ESTADOS UNIDOS

Trump: o que as estrelas da Fox News nos EUA realmente pensavam sobre o ex-presidente

Enquanto os apresentadores davam a Trump uma plataforma para questionar a legitimidade dos resultados das eleições, nos bastidores muitos na rede não acreditavam nas alegações do republicano

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BBC Geral
postado em 10/03/2023 08:27 / atualizado em 10/03/2023 08:27

Um processo de difamação de US$ 1,6 bilhão (cerca de R$ 8,2 bilhões) contra a Fox News mostrou o funcionamento interno da poderosa rede de TV a cabo conservadora dias após a eleição presidencial de 2020 nos Estados Unidos, que terminou com a vitória de Joe Biden sobre Donald Trump.

A Dominion Voting Systems, fabricante de urnas eletrônicas, alega na Justiça que o canal divulgou informações falsas. A Fox afirmou que dispositivos ajudaram Biden e os democratas a "roubarem a eleição".

Para se defender, a empresa convocou dezenas de executivos e jornalistas da Fox para testemunhar, além de usar milhares de mensagens de texto e e-mails dos funcionários do canal.

Essas mensagens mostram as conversas muitas vezes acaloradas que ocorreram a portas fechadas, enquanto a Fox News — que pertence ao magnata Rupert Murdoch — procurava lidar com a tentativa de Trump de anular os resultados das eleições de 2020.

‘Donald Trump cada vez mais louco'

A Fox News teve um relacionamento complicado com Trump ao longo dos anos.

Ele entrou em conflito com a rede nos primeiros dias de sua candidatura presidencial em 2016, mas, depois que chegou à Casa Branca, a cobertura do canal se tornou amplamente positiva para seu governo, principalmente nos programas de opinião no horário nobre apresentados por Tucker Carlson, Sean Hannity e Laura Ingraham.

Nos dias após a derrota para Biden, em 2020, no entanto, os documentos do processo mostram que muitos executivos e apresentadores da Fox criticaram Trump e até zombaram do ex-presidente.

Murdoch, o presidente da Fox News, escreveu em um e-mail que o então presidente dos EUA — e seu advogado, Rudy Giuliani — estavam ficando "cada vez mais loucos" após a eleição.

Carlson, apresentador do programa de maior audiência da rede, disse que odiava Trump "com paixão" e que sua presidência foi um desastre. Ele previu que em breve seu programa seria capaz de ignorar o ex-presidente.

Ele também zombou das empresas de Trump. "Todas elas fracassaram", disse Carlson em um texto para o produtor de seu programa.

manifestantes contra a Fox News
Reuters
As revelações provocaram protestos do lado de fora da sede da Fox News

Esse é o tipo de opinião compartilhada pelos críticos de Trump — os mesmos que são frequentemente alvo da ira de Carlson em seu programa noturno.

O ex-presidente é conhecido por levar as críticas para o lado pessoal e também por dificilmente esquecê-las. Isso significa que a relação de amor e ódio de Trump com a Fox News pode estar em efervescência no momento em que a campanha presidencial de 2024 esquenta.

Murdoch duvidou das reclamações de Trump

Enquanto os apresentadores da Fox News davam a Trump e seus apoiadores uma plataforma para questionar a legitimidade dos resultados das eleições de 2020, nos bastidores muitos na rede não acreditavam nas alegações do republicano e criticavam a cobertura da rede.

Em novembro, Murdoch disse a Col Allan, editor do jornal New York Post (do mesmo grupo da Fox), que metade do que Trump declarou após a eleição era falso e nocivo.

Foi uma opinião compartilhada por outros na rede, incluindo alguns dos proeminentes apresentadores do horário nobre que manifestavam publicamente apoio a Trump.

Hannity, por exemplo, disse em um depoimento que não acreditou "nem por um segundo" nas alegações eleitorais do consultor jurídico de Trump, Sidney Powell.

Em uma mensagem de texto para outros apresentadores noturnos da Fox, Carlson escreveu que a afirmação de Powell de que as máquinas de votação Dominion roubaram a eleição "parece insana para mim", acrescentando que o consultor estava "deixando todos paranoicos e loucos, inclusive eu".

Essas opiniões contrastantes — críticas em particular e tolerantes ou mesmo de apoio em público — expuseram a Fox News não apenas a riscos na Justiça, mas também a acusações de hipocrisia.

Dois anos após os comentários feitos em privado, Carlson, durante um programa que apresentava novas imagens do ataque de apoiadores de Trump ao Capitólio em 6 de janeiro, afirmou que "a eleição de 2020 foi uma grave traição à democracia americana" e que "nenhuma pessoa honesta pode negar [isso]".

Suas falas sobre a invasão do Capitólio provocaram duras críticas da Casa Branca e indignação de alguns congressistas republicanos.

Tucker Carlson com Donald Trump em julho de 2022
Getty Images
Tucker Carlson com Donald Trump em julho de 2022

Fox preocupada com a perda de apoiadores de Trump

À medida que continuavam as tentativas de Trump de contestar sua derrota na eleição, ficava cada vez mais claro para os executivos da Fox News que criticar o republicano poderia gerar uma reação negativa por parte dos telespectadores do canal.

"Não podemos fazer as pessoas pensarem que nos voltamos contra Trump", escreveu um produtor de Carlson a um colega.

Por trás das câmeras, mostram os documentos do processo da Dominion, os executivos da Fox temiam que uma cobertura que colocasse em dúvida as reivindicações de Trump pudesse levar telespectadores conservadores a outros veículos de notícias de direita, como a Newsmax.

Carlson disse que a Fox estava "brincando com fogo".

"Os executivos entendem quanta credibilidade e confiança perdemos com nosso público?", perguntou Carlson em uma mensagem para um produtor. "Uma alternativa como a Newsmax pode ser devastadora para nós."

De acordo com a ação da Dominion, essa foi a motivação financeira por trás da decisão da rede de apoiar o negacionismo eleitoral mesmo sabendo ser falso.

"É notável como fracos índices de audiência levam bons jornalistas a fazerem coisas ruins", escreveu Bill Sammon, editor-gerente da Fox, em um e-mail lamentando o foco da rede em alegações de fraude eleitoral.

Âncora do horário nobre x jornalistas

Os processos judiciais do Dominion sugerem que a Fox News estava repleta de divisões internas.

Jornalistas do noticiário mais tradicional foram colocados contra os apresentadores de programas de opinião da rede, e vice-versa. O apresentador do horário nobre Sean Hannity disse ao apresentador matinal Steve Doocy que estava sendo destruído pelos colegas do setor de notícias.

"Eles não se importam", respondeu Doocy. "Eles são JORNALISTAS."

Em um bate-papo em grupo com Hannity e sua colega apresentadora Laura Ingraham, Carlson escreveu: "Estamos todos oficialmente trabalhando para uma organização que nos odeia".

No lado jornalístico da Fox, o sentimento era mútuo.

"Em meus 22 anos de afiliado à Fox, esta é a coisa mais próxima que já vi de uma crise existencial, pelo menos jornalisticamente", escreveu Sammon, editor-chefe da rede na época.

Os apresentadores do programa matinal Fox & Friends
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Os apresentadores do programa matinal Fox & Friends

Murdoch disse que odiava a equipe da rede encarregada de projetar os vencedores em cada Estado — na noite da eleição a Fox foi a primeira a projetar que Biden venceria no Arizona, um dos Estados mais decisivos para a disputa.

Dois meses depois, um dia após o Capitólio dos EUA ser atacado por partidários de Trump, Murdoch perguntou se alguns de seus apresentadores de opinião "foram longe demais" ao divulgar informações falsas sobre as eleições.

"Ainda estão atirando lama em nós", escreveu o executivo, em resposta às críticas de alguns senadores republicanos de que sua rede era responsável pela violência.

O que a Fox News está dizendo em defesa

Não é simples provar um caso de difamação sob a lei dos EUA.

A Dominion terá que provar que a Fox News sabia que as acusações de Trump sobre o resultado da eleição eram falsas e que causaram danos significativos à sua reputação e seus interesses comerciais.

Por isso são fundamentais as conversas entre executivos e jornalistas da Fox News sobre a cobertura da rede em textos e e-mails privados.

As mensagens mostram uma discrepância entre o que eles acreditavam ser verdade e o que foi levado ao ar para milhões de telespectadores.

Em comunicado, a Fox News afirmou que os advogados da Dominion estão "pintando uma imagem imprecisa."

A empresa de urnas eletrônicas, afirma a Fox News, "caracterizou erroneamente os registros, selecionou citações despojadas de contexto e preencheu páginas e páginas em fatos que são irrelevantes sob os princípios da lei de difamação".

Murdoch, por sua vez, lamentou a forma como a Fox cobriu as disputas pós-eleitorais, mas disse que sua rede estava fazendo seu trabalho.

"Informamos as notícias e temos dezenas de pessoas por dia na rede que estão comentando as notícias", disse Murdoch em depoimento no processo. "E isso foi uma grande notícia. O presidente dos Estados Unidos estava fazendo afirmações absurdas, mas isso era notícia."

Mesmo que a Dominion não vença o processo, o dano à imagem da Fox News já é significativo — e pode contribuir para o que alguns dos executivos da rede pareciam mais temer: a perda de confiança de seus leais telespectadores conservadores.

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