IGREJA CATÓLICA

Escândalo de abuso de menores por padres consterna Portugal

Conferência Episcopal abre arquivos de abusos a menores e resultado choca o país. Estima-se que mais de 4,8 mil crianças e jovens foram vítimas de religiosos nos últimos 72 anos, com 512 casos efetivos de pedofilia

Vicente Nunes - Correspondente
postado em 14/02/2023 05:53 / atualizado em 14/02/2023 05:55
 (crédito: Patrícia de Melo Moreira/AFP)
(crédito: Patrícia de Melo Moreira/AFP)

Lisboa — Aos 10 anos, a menina sonhava em estudar música. A vontade era tamanha, que aceitou, de imediato, a oferta do padre da paróquia que a família frequentava para lhe dar aulas. O aprendizado, no entanto, teria de ser na casa dele. O assédio à garota foi imediato. Começou com beijos, e logo vieram as penetrações. Em pouco tempo, a criança engravidou, processo que, felizmente, acabou interrompido. Os abusos, porém, continuaram. O basta só veio quando a mãe do religioso descobriu a violência rotineira e o obrigou a parar. Caso mantivesse a prática dos crimes, ela afirmou que o mataria com as próprias mãos.

O relato faz parte de centenas de depoimentos chocantes colhidos pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica de Portugal, divulgado ontem. Numa tentativa de acerto de contas com a história, a Conferência Episcopal Portuguesa abriu seus arquivos para uma profunda investigação sobre o que se passou nos últimos 72 anos. Com as informações disponíveis, foram registrados 512 casos efetivos de pedofilia, mas se estima que ao menos 4.815 meninos e meninas de até 18 anos teriam sido vítimas de violência sexual de religiosos.

Com mais de 500 páginas, o documento da comissão — intitulado Dar voz ao silêncio — provocou um terremoto em território luso, onde mais de 80% das pessoas se declaram católicas. Presente na divulgação dos dados, o presidente da Conferência Episcopal, dom José Ornelas, disse que a situação era "dramática, uma ferida aberta que dói e envergonha". E acrescentou: "O relatório exprime uma dura e trágica realidade. Houve, e há, vítimas de abuso sexual provocadas por clérigos e outros agentes pastorais, no âmbito da vida e das atividades da Igreja em Portugal". Ele pediu perdão a todas as vítimas.

Segundo Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente, apesar de todos os casos, apenas 25 serão encaminhados ao Ministério Público para possível abertura de inquéritos. Para o juiz e ex-ministro da Justiça Álvaro Laborinho Lúcio, também do grupo de pesquisadores, infelizmente, a maioria dos casos prescreveu e não há como ultrapassar os limites da legislação. A lei portuguesa prevê que denúncias de abuso sexual só podem ser feitas até as vítimas completarem 23 anos. O ideal, no entender dele, é que a Assembleia da República amplie esse limite para 30 anos ou mais — na Espanha, é 35.

Sem limites

Tanto Strecht quanto Laborinho ressaltaram que, ao longo dos trabalhos de pesquisas, percebeu-se enorme disposição da igreja em ocultar as denúncias de pedofilia. Por isso, disseram, esse foi apenas o começo de uma ação para dar visibilidade ao que se tentou esconder por tantos anos. Os relatos colhidos vão de 1950 em diante e impressionam pelas crueldades cometidas por padres, freiras e professores de colégios católicos. Uma das histórias que mais chamaram a atenção envolve uma menina de apenas 7 anos.

Nascida nos anos de 1970, filha de trabalhadores rurais, F. contou que costumava se confessar todas as semanas na igreja da paróquia, dentro da preparação para sua catequese. O padre, com posição de destaque na diocese, no Norte de Portugal, tinha entre 30 e 40 anos. Ela relatou à comissão que era comum o religioso tocá-la "pelas pernas acima, até chegar onde queria, dizendo obscenidades". Um dia, ele a incentivou a masturbar o próprio irmão, então com 13, 14 anos. Disse-lhe o padre: "Sabes que as mulheres têm de aprender a tirar leite dos homens? Como se faz às vaquinhas, nas tetas".

O pároco afirmava ainda que o irmão da menina "era como um bicho de uma só teta (o seu órgão íntimo)", e que ela "fosse lá mugir". "E isso eu fiz certo dia, quando ele estava a tomar banho. Ele riu-se e, ao mesmo tempo, ficou assustado, mas eu não sabia, juro mesmo, o que estava a fazer, só dizia que o senhor padre queria que eu lhe tirasse o leite (esperma)", contou. O irmão, então, lhe perguntou quem havia falado com ela sobre aquele ato. A menina revelou que havia sido o religioso. "Nunca mais há de fazer isso", ordenou o jovem.

"Estamos impressionados com tudo o que vimos e ouvimos. Temos consciência de que precisamos pedir perdão a todos", assinalou dom Francisco Senra Coelho, arcebispo de Évora, ciente de que os abusos não tinham limites, como deixou claro uma mulher nascida nos anos de 1940. Ela, que enviou aos pesquisadores um e-mail escrito por uma sobrinha, disse que presenciou o irmão, então com 13 anos, ser violentado por um padre, de cerca de 40 anos, na casa da família dos garotos. O religioso visitava a mãe dos meninos, que havia ficado viúva.

"O meu irmão faleceu agora. Penso que ele nunca contou nada do que eu vi. E o que eu vi não foi bonito, e não posso ir para o outro mundo, falecendo, e carregar comigo esse segredo. Uma vez, na tal casinha que havia no quintal, vi algo estranho e, quando lá fui espreitar, estava o meu irmão, coitadinho, ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele, despido de calças e roupa de baixo e o padre, meio que no chão, a pôr o órgão dele na boca (do menino). Nunca tinha visto na vida essas coisas. Pareceu tudo passar muito rápido, pois fugi com o olhar e, quando voltei a olhar, estava o meu irmãozinho, coitado dele o que sofreu, sei lá eu o que aquela alma pode ter sofrido, estava ele, agora, no chão como um animal e o padre por trás, a enfiar-se nele, e ele aflito de lágrimas de chorar", detalhou.

"Tudo espremidinho"

Das vítimas ouvidas pela Comissão Independente, 52,7% são do sexo masculino e 42,2%, do feminino, detalhou Felipa Tavares, ao apresentar a pesquisa. Hoje, elas têm, em média, 52,4 anos, sendo que 88,5% delas moram em Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Leiria. O levantamento apontou, ainda, que 53% das vítimas de abusos se dizem católicas e 25,8% são praticantes. São pessoas, em boa parte, bastante qualificadas: 32,4% têm licenciatura e 12,9%, pós-graduação. Quando foram abusadas, tinham, em média, 11,2 anos.

O maior número de denúncias se concentra entre os anos de 1970 e 1990. Entre os meninos, houve relatos de sexo anal, manipulação dos órgãos genitais, sexo oral e masturbação. No caso das meninas, a predominância foi de manipulação dos órgãos genitais. Os casos de violência foram cometidos, principalmente, em seminários (23%), igrejas (18,8%), confessionários (14,3%), casas paroquiais (12,9%) e escolas católicas (6,9%). Dos envolvidos nos abusos, 97% são homens e 77%, padres.

Um homem nascido nos anos de 1950 revelou que, por muitas noites, acordou com "o pênis de um padre entre as pernas dele, e todo sujo". Ele relatou que, quando menino, foi abusado muitas vezes e por vários sacerdotes. À Comissão Independente, destacou que vinha de uma família pobre. A única maneira para que pudesse ter um bom estudo era entrar para um seminário. Logo que chegou ao colégio, um padre se "engraçou" com ele. "Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me todo, metia a língua toda e perguntava-me se eu já pecara." O menino acabou expulso por maus "pensamentos e companhias". Em outro seminário, encontrou o "Frei W", que era "bem pior que o outro padre, porque era sádico, porco, muito mau".

Então com 13 anos, outro homem, nascido nos anos de 1960, lembrou que foi passar duas semanas na casa dos avós, que eram comerciantes no litoral Norte de Portugal. Um padre, de aproximadamente 50 anos, visitava frequentemente a casa da família, que fazia doações constantes à igreja. Às tardes, o religioso pegava o garoto para dar uma volta. Dizia para os avós do jovem que iam passear pela quinta a fim de ensinar ao garoto algumas coisas, pois ele se portava muito mal na escola e andava revoltado, já que os pais tinham emigrado. Os passeios incluíam beijos, masturbação e sexo oral. "Tinha uma tara, atava-me o pênis e os testículos com um fio, dizia que, assim, 'tudo espremidinho', que era melhor para ficar grosso", relatou à comissão.

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Um silêncio perigoso

Os abusadores, segundo a socióloga Ana Nunes de Almeida, se aproveitavam da vulnerabilidade das famílias — muitas delas viviam na pobreza — e da proximidade com as vítimas para cometer os crimes. Por diversas vezes, inclusive, pais e mães não acreditavam ou fingiam não acreditar nas denúncias das crianças, mesmo nas camadas sociais mais abastadas. Foi o caso de duas irmãs, de classe média alta, nascidas nos anos 1960. Uma delas foi abusada aos 10 anos de idade por um padre que frequentava constantemente a casa dela.

"Enquanto esperávamos a chegada do meu pai para jantar, o padre brincava conosco e via desenhos animados", relatou. O religioso, então, tentou colocar a mão e mexer nos seios da garota, que, assustada, fugiu para o quarto e se trancou. Ele foi até a porta do quarto dela e, falando baixinho, disse que "foi só uma delicadeza, um gesto de carinho", e perguntou se a havia magoado. Naquela noite, ela não jantou, alegando dor de cabeça.

Depois que o padre foi embora, a menina contou aos pais o que havia se passado: "Julgo que não conseguiram acreditar em mim, ficaram em silêncio por uns segundos e me mandaram deitar. Nunca mais tocaram no assunto comigo: nem quando, um pouco mais velha, talvez com 13 anos, cansada das habituais visitas desse padre (e, consequentemente, da minha fuga para o quarto em cada uma dessas vezes), senti o dever de iniciar de novo o tema, o que foi abafado imediatamente por eles, com desinteresse e mutismo".

Segundo ela, as tentativas de abuso continuaram por meses. A garota tentou proteger as irmãs, mas não teve sucesso: a mais nova lhe relatou que "o mesmo se passara com ela".

Nascido nos anos 2000, um homem descreveu que, aos 12 anos, foi abusado sexualmente pelo próprio padrinho de batismo e primo, que era um jovem seminarista. A violência acontecia sempre às segundas e quintas, entre 18h e 19h, quando o menino tinha aulas extras para reforçar o aprendizado. "Acabava sempre naquilo, 'anda, vamos fazer aquilo de que gostas, não tem mal, sou teu primo e padrinho, isso é uma brincadeira, quando estiveres com uma mulher já sabes mais, que isso não é nada de paneleiro (gay)", falava o seminarista. O garoto era submetido a toques nas zonas genitais, beijos, masturbação, sexo oral e sexo anal. A violência só acabou quando a mãe do menino decidiu que ele não necessitava de mais de reforço de matérias, e o mudou de escola.

Traumas pela vida

A Comissão Independente não revelou o total de criminosos identificados durante as pesquisas nos arquivos disponibilizados pela Conferência Episcopal, mas se sabe que vários deles repetiam a violência com as mesmas vítimas e outras pessoas. O levantamento também apontou que 43% dos ouvidos falaram sobre os abusos pela primeira vez. E relataram traumas que carregam até hoje.

Integrante do grupo que vasculhou os arquivos da Igreja, o psiquiatra Daniel Sampaio destacou que as sequelas são profundas, como depressão, tentativas de suicídio, ansiedade e transtornos do sono e alimentares.

A grande pergunta que todos se fazem é se a Igreja indenizará as vítimas. Para o juiz Álvaro Loborinho, esse tema tem que ser levado em consideração pelos clérigos, assim como deve ser criado um grupo interdisciplinar para receber as queixas que venham a surgir. "A maior parte das vítimas não acredita em reparação financeira por parte da igreja, mas deseja um pedido de desculpas", acrescentou Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente. 

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