O governo dos EUA recebeu com ceticismo a declaração feita pelo governo russo de que está examinando a proposta do Brasil para, em conjunto com outros países não envolvidos direta ou indiretamente no conflito, mediar conversas entre russos e ucranianos em busca do fim do conflito.
A declaração do Kremlin foi feita na véspera do primeiro aniversário da invasão russa na Ucrânia, ocorrido nesta sexta, 24/2, e em meio a uma escalada retórica tanto do líder russo, Vladimir Putin, como do presidente americano, Joe Biden, que qualificam a guerra como uma batalha pela sobrevivência tanto da identidade russa como da ordem democrática representada pelos americanos.
"Registramos as declarações do presidente do Brasil sobre o tema de uma possível mediação para encontrar caminhos políticos para evitar a escalada na Ucrânia e corrigir erros de cálculo no campo da segurança internacional com base no multilateralismo e considerando os interesses de todos os atores. Estamos examinando as iniciativas, principalmente do ponto de vista da política equilibrada do Brasil e, claro, levando em consideração a situação 'no terreno'", afirmou o vice-ministro de Relações Exteriores da Rússia, Mikhail Galuzin, à agência de notícias russa Tass.
Consultado pela BBC News Brasil a respeito da declaração de Galuzin, o Departamento de Estado dos EUA respondeu, por meio de um porta-voz, que "a Rússia continua sendo o único obstáculo à paz na Ucrânia, e não vemos nenhuma indicação de que o presidente Putin tenha interesse em uma diplomacia significativa no momento. Só ele pode acabar com esta guerra hoje".
Equilíbrio entre condenação e não participação na guerra
"Considerando o modo como Putin tem buscado aumentar suas posições na guerra agora, acredito que o governo Biden não vê Putin pronto para negociar nada. Há um grau de ceticismo com o que a Rússia está dizendo em relação à sugestão do Brasil de criar um grupo de mediadores mais neutros", afirmou à BBC News Brasil o ex-embaixador americano no Brasil e ex-sub secretário de Estado Thomas Shannon.
Lula tem tentado um equilíbrio entre a condenação à invasão russa e o não envolvimento, nem mesmo indireto, no conflito para tentar lançar o que tem chamado de "clube da paz". O Brasil assume a presidência do G-20 no ano que vem e tenta fazer do fim do conflito uma de suas principais missões internacionais. A ideia seria contar com países como a China e a Índia no clube.
Em janeiro, a gestão Lula recusou um pedido da Alemanha para ceder ou vender munições para tanques que seriam repassados para a Ucrânia. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), da qual a Alemanha faz parte, têm enviado ajuda multibilionária em armamentos para que Kiev possa fazer frente ao Exército russo.
Em visita à capital americana, no começo de fevereiro, Lula reafirmou ao presidente americano Joe Biden que defende a integralidade territorial ucraniana, mas que pretende manter posição de neutralidade para tentar liderar o "clube da paz", para inaugurar diálogo entre os dois lados.
"Lógico que ela (a Ucrânia) tem o direito de se defender. Lógico que ela tem o direito de se defender, até porque a invasão foi um equívoco da Rússia. Ela não poderia ter feito isso. (...) Eu não quis mandar (munição para Ucrânia), porque se eu mandar, eu entrei na guerra. E eu não quero entrar na guerra, eu quero acabar com a guerra", afirmou o presidente em entrevista à CNN, em Washington, horas antes de se encontrar com Biden.
À ocasião, a proposta brasileira foi recebida com respeito e o presidente americano assegurou a Lula que todos querem o fim da guerra. Os americanos também apreciam o fato de que o Brasil tem condenado a invasão russa em ambientes multilaterais - o que se repetiu ontem, quando o país votou a favor da condenação da ação militar da Rússia na Assembleia Geral da ONU mais uma vez, enquanto os demais integrantes dos BRICS (Índia, China e África do Sul) se abstiveram.
"A chegada do Brasil como uma liderança global é bem-vinda. Nós respeitamos e apoiamos os esforços do presidente Lula para realmente promover o diálogo e a paz, e reconhecemos a capacidade dele de falar com qualquer pessoa. Nem sempre vamos concordar em tudo com o Brasil, mas acho que temos um interesse comum em garantir a paz", afirmou na ocasião um alto funcionário do governo Biden.
'Se Putin quisesse, parava'
Segundo Shannon, o Brasil teria sim condições diplomáticas para desenvolver um papel de protagonista na mediação, o problema está no fato de que os dois lados do conflito precisam concordar com condições para o fim da guerra. E aí está o problema: os ucranianos não concordam em ceder porções de seu território e Putin nem mesmo reconhece a identidade ucraniana e seu direito como Estado soberano.
Por isso. a diplomacia americana vê a posição do Brasil como pouco realista. Agora, diplomatas americanos ouvidos reservadamente pela BBC News Brasil sobre o novo posicionamento russo citando a proposta brasileira repetiram os termos usados por Biden para demonstrar certo desdém pela declaração do Kremlin: "Se Putin quisesse acabar com a guerra, bastava parar de atacar".
Esta semana, em um discurso em Varsóvia, capital da Polônia, depois de uma visita surpresa ao líder ucraniano Volodymyr Zelenski em Kiev, Biden reagiu à uma acusação de Putin de que a guerra seguiria enquanto a OTAN mantivesse remessas de armas à Ucrânia. "Se a Rússia parar de atacar a Ucrânia, a guerra acaba. Se a Ucrânia parar de se defender da invasão russa, quem acaba é a Ucrânia", disse Biden.
"O governo Biden claramente não acredita que Putin tenha qualquer interesse sincero na paz neste momento. Putin fez seus comentários enquanto prepara outra grande ofensiva na Ucrânia. Isso é apenas conversa fiada de Putin em relação (à proposta de) um parceiro do BRICS e líder do Sul Global", afirmou à BBC News Brasil Nick Zimmerman, analista sênior na consultoria política WestExec e associado ao Brazil Institute do think tank Wilson Center.
Zimmerman, que foi Diretor do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca para Assuntos do Brasil e do Cone Sul durante a gestão de Barack Obama, diz que comentários anteriores sobre a guerra na Ucrânia feitos por Lula, como o de que "quando um não quer, dois não brigam", "cheiram a falsa equivalência - um erro que Lula cometeu repetidamente, seja por uma estratégia de negociação equivocada ou por convicção real".
Nesta sexta-feira, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, rechaçou uma proposta chinesa para um cessar-fogo apresentada na ONU. Blinken afirmou que se apenas o primeiro ponto dos 12 propostos pela China, que versa sobre o respeito à soberania dos países, fosse respeitado, a Rússia já teria se retirado de território ucraniano e a guerra teria acabado.
Blinken argumentou ainda que um congelamento da situação no front serviria apenas para que a Rússia possa consolidar suas posições em áreas invadidas e para treinar russos recentemente conscriptos para a batalha no front. Analistas internacionais apontam que Putin pretendia ganhar a guerra em poucas semanas ou meses e que falhas na estratégia militar dos russos levou a um grande número de baixas em seu exército e à necessidade de tempo para que as forças armadas de Putin possam se reorganizar para vencer a guerra.
Os EUA veem a China como sua principal antagonista global e aliada da Rússia no conflito - embora oficialmente os chineses não tenham se envolvido na batalha nem enviado armamentos a Putin. A desconfiança, porém, parte do fato de a China jamais ter condenado a invasão e ter estreitado laços com Putin ao longo desse último ano.
"Não acredito que seja uma coincidência que os russos venham citar essa sugestão do Brasil ao mesmo em que a China traz essa proposta dos 12 pontos para a paz. Parece uma estratégia para colar nos americanos e na Europa a imagem de pró-guerra, algo que é completamente falso", argumenta Shannon.
O Brasil reconhece que o cenário de paz é ainda distante. Embaixadores brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil reservadamente dizem desconhecer qualquer iniciativa dos russos de contato com o Itamaraty para pedir detalhes sobre a sugestão brasileira do clube da paz. Mas veem no gesto público de Moscou um reconhecimento do Brasil como um "negociador honesto" em campo. O mesmo reconhecimento, aliás, teria sido dado ao Brasil pelo lado ucraniano: no último dia 18, o chanceler Mauro Vieira se encontrou com o Ministro de Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, às margens da Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, para expor a posição brasileira sobre a guerra. Nesta sexta, Zelensky se disse aberto a negociações com outros países além dos aliados da OTAN.
Em artigo no Estado de S. Paulo publicado por ocasião no primeiro aniversário da Guerra nesta sexta, Vieira afirmou que "as perspectivas de solução imediata do conflito são escassas". Apesar disso, defendeu a perspectiva brasileira, em oposição ao entendimento americano, embora sem citá-lo diretamente. "Em meio ao coro mais estridente, e de vozes poderosas, focadas na guerra e na sua forte dimensão geopolítica, chegou a hora de também dar voz aos que querem falar em caminhos para a construção da paz", escreveu o chanceler brasileiro.
- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn05zg0xdxjo
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