Jornal Correio Braziliense

Um silêncio perigoso

Os abusadores, segundo a socióloga Ana Nunes de Almeida, se aproveitavam da vulnerabilidade das famílias — muitas delas viviam na pobreza — e da proximidade com as vítimas para cometer os crimes. Por diversas vezes, inclusive, pais e mães não acreditavam ou fingiam não acreditar nas denúncias das crianças, mesmo nas camadas sociais mais abastadas. Foi o caso de duas irmãs, de classe média alta, nascidas nos anos 1960. Uma delas foi abusada aos 10 anos de idade por um padre que frequentava constantemente a casa dela.

"Enquanto esperávamos a chegada do meu pai para jantar, o padre brincava conosco e via desenhos animados", relatou. O religioso, então, tentou colocar a mão e mexer nos seios da garota, que, assustada, fugiu para o quarto e se trancou. Ele foi até a porta do quarto dela e, falando baixinho, disse que "foi só uma delicadeza, um gesto de carinho", e perguntou se a havia magoado. Naquela noite, ela não jantou, alegando dor de cabeça.

Depois que o padre foi embora, a menina contou aos pais o que havia se passado: "Julgo que não conseguiram acreditar em mim, ficaram em silêncio por uns segundos e me mandaram deitar. Nunca mais tocaram no assunto comigo: nem quando, um pouco mais velha, talvez com 13 anos, cansada das habituais visitas desse padre (e, consequentemente, da minha fuga para o quarto em cada uma dessas vezes), senti o dever de iniciar de novo o tema, o que foi abafado imediatamente por eles, com desinteresse e mutismo".

Segundo ela, as tentativas de abuso continuaram por meses. A garota tentou proteger as irmãs, mas não teve sucesso: a mais nova lhe relatou que "o mesmo se passara com ela".

Nascido nos anos 2000, um homem descreveu que, aos 12 anos, foi abusado sexualmente pelo próprio padrinho de batismo e primo, que era um jovem seminarista. A violência acontecia sempre às segundas e quintas, entre 18h e 19h, quando o menino tinha aulas extras para reforçar o aprendizado. "Acabava sempre naquilo, 'anda, vamos fazer aquilo de que gostas, não tem mal, sou teu primo e padrinho, isso é uma brincadeira, quando estiveres com uma mulher já sabes mais, que isso não é nada de paneleiro (gay)", falava o seminarista. O garoto era submetido a toques nas zonas genitais, beijos, masturbação, sexo oral e sexo anal. A violência só acabou quando a mãe do menino decidiu que ele não necessitava de mais de reforço de matérias, e o mudou de escola.

Traumas pela vida

A Comissão Independente não revelou o total de criminosos identificados durante as pesquisas nos arquivos disponibilizados pela Conferência Episcopal, mas se sabe que vários deles repetiam a violência com as mesmas vítimas e outras pessoas. O levantamento também apontou que 43% dos ouvidos falaram sobre os abusos pela primeira vez. E relataram traumas que carregam até hoje.

Integrante do grupo que vasculhou os arquivos da Igreja, o psiquiatra Daniel Sampaio destacou que as sequelas são profundas, como depressão, tentativas de suicídio, ansiedade e transtornos do sono e alimentares.

A grande pergunta que todos se fazem é se a Igreja indenizará as vítimas. Para o juiz Álvaro Loborinho, esse tema tem que ser levado em consideração pelos clérigos, assim como deve ser criado um grupo interdisciplinar para receber as queixas que venham a surgir. "A maior parte das vítimas não acredita em reparação financeira por parte da igreja, mas deseja um pedido de desculpas", acrescentou Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente. 

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