Poucas vezes um trabalho acadêmico causou tanta polêmica na Flórida quanto o mais recente livro da socióloga americana Susan Eckstein.
Eckstein é professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Boston (EUA) e é especializada nas relações entre Cuba e os Estados Unidos.
Em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC), a acadêmica afirma que levou seis anos de pesquisa para escrever seu livro Cuban Privilege: The Making of Immigrant Inequality in America (em tradução livre, "Privilégio cubano: a construção da desigualdade migratória nos EUA").
O livro analisa a evolução dos direitos e benefícios que os cubanos migrando para os Estados Unidos gozam por lei desde 1959 — ano do triunfo da revolução de Fidel Castro —, bem diferentes dos que recaem sobre imigrantes de outros países da América Latina e do Caribe.
Quando Eckstein foi a Miami lançar o livro, membros de direita da diáspora cubana lhe declararam guerra, fazendo com que uma palestra em uma livraria fosse cancelada por questões de segurança.
Na Universidade Internacional da Flórida (FIU, na sigla em inglês), onde ocorreu sua palestra mais importante, dezenas de pessoas protestaram do lado de fora. O evento também ocorreu em um ambiente hostil, com constantes acusações de que Eckstein era cúmplice do regime cubano.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC - Você esperava essa reação?
Susan Eckstein – Nada, me pegou totalmente de surpresa.
Sou apenas uma acadêmica; estou acostumada a conversar com outros acadêmicos. Fora da academia, ninguém mais presta atenção no que escrevemos. Eu havia dado palestras sobre este livro por todo o país e alguns se interessaram, outros criticaram... tudo em um ambiente amigável.
Mas quando vim para Miami, um político local escreveu um tuíte que viralizou, dizendo que eu sou carregada de ódio, que sou uma provocadora anticubana, coisas que eu não sou. Ele reconheceu que não havia lido o livro, mas mesmo assim, formou-se aquele turbilhão que eu não esperava.
BBC - Por que se dedicar a esse tema?
Eckstein – Estudei Cuba por muitos anos, escrevi vários livros e o próximo passo natural foi tentar entender a política de imigração dos Estados Unidos para Cuba.
Além disso, fiquei intrigada com os privilégios que só os cubanos têm. Esses privilégios são únicos e foram conquistados ao longo dos anos.
BBC - Em seu trabalho, você compara migrantes cubanos e haitianos.
Eckstein – Eu estava interessada no tratamento diferente que Washington dá às duas nacionalidades, que vivem em duas ilhas vizinhas. Os haitianos são deportados, enquanto os cubanos recebem status especial de refugiado.
É difícil argumentar que os cubanos merecem mais do que os haitianos. O Haiti é o país mais pobre do hemisfério, há muita violência e agora praticamente não existe um Estado. O fato de os cubanos terem esses privilégios, e os haitianos não, sugere que não é simplesmente uma questão de justiça.
BBC - O que é o "privilégio cubano"?
Eckstein – Refere-se aos direitos ou benefícios que os EUA concederam aos cubanos ao longo dos anos. Esses privilégios têm sido políticos, econômicos e sociais. O termo tenta definir essa situação única para os cubanos.
BBC - Como ele começou?
Eckstein – Como uma história da Guerra Fria. O presidente Eisenhower (1953-61) não tolerava uma revolução a 90 milhas de seu território e começou a receber os cubanos assumindo que eles iriam voltar para Cuba. As autoridades tentaram treiná-los para a invasão da Baía dos Porcos, em 1961.
Quando ela falha, esses cubanos ficam e ganham mais benefícios especiais sob o programa de refugiados mais generoso da história dos Estados Unidos — incluindo faculdade gratuita, treinamento vocacional ou auxílio para colocação no mercado de trabalho. Esse pacote exclui imigrantes de outros países.
Se você fosse cubano, só de vir para os Estados Unidos já adquiria o status de refugiado.
BBC - Por que esses benefícios?
Eckstein – O objetivo era tentar derrubar o regime de Castro. Primeiro, privando Cuba de seu melhor e mais brilhante capital humano, para que não sobrevivesse. Isso falhou, porque o regime treinou um novo grupo de pessoas.
Além disso, aqueles formados nos Estados Unidos seriam bons candidatos — e com posição política favorável a Washington — a voltar e liderar Cuba após a suposta queda de Castro.
BBC - E como o "privilégio" evoluiu?
Eckstein – John F. Kennedy (1961-63) expandiu massivamente o programa de refugiados. Lyndon B. Johnson (1963-69) aprovou a Lei de Ajuste Cubano de 1966, permitindo que qualquer cubano nos EUA obtivesse status legal permanente e cidadania americana. Esta lei foi a mais decisiva e ainda está em vigor hoje.
Outra mudança importante foi com o presidente Clinton (1993-2001), que passou a repatriar migrantes cubanos capturados no mar pela lei conhecida como "Pés Secos, Pés Molhados" (aqueles que conseguiam chegar à terra firme tinham os trâmites facilitados).
BBC – No livro, você afirma que a maioria dos migrantes cubanos que se estabelecem nos Estados Unidos como refugiados não são realmente refugiados.
