Jornal Correio Braziliense

Tempos de turbulência

Atropelada por alta na inflação, Europa é tomada por protestos

Greves e protestos se espalham por alguns dos principais países do continente, que enfrentam altos índices de inflação e de custo de vida, defasagem salarial e crise previdenciária. Cenário, avaliam especialistas, é propício para fortalecimento da extrema-direita

Tempo roubado

Na França, o nível de tensão se elevou diante da proposta do governo de Emmanuel Macron de aumentar, de 62 para 64 anos a partir de 2030, a idade para aposentadoria. Na última terça-feira, mais de 1 milhão de pessoas tomaram as ruas das principais cidades do país. Em 19 de janeiro, os manifestantes já haviam evidenciado a insatisfação com o projeto do governo, também por meio de um protesto gigante. As manifestações são coordenadas por um grupo de sindicatos, que prometem ampliar a gritaria. "As mobilizações vão aumentar", assinalou o sindicalista François Hommerel. Também representante de trabalhadores, Philippe Martinez afirmou que a reforma "canaliza toda a insatisfação na França".

A reforma da Previdência é um compromisso de campanha assumido por Macron, sob o argumento de que a França tem uma das menores idades para a aposentadoria, onerando demasiadamente o Estado — na Alemanha, o benefício só é concedido aos 65 anos; na Dinamarca, chega a 67. Aliados do presidente francês admitem, contudo, que não será tarefa fácil levar a proposta adiante devido às enormes manifestações populares.

"O que se vê na França se repete em vários países europeus, onde a longevidade aumentou muito", ressaltou Miguel Relvas. Ele lembrou que nem mesmo o elevado nível de imigração na região, que reduziu o custo do trabalho e garantiu mais recursos para os sistemas previdenciários, está sendo suficiente para mitigar os problemas orçamentários enfrentados pelos governos.

Em Portugal, neste momento, a maior pressão sobre o Estado parte dos professores. Desde 16 de janeiro, eles vêm cruzando os braços diariamente cobrando concursos públicos, reajustes salariais e recomposição de tempo de serviço para promoções, que foi congelado por diversos planos econômicos. Nas contas da Federação Nacional dos Professores (Fenprof), ainda faltam seis anos, seis meses e 23 dias para serem repostos. "Esse tempo nos foi roubado pelo governo, pois foram trabalhados", afirmou o secretário-geral da entidade, Mário Nogueira. Ele garantiu que, no próximo dia 11, a terra de Cabral verá a maior manifestação da história dos docentes. Pelo menos 100 mil deverão sair às ruas de Lisboa.

"A percepção é de que os professores não existem para o governo. Não estamos exigindo nada além do que manda a lei. Nossa carreira prevê 34 anos de serviços para chegar ao topo, é a mais longa da União Europeia. Relatório do Conselho Nacional de Educação do ano passado mostra que, aqueles que lá chegaram, tinham 39 anos de serviço", assinalou Nogueira.

Segundo ele, diante desse contexto, 73% nunca chegarão ao topo da carreira. "Isso tem consequências imediatas, as pessoas ganham menos do que deveriam. As distorções são muitas", destacou. No caso dos concursos, o Ministério da Educação anuncia vagas para preenchimento em áreas distantes até 200 quilômetros das moradias dos professores, sem lhes dar qualquer tipo de assistência. Com isso, muitos desistem de lecionar.

"O resultado é que milhares de estudantes estão ficando sem aulas por um longo período", frisou o representante da Fenprof. "No ano passado, as disciplinas de física e química perderam 400 profissionais, que se aposentaram, e entraram apenas dois para substituí-los". Ele chamou a atenção ainda para os salários, que, líquidos, variam entre 1.050 (R$ 5.775) e 1.900 (R$ 10.450) euros por mês, insuficientes para a sobrevivência de várias famílias, que sofrem com a disparada da inflação. Em março, a pressão sobre o governo será engrossada pelos médicos, que marcaram greve nos dias 8 e 9. A alegação para a paralisação é o descompromisso do Ministério da Saúde com os pleitos salariais da categoria.

Risco do populismo

Tanta insatisfação só alimenta o populismo hoje abraçado pela extrema-direita, destaca a economista Sandra Utsumi, diretora-executiva do Haitong Bank. Em Portugal, esse espectro político é representado pelo Chega, que viu sua bancada na Assembleia da República passar de um para 12 deputados, tornando-se a terceira maior. A legenda, inclusive, já se coloca como alternativa para alianças em um futuro governo, apostando na derrocada da gestão de António Costa, que mantém maioria absoluta no Parlamento, mas vê seu ministério se desfazer mês a mês e sua popularidade ruir. Na Espanha, o Vox também se tornou a terceira força política do Congresso. Há muitas chances de a França ver a ultradireita chegar ao poder, caso os partidos mais moderados não consigam construir candidaturas viáveis.

Presidente do Fórum de Integração Brasil-Europa (Fibe), o professor Vitalino Canas acredita que os governos têm musculatura suficiente para conter movimentos populistas, mas, muitas vezes, tenderão a ser menos tolerantes com ameaças à democracia. O manejo sem traumas de toda a insatisfação passa, no entanto, pelo controle da inflação, que afeta, principalmente, os mais pobres, mais vulneráveis aos discursos extremistas.

Para o economista José Roberto Afonso, pesquisador da Universidade de Lisboa, os europeus têm dificuldades para enfrentar os desafios que se colocaram no horizonte, pois muitos desconhecem o que é inflação. Ele afirmou, porém, não ver muito espaço para a propagação do populismo na região. "O populismo oferece soluções fáceis, estimula o ódio, mas não acho que há uma onda radical de direita como alguns esperam", complementou.

Apesar dos graves problemas atuais, Miguel Relvas disse que a Europa ainda é a melhor região do mundo para se viver, mais equilibrada, mais justa, ainda com boas oportunidades. "Os governos, contudo, terão de enfrentar desafios enormes para garantir a manutenção do mínimo de bem-estar social, promovendo reformas profundas", concluiu.