futuro para suas crianças, Libstein e colegas fundaram a Unidade de Desenvolvimento Econômico Israel-Gaza para Cooperação Transfronteiriça. Ela dirige programas que constroem conexões entre as pessoas. "Um deles é o 'Bridging'. Uma vez por mês, 25 jovens de Gaza são convidados a visitar e passar um dia em nossa região, onde se encontram com moradores de Sha'ar HaNegev." Libstein propôs um exercício: "Imagine dois grupos se reunindo pela primeira vez, cada qual tendo crescido com uma narrativa separada do outro, com temas de profunda desconfiança e dor".
Por meio de diálogos e experiências, os moradores de Gaza veem que têm mais em comum com os judeus dos kibbutzim do que imaginavam. "Plantamos sementes da coexistência de um futuro melhor", disse Libstein.