Sem limites
Tanto Strecht quanto Laborinho ressaltaram que, ao longo dos trabalhos de pesquisas, percebeu-se enorme disposição da igreja em ocultar as denúncias de pedofilia. Por isso, disseram, esse foi apenas o começo de uma ação para dar visibilidade ao que se tentou esconder por tantos anos. Os relatos colhidos vão de 1950 em diante e impressionam pelas crueldades cometidas por padres, freiras e professores de colégios católicos. Uma das histórias que mais chamaram a atenção envolve uma menina de apenas 7 anos.
Nascida nos anos de 1970, filha de trabalhadores rurais, F. contou que costumava se confessar todas as semanas na igreja da paróquia, dentro da preparação para sua catequese. O padre, com posição de destaque na diocese, no Norte de Portugal, tinha entre 30 e 40 anos. Ela relatou à comissão que era comum o religioso tocá-la "pelas pernas acima, até chegar onde queria, dizendo obscenidades". Um dia, ele a incentivou a masturbar o próprio irmão, então com 13, 14 anos. Disse-lhe o padre: "Sabes que as mulheres têm de aprender a tirar leite dos homens? Como se faz às vaquinhas, nas tetas".
O pároco afirmava ainda que o irmão da menina "era como um bicho de uma só teta (o seu órgão íntimo)", e que ela "fosse lá mugir". "E isso eu fiz certo dia, quando ele estava a tomar banho. Ele riu-se e, ao mesmo tempo, ficou assustado, mas eu não sabia, juro mesmo, o que estava a fazer, só dizia que o senhor padre queria que eu lhe tirasse o leite (esperma)", contou. O irmão, então, lhe perguntou quem havia falado com ela sobre aquele ato. A menina revelou que havia sido o religioso. "Nunca mais há de fazer isso", ordenou o jovem.
"Estamos impressionados com tudo o que vimos e ouvimos. Temos consciência de que precisamos pedir perdão a todos", assinalou dom Francisco Senra Coelho, arcebispo de Évora, ciente de que os abusos não tinham limites, como deixou claro uma mulher nascida nos anos de 1940. Ela, que enviou aos pesquisadores um e-mail escrito por uma sobrinha, disse que presenciou o irmão, então com 13 anos, ser violentado por um padre, de cerca de 40 anos, na casa da família dos garotos. O religioso visitava a mãe dos meninos, que havia ficado viúva.
"O meu irmão faleceu agora. Penso que ele nunca contou nada do que eu vi. E o que eu vi não foi bonito, e não posso ir para o outro mundo, falecendo, e carregar comigo esse segredo. Uma vez, na tal casinha que havia no quintal, vi algo estranho e, quando lá fui espreitar, estava o meu irmão, coitadinho, ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele, despido de calças e roupa de baixo e o padre, meio que no chão, a pôr o órgão dele na boca (do menino). Nunca tinha visto na vida essas coisas. Pareceu tudo passar muito rápido, pois fugi com o olhar e, quando voltei a olhar, estava o meu irmãozinho, coitado dele o que sofreu, sei lá eu o que aquela alma pode ter sofrido, estava ele, agora, no chão como um animal e o padre por trás, a enfiar-se nele, e ele aflito de lágrimas de chorar", detalhou.
"Tudo espremidinho"
Das vítimas ouvidas pela Comissão Independente, 52,7% são do sexo masculino e 42,2%, do feminino, detalhou Felipa Tavares, ao apresentar a pesquisa. Hoje, elas têm, em média, 52,4 anos, sendo que 88,5% delas moram em Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Leiria. O levantamento apontou, ainda, que 53% das vítimas de abusos se dizem católicas e 25,8% são praticantes. São pessoas, em boa parte, bastante qualificadas: 32,4% têm licenciatura e 12,9%, pós-graduação. Quando foram abusadas, tinham, em média, 11,2 anos.
O maior número de denúncias se concentra entre os anos de 1970 e 1990. Entre os meninos, houve relatos de sexo anal, manipulação dos órgãos genitais, sexo oral e masturbação. No caso das meninas, a predominância foi de manipulação dos órgãos genitais. Os casos de violência foram cometidos, principalmente, em seminários (23%), igrejas (18,8%), confessionários (14,3%), casas paroquiais (12,9%) e escolas católicas (6,9%). Dos envolvidos nos abusos, 97% são homens e 77%, padres.
Um homem nascido nos anos de 1950 revelou que, por muitas noites, acordou com "o pênis de um padre entre as pernas dele, e todo sujo". Ele relatou que, quando menino, foi abusado muitas vezes e por vários sacerdotes. À Comissão Independente, destacou que vinha de uma família pobre. A única maneira para que pudesse ter um bom estudo era entrar para um seminário. Logo que chegou ao colégio, um padre se "engraçou" com ele. "Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me todo, metia a língua toda e perguntava-me se eu já pecara." O menino acabou expulso por maus "pensamentos e companhias". Em outro seminário, encontrou o "Frei W", que era "bem pior que o outro padre, porque era sádico, porco, muito mau".
Então com 13 anos, outro homem, nascido nos anos de 1960, lembrou que foi passar duas semanas na casa dos avós, que eram comerciantes no litoral Norte de Portugal. Um padre, de aproximadamente 50 anos, visitava frequentemente a casa da família, que fazia doações constantes à igreja. Às tardes, o religioso pegava o garoto para dar uma volta. Dizia para os avós do jovem que iam passear pela quinta a fim de ensinar ao garoto algumas coisas, pois ele se portava muito mal na escola e andava revoltado, já que os pais tinham emigrado. Os passeios incluíam beijos, masturbação e sexo oral. "Tinha uma tara, atava-me o pênis e os testículos com um fio, dizia que, assim, 'tudo espremidinho', que era melhor para ficar grosso", relatou à comissão.