Eckstein – Eles não são realmente refugiados. Na realidade, depois da revolução, Cuba não deixou sair seus presos políticos, por isso foi muito difícil para as verdadeiras vítimas do regime de Castro obter asilo fora do país.
Os que vinham (aos EUA) faziam-no geralmente para se juntar às famílias, algo que era muito mais difícil para os imigrantes de outros países conseguirem.
BBC – Voltemos à controvérsia sobre o seu livro. Alguns ativistas em Miami a acusam de simpatizar com o governo cubano.
Eckstein – Isso é completamente irrelevante para o meu livro. Este livro não é sobre Cuba, mas sobre a política de imigração dos EUA, ponto final. Este tipo de acusação tem o único objetivo de me difamar.
Fui criticada por dizer que os migrantes cubanos não são realmente refugiados. Li a definição das Nações Unidas sobre o que é um refugiado e também li como, ao longo dos anos, os Estados Unidos mudaram seus critérios sobre a condição de refugiado exclusivamente para os cubanos.
Eu escrevo o que acontece, não é minha visão pessoal. Meu livro não é um manifesto, mas um trabalho acadêmico ao qual dediquei seis anos de pesquisa.
BBC - Seus críticos argumentam que os cubanos não podem ser comparados com pessoas de outros países da região porque, diferente destes, vivem há mais de 60 anos sob uma ditadura que restringe as oportunidades econômicas e políticas. Como você responde a isso?
Eckstein – Não estou tentando justificar as políticas do governo cubano, mas Cuba não é o único país que sofre com um regime repressivo e, mesmo assim, os cubanos têm privilégios que ninguém mais tem.
Sou mais a favor de estender esses direitos a outros imigrantes do que eliminá-los para os cubanos.
BBC - Outro dardo lançado contra você: ao contrário de outros países, Cuba penaliza as emigrações ilegais e, sobretudo em outros tempos, reprimiu ou marginalizou quem voltou depois de ter fugido. Isso não é motivo suficiente para considerá-los todos refugiados?
Eckstein – Eu não acho que esse argumento se sustenta hoje. Décadas atrás, poderia ser válido, mas não mais. A política cubana em relação aos que partem tem variado ao longo do tempo.
Quando a tensão política aumenta, o governo até permite que as pessoas saiam de forma velada. Isso aconteceu na crise de Mariel de 1980 e vemos que está acontecendo agora também.
BBC - Você afirma que, em determinado momento, a política externa passou para segundo plano e a política interna dos Estados Unidos se tornou o motor do privilégio cubano. Como isso aconteceu?
Eckstein – Com o fim da Guerra Fria, a política externa deixou de ser um argumento para privilegiar os cubanos. Os benefícios anteriores ajudaram os cubanos a adquirir educação, riqueza e direitos políticos.
E a comunidade estava concentrada na Flórida, que ganhou destaque na política americana ao se tornar o terceiro estado mais decisivo nas eleições.
Republicanos e democratas consideram fundamental conquistar a Flórida para chegar ao poder e, para isso, precisam do voto dos cubanos, os quais procuram atrair concedendo cada vez mais benefícios à comunidade.
BBC - Como o "privilégio cubano" influenciou os EUA?
Eckstein – Embora o objetivo inicial das medidas não tenha sido alcançado, Flórida e Miami em particular se beneficiaram das capacidades trazidas pelos cubanos.
Entre outras coisas, eles ajudaram a transformar Miami de uma pequena cidade a uma grande metrópole global.
Por outro lado, os afro-americanos locais sofreram no processo, porque os cubanos receberam tratamento favorável nos mundos acadêmico e trabalhista. Não foi intencional, mas parte do privilégio cubano ocorreu às custas dos nascidos americanos e, em particular, dos afro-americanos.
BBC – E como influenciou Cuba?
Eckstein – Acima de tudo, contribuiu para que Cuba perdesse muito capital humano.
Hoje, muitas pessoas querem sair do país. E me pergunto o que será de Cuba, se o país vai continuar sendo um desastre como está hoje, carente de recursos humanos capacitados para gerar riquezas.
BBC - No ano passado, mais de 250.000 cubanos fugiram para os EUA, um recorde histórico. Como o "privilégio cubano" influenciou esse êxodo?
Eckstein - Na sua última semana no cargo, Barack Obama (2009-2017) pôs fim ao direito de entrada livre temporária, que era exclusivo dos cubanos. Assim, os migrantes da ilha começaram a recorrer a uma nova via: pedidos de asilo.
Como os casos de asilo geralmente levam anos para serem resolvidos, depois de um ano os cubanos usaram a Lei de Ajuste Cubano para se tornarem residentes permanentes legais.
O presidente Biden estendeu recentemente para dois anos o direito de entrada em liberdade temporária a venezuelanos, haitianos, nicaraguenses e cubanos, mas apenas estes últimos podem, em um ano, recorrer à Lei de Ajuste Cubano para consolidar seus direitos de longo prazo nos Estados Unidos.
E também, uma vez nos EUA, apenas os cubanos se qualificam para receber benefícios sociais.
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