Afinal, o que disse Putin?
O líder russo fez um dos cada vez mais incomuns discursos presenciais ao Parlamento russo, no qual ele qualificou o momento como "um divisor de águas" na história da Rússia, uma situação "difícil" e um desafio existencial para a identidade russa, como Putin a compreende.
"É um momento de mudanças cardeais e irreversíveis em todo o mundo, os eventos históricos mais importantes que moldarão o futuro de nosso país e de nosso povo, quando cada um de nós carrega uma responsabilidade colossal", disse.
Na sequência, ele culpou totalmente o "Ocidente" (leia-se EUA e Otan) por detonar a "operação especial" na Ucrânia, como o Kremlin chama a guerra iniciada em fevereiro de 2022.
"Eu quero repetir que são eles os responsáveis pela guerra. Nós estamos usando a força para tentar interrompê-la", disse Putin, ao longo de mais de uma hora e meia de discurso.
O argumento tem sido usado reiteradamente por Putin que, em 2014, culpou a União Europeia pela invasão militar russa à Crimeia.
Reiteradamente acusado de ser um autocrata por Biden e autoridades europeias, Putin afirmou em seu discurso que os líderes das democracias ocidentais "têm tentado usar princípios como democracia e liberdade para defender seus valores totalitários" e "desviar a atenção da população de escândalos de corrupção e de problemas socioeconômicos".
O líder russo voltou a acusar a Ucrânia de neonazismo - exatamente como fez há um ano também diante do Parlamento russo em um discurso no qual afirmou que o território ucraniano é historicamente uma área russa, separada da Rússia por decisão do líder comunista Vladimir Lênin, em 1917.
Na ocasião, Putin disse ainda que havia sugerido ao então presidente americano Bill Clinton o ingresso da Rússia na Otan, mas que a sugestão não havia sido bem recebida.
E deixou claro que estava prestes a lançar uma invasão militar contra o vizinho - embora pouca gente apostasse que ele tentaria tomar até mesmo Kiev já nos primeiros atos de guerra.
Agora, Putin diz que as consistentes remessas de armas de países da Otan para a Ucrânia, que incluiu até tanques, alimentam o conflito.
"Quanto mais eles enviarem armas para a Ucrânia, mais teremos responsabilidade pela situação de segurança na fronteira russa. Esta é uma resposta natural."
Mas os recados de Putin não se destinavam apenas a ucranianos, americanos e europeus.
Putin também enviou claras mensagens à sua audiência doméstica.
Em meio a semanas extremamente mortíferas no front em fevereiro de 2023 - com mais de 800 mortes semanais de russos segundo autoridades ucranianas - e tendo de realizar uma espécie de recrutamento compulsório de jovens, Putin admitiu o peso para pais e familiares das baixas nos campos de batalha e prometeu um novo fundo de apoio a eles.
"Todos nós entendemos, eu entendo, como é insuportavelmente difícil agora para as esposas, filhos, filhas de soldados caídos, seus pais, que criaram defensores dignos da pátria", disse Putin.
Mas o principal anúncio de Putin ao mundo foi o que ele chamou de "suspensão" da participação russa no programa New Start, o último tratado de redução de armas nucleares entre EUA e Rússia ainda vigente atualmente.
"Sou forçado a anunciar hoje que a Rússia está suspendendo sua participação no tratado estratégico de armas ofensivas", disse Putin.
O tratado, assinado em 2010 e com prazo de vigência até 2026, tinha por objetivo limitar o número de ogivas nucleares mantidas pelos dois países, além de regular a implantação de mísseis e submarinos capazes de lançá-las.
Putin já vinha chamando as inspeções de "sem noção" e o Departamento de Estado dos EUA já acusava há algum tempo os russos de não cooperarem com inspeções de acordo com o acertado entre as duas potências.
Para David E. Sanger, que há quatro décadas cobre os tratados de não proliferação de armas nucleares para o jornal The New York Times, a ação "foi mais uma indicação de que a era do controle formal de armas pode estar morrendo".
O secretário de Estado dos EUA Antony Blinken chamou de "irresponsável" o anúncio de Putin mas disse que os americanos "seguem abertos para negociar tratados de armamentos a despeito de qualquer outra questão que esteja interferindo no relacionamento".
Para o editor de Rússia da revista britânica The Economist, Arkady Ostrovsky, o fato de o principal anúncio de Putin ter sido a suspensão de um acordo de armamentos evidencia as dificuldades - inesperadas pelo Kremlin - que o Exército russo têm enfrentado para conquistar porções do território ucraniano.
"Ele não tinha mais nada a anunciar", disse Ostrovsky à BBC. O analista nota, porém, que o discurso de Putin deixou claro a seu próprio povo que este é um caminho "sem retorno".
O campeão de xadrez russo Garry Kasparov, um crítico a Putin e hoje ativista dos direitos humanos, usou sua conta no Twitter para diminuir a importância da fala de Putin.
"As mentiras e discursos fracos de Putin expõem o quão pouco o mundo precisa temer a Rússia. Abandonar tratados que ele já ignora, as repetitivas ameaças nucleares que acabariam com sua vida confortável, as reclamações de uma guerra que só ele começou e pode acabar em um segundo", definiu Kasparov.
"Já disse muitas vezes que ele não é um enxadrista. É um jogador de pôquer apelando para blefes que possam explorar as fraquezas dos oponentes."
O que disse Biden?
Presidentes americanos costumam ser ciosos de símbolos e gestos. Biden já havia se mostrado afeito ao artifício - ao se vacinar publicamente contra a covid e ao visitar os familiares de negros mortos por policiais, por exemplo.
Mas o atual presidente americano provou ontem (20/2) que está literalmente disposto a ir longe por uma foto. Disfarçado e cercado por agentes do serviço secreto, Biden fez uma jornada qualificada pela imprensa americana como "surreal" e "arriscada" até desembarcar de um trem na capital ucraniana.
Biden se reuniu com o presidente ucraniano Zelensky, caminhou pelas ruas de Kiev e tirou fotos que certamente estimularam as palavras de Putin no Parlamento.
A resposta de Biden veio algumas horas mais tarde em um discurso de pouco mais de 20 minutos, em oposição aos cem minutos que Putin falou. Biden respondeu ao russo, mas também expressou apoio político aos aliados da Otan e tentou animar a audiência americana.
Quase um ano atrás, Biden também falava a uma plateia em Varsóvia, e ele fez questão de rememorar o fato.
"Um ano atrás, o mundo estava se preparando para a queda de Kiev. Acabei de voltar de uma visita a Kiev e posso relatar que a cidade continua forte, orgulhosa, altiva e, o mais importante, livre", disse Biden. "A Ucrânia nunca será uma vitória para a Rússia."
De acordo com Biden, Putin está sendo confrontado por forças "que não esperava há um ano". Segundo ele, após quase um ano de guerra, "líderes democráticos estão mais fortes e os autocratas estão mais fracos".
Enfrentando crescentes questionamentos de parte da população americana e da oposição sobre o apoio multibilionário que tem dado à Ucrânia, Biden tentou descrever o conflito no país como uma luta pelo princípio mais caro aos EUA: a liberdade.
Indiretamente pediu paciência e descartou vislumbrar o fim do conflito. "A defesa da liberdade não é um trabalho de um dia ou de um ano", afirmou.
O presidente americano prometeu novas sanções contra a Rússia ainda esta semana - o que é recebido com ceticismo por analistas já que até agora o Kremlin se mostrou capaz de amortecer os impactos das punições econômicas impostas pelo G-7.
Diferente de seu discurso há 11 meses, no entanto, desta vez ele conseguiu evitar gafes e respostas impulsivas. Na fala do ano passado, Biden enunciou: "Pelo amor de Deus, este homem não pode permanecer no poder."
Mais tarde, a Casa Branca teve que explicar que Biden não estava literalmente pedindo pela remoção de Putin do poder, mas falando figurativamente.
Encerrado o discurso, Biden foi recebido por crianças sorridentes com bandeiras americanas, polonesas e ucranianas nas mãos, além de aplausos. Uma referência óbvia ao trecho do discurso em que Biden defendeu que a vitória ou derrota da Ucrânia determinará o mundo em que "nossos filhos e netos viverão".
Resta saber se as imagens e falas de Biden conseguiram convencer também os congressistas e os americanos a manterem o apoio - quase dez vezes maior que o do Reino Unido, o segundo maior doador à Ucrânia - a uma guerra do outro lado do Atlântico